Auditora critica o arcabouço fiscal proposto pelo governo e pontua que é preciso enfrentar a dívida pública
Um ataque direto à população brasileira que vive na pobreza e com salários baixos. São nestes termos que a auditora-fiscal aposentada da Receita Federal e fundadora da organização Auditoria Cidadã da Dívida Maria Lucia Fattorelli, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, critica o novo pacote fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no dia 27-11-2024.
Para Fattorelli, essa investida contra o salário mínimo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial mancham a trajetória de Lula, sempre ligada à defesa da classe trabalhadora. “A partir desse pacote, Lula é outra pessoa; sua história é outra”. É preciso, segundo a auditora-fiscal, mais iniciativa aos governos de esquerda em apresentar propostas “ousadas e lutar por elas, dando importância a iniciativas sociais para limitar juros e realizar auditoria da dívida”.
Em linhas gerais, Fattorelli define o objetivo do pacote fiscal proposto por Haddad “de reafirmar o compromisso do governo com a priorização dos gastos com juros e amortizações da chamada dívida pública, perseguindo a produção de superávit primário e aplicação de teto para gastos sociais que atingem a parcela mais vulnerável da população”.
Em vez de cortar benefícios e gastos sociais, o governo poderia, explica Fattorelli, avançar nas discussões e na aprovação do PLP 104/2022, que limita juros no Brasil, além de combater o Sistema da Dívida. Outra medida importante para atacar o rombo fiscal seria o combate à bolsa banqueiro, remuneração que o Banco Central paga diariamente aos bancos sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles. “Apenas 1 ano de bolsa banqueiro seria suficiente para reparar todas as perdas acumuladas pelo funcionalismo público federal desde 2010, estimadas em R$ 158 bilhões”, observa.
Maria Lucia Fattorelli | Foto: Ana Volpe/Agência Senado
Maria Lucia Fattorelli é auditora-fiscal aposentada da Receita Federal e fundadora da Auditoria Cidadã da Dívida. Possui especialização em Administração Tributária pela FGV-EAESP, graduação em Ciências Contábeis pela Fundação Educacional Machado Sobrinho e graduação em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Entre suas publicações mais recentes, destacamos: Brasil: realidade de abundância e cenário de escassez (Brasília: CNBB, 2018).
IHU – Quais foram os principais pontos negativos e positivos do novo pacote fiscal anunciado por Haddad?
Maria Lucia Fattorelli – O pacote anunciado pelo ministro Haddad no dia 27/11, em cadeia de TV, e confirmado por meio de projetos de lei (PL 4614/2024 e PL 210/2024) e proposta de emenda à Constituição (PEC 45/2024) constituem, na minha opinião, um marco extremamente negativo na trajetória do presidente Lula, com reflexos igualmente negativos para a maioria da população brasileira que se encontra na pobreza ou empregada com salários baixos.
O marco a que me refiro é o ataque direto, contido nesse pacote, ao salário mínimo, ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) e ao abono salarial, direitos importantes para a parcela mais empobrecida da população brasileira, até então defendida por Lula desde o início de sua atuação política. A partir desse pacote, Lula é outra pessoa; sua história é outra.
O pacote segue a lógica do Arcabouço Fiscal (Lei Complementar 200/2023), cuja exposição de motivos enviada pelo governo federal ao Congresso confessou expressamente que seu objetivo era “guardar recursos importantes para o pagamento da dívida pública”.
A redução de gastos sociais resultante das medidas desse pacote, que recai principalmente sobre as pessoas mais vulneráveis, deve ser de R$ 30,6 bilhões já em 2025, segundo anunciado pelo governo, e seguirá aumentando nos anos seguintes, conforme tabela divulgada pelo próprio governo (ver abaixo), somando R$ 327,1 bilhões até 2030, dos quais R$ 109,8 bilhões sairão do salário mínimo.
Divulgação/Governo Federal
Entre as medidas nocivas estão a limitação no reajuste do salário mínimo; mais dificuldades para acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), o que reduzirá o número de pessoas atendidas; a eliminação paulatina das pessoas que recebem entre 1,5 e 2 salários mínimos do direito ao abono salarial; ataques a direitos do funcionalismo público, com restrições para concursos e possibilidade de limitar reajustes acima da inflação a ínfimos 0,6%; o congelamento em termos reais do Fundo Constitucional do DF; a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2032, dispositivo que na prática retira recursos de diversas áreas para direcioná-los ao pagamento da dívida pública.
Por isso, não vejo nada de positivo neste pacote de medidas, que restringe e reduz investimentos nas áreas sociais para que sobre mais dinheiro ao sigiloso Sistema da Dívida, que comprovadamente não tem contrapartida alguma em investimentos de interesse do país e tem estado historicamente repleto de ilegalidades, ilegitimidades e até fraudes, motivo pelo qual lutamos pela auditoria integral dessa dívida, com participação social.
IHU – Como avalia a proposta de elevar a faixa de isenção do Imposto de Renda (IR) para quem ganha até R$ 5 mil?
Maria Lucia Fattorelli – A elevação do limite de isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil seria positiva e já deveria ter sido feita há muito tempo, haja vista a defasagem de mais de 150% na atualização da tabela do imposto de renda. Até o momento, essa promessa de elevar a faixa de isenção ainda não constou de nenhum dos projetos de lei ou proposta de emenda à Constituição apresentados pelo governo ao Congresso Nacional.
Segundo o discurso do ministro Haddad no dia 27-11-2024, ele estaria anunciando “a maior reforma da renda de nossa história. Honrando os compromissos assumidos pelo presidente Lula, com a aprovação da reforma da renda, uma parte importante da classe média, que ganha até R$ 5 mil por mês, não pagará mais Imposto de Renda”.
Observe que a medida depende de aprovação da reforma do imposto de renda, ou seja, essa medida teria que ser aprovada pelo Congresso Nacional e condicionada ao aumento de tributação das pessoas que recebem acima de R$ 50 mil mensais, para que haja compensação da perda de receita com a possível isenção de quem ganha até R$ 5 mil, estimada em R$ 40 bilhões por ano.
Assim, apesar de ser algo positivo, na prática continuamos apenas com a promessa de elevação da faixa de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil, pois não há absolutamente nada de concreto acerca dessa medida até o momento.
É interessante que as pessoas percebam a diferença de tratamento dado aos interesses do setor financeiro e rentistas, tendo em vista que a cada 1% de aumento da taxa básica de juros SELIC pelo Banco Central, ele gera um gasto extra de R$ 55 bilhões por ano no pagamento de juros da dívida pública, mas não pede autorização para ninguém; e não fica obrigado a indicar compensação para esse gasto injustificável que, de fato, tem sido o responsável pelo rombo das contas públicas.
IHU – Haddad e Lula falam de um “pente fino” no BPC. Você concorda com a proposta de reavaliar o benefício ou ela vai acabar cortando direitos de idosos e pessoas com deficiência?
Maria Lucia Fattorelli – O chamado “pente fino” é uma rotina administrativa que já existe para evitar fraudes ou erros no pagamento desse benefício, que é destinado a pessoas idosas com idade igual ou superior a 65 anos que não conseguiram se aposentar e a pessoas com deficiência, em ambos os casos, com renda familiar de até 1/4 do salário mínimo por pessoa.
O que consta do pacote é outra coisa: a partir desse pacote será verificada a situação familiar dessa pessoa, incluindo-se o conceito de família para a apuração da renda para acesso ao benefício, computando-se inclusive outros benefícios recebidos por familiares, como Bolsa Família ou outro BPC, por exemplo, o que poderá prejudicar o acesso ao benefício. Esse novo cálculo será feito inclusive para familiares que não habitam com a pessoa que requer o BPC.
Conforme telas apresentadas pelo governo, “passam a contar para acesso: renda de cônjuge e companheiro não coabitante e renda de irmãos, filhos e enteados (não apenas solteiros) coabitantes”, e “em uma mesma família, a renda de um benefício volta a contar para acesso a outro benefício”.
É evidente que essa alteração irá dificultar o acesso ao benefício e poderá gerar uma situação em que a pessoa necessitada ficará dependente da caridade de familiares que possam ter alguma renda.
Enquanto isso, o maior gasto do país, referente a juros e amortizações do Sistema da Dívida que provocam o maior rombo às contas públicas e são responsáveis pelo déficit nominal histórico, segue sigiloso, sem nenhuma identificação dos detentores dos títulos públicos, apesar dos vários requerimentos de informações (com base na Lei de Acesso à Informação) feitos pela Auditoria Cidadã da Dívida. Essa é mais uma razão para se priorizar a auditoria da dívida pública.
IHU – O reajuste do salário mínimo será de acordo com o teto de 2,5%. Quais serão as consequências dessa nova regra fiscal? O salário mínimo irá se desvalorizar rapidamente
Maria Lucia Fattorelli – A limitação do crescimento real do salário mínimo ao parâmetro previsto na lei do arcabouço fiscal – de 0,6% a apenas 2,5% reais anuais – é um grave ataque a dezenas de milhões de trabalhadores, aposentados e beneficiários assistenciais. Se essa regra estivesse em vigor desde o início do Plano Real (julho de 1994), considerando-se o reajuste máximo possível de 2,5% reais ao ano, o salário mínimo atual seria de apenas R$ 1.095,10, e não os R$ 1.412 definidos em janeiro/2024. A regra vigente antes do início desse pacote é a definida na Lei 14.663/2023, segundo a qual o reajuste deveria corresponder à variação do INPC, acrescido da variação do PIB de 2 anos atrás. De acordo com essa regra, o próximo reajuste do salário mínimo seria de 2,9%.
Ao longo dos próximos 5 anos, a nova regra trazida pelo pacote apresentado por Haddad terá um impacto negativo de quase R$ 110 bilhões no salário mínimo, além dos reflexos em benefícios calculados com base nesse indicador.
Esse impacto retira uma parcela da renda da parcela mais vulnerável da população, que percebe salários baixos e depende de benefícios sociais. Por isso é de uma perversidade inaceitável, em uma país tão rico como o Brasil, e que está fazendo isso para não questionar o Sistema da Dívida, seus mecanismos injustificáveis e seus juros mais elevados do planeta.
Essa [restrição do acesso ao abono salarial] é outra perversidade inaceitável trazida por esse pacote. Desde que foi instituído, trabalhadores e trabalhadoras que recebem até 2 salários mínimos mensais durante o ano têm direito de receber o abono de 1 salário mínimo no fim do ano. Esse pacote irá eliminar paulatinamente o direito de trabalhadores(as) que recebem entre 1,5 e 2 salários mínimos. Dessa forma, dentro de poucos anos, somente quem recebe até 1,5 salário mínimo terá direito a esse benefício.
Segundo estimativa do próprio governo, a mudança irá economizar R$ 18,1 bilhões até 2030, ou seja, esse é o montante que deixará de ser destinado a esse grupo de trabalhadores que têm salário mensal entre 1,5 e 2 salários mínimos, e passará a ser destinado ao pagamento dos gastos financeiros com o Sistema da Dívida.
IHU – Algum outro ponto que você gostaria de comentar sobre a proposta?
Maria Lucia Fattorelli – Esse pacote tem o objetivo de reafirmar o compromisso do governo com a priorização dos gastos com juros e amortizações da chamada dívida pública, perseguindo a produção de superávit primário e a aplicação de teto para gastos sociais que atingem a parcela mais vulnerável da população.
Adicionalmente, o pacote traz prejuízos graves para o funcionalismo público, que já acumula perdas históricas decorrentes da falta de reposição inflacionária há anos. Com o pacote, se não for alcançada a arrojada meta de superávit primário e demais compromissos assumidos no arcabouço, não poderá haver um reajuste anual superior a míseros 0,6% acima da inflação, eternizando uma situação de perdas acumuladas, o que é inaceitável.
O pacote afeta também a área da Educação, na medida em que prevê cortar R$ 42,3 bilhões da verba destinada ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB até 2030, comprometendo a expansão do ensino em tempo integral para estudantes do ensino básico brasileiro. Segundo o governo, esse corte cria um “espaço fiscal no orçamento do MEC” e essa “economia” pode ser utilizada para outros fins, inclusive fora da educação. Até a Bolsa Família será atingida, pois o pacote prevê que os estados e municípios deverão observar o índice máximo de famílias compostas por uma só pessoa, inscritas no programa.
O pacote prevê ajustes na Previdência de militares, elevando, até 2032, a idade mínima para 55 anos (atualmente têm direito à aposentadoria após 35 anos de serviço), e para que a regra seja implantada seria implementado um pedágio para os que já estão próximos de se aposentar. Embora já exista uma lei nesse sentido, o pacote inclui uma reafirmação da necessidade de se obedecer o teto salarial do STF, atualmente em pouco mais de R$ 44 mil, para todo o funcionalismo. As entidades representativas de magistrados já estão se manifestando contra a medida.
O grande problema das contas públicas não é enfrentado pelo pacote. Os gastos com a chamada dívida pública é que têm provocado rombos e déficits nominais históricos, mas esse problema não é tocado pelo pacote; pelo contrário, é para priorizar os pagamentos dessa dívida que este pacote de cortes está sendo feito, prejudicando fortemente os trabalhadores, aposentados e beneficiários assistenciais, razão pela qual é urgente alavancar a luta pela auditoria integral dessa dívida, com participação social.
IHU – A senhora tem insistido que o debate sobre a dívida pública tem sido ignorado na discussão sobre o ajuste fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda. Segundo as auditorias fiscais, você diz que o rombo das contas públicas está ali. A revisão dos mecanismos envolvidos na dívida pública poderia ter como consequência outras propostas de ajuste fiscal? Quais?
Maria Lucia Fattorelli – O chamado “ajuste fiscal” tem sido feito por meio de cortes de gastos primários (que englobam todos os investimentos e gastos com a estrutura do Estado e os serviços públicos prestados à população) para que se consiga produzir o chamado “superávit primário”, isto é, uma sobra forçada de recursos. Os gastos com juros e amortizações da dívida pública não fazem parte dos gastos primários, por isso não são atingidos por esses cortes e ficam completamente liberados, apesar de representarem o maior gasto do orçamento federal e beneficiarem os super-ricos.
A sobra de recursos obtida com o superávit primário é destinada aos gastos com a dívida pública, aprofundando o seu privilégio à custa de sacrifícios sociais e do desmonte do Estado. O debate sobre a dívida pública tem sido ignorado na discussão sobre o ajuste fiscal proposto pelo governo, que mais uma vez adota a linha de perseguir o superávit primário, sacrificando gastos sociais importantíssimos, como mencionado antes.
De fato, temos afirmado que o rombo das contas públicas está nos gastos com o sistema da dívida, tendo em vista que nos seus 24 anos de luta a Auditoria Cidadã da Dívida tem comprovado isso. Anualmente, produzimos o gráfico do orçamento federal, denunciando o privilégio do Sistema da Dívida:
Gráfico: Auditoria Cidadã da Dívida
Evidentemente, se o governo enfrentasse os mecanismos que alimentam esse sistema, não precisaria estar apresentando esse pacote. Em lugar desse pacote, já poderíamos ter avançado com o PLP 104/2022, que limita os juros no Brasil, caso o governo apoiasse esse projeto. Poderíamos também ter iniciado a auditoria dessa dívida e enfrentado mecanismos como a bolsa banqueiro.
Mais do que nunca, é preciso lutar por uma auditoria dessa dívida, com participação social, para se investigar, por exemplo, a (i)legitimidade das taxas de juros, sob a falsa justificativa de combate à inflação. A taxa de juros, junto de outros mecanismos financeiros, é o principal fator de explosão dessa dívida, que não tem servido para financiar investimentos, como já declarou o Tribunal de Contas da União, mas para retirar recursos das áreas sociais.
IHU – O que é a bolsa banqueiro, que a senhora tem criticado?
Maria Lucia Fattorelli – É a remuneração que o Banco Central paga diariamente aos bancos sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles. Qual a justificativa para isso? Não há. É uma “bolsa”.
Atualmente, o montante de R$ 1,64 trilhão no caixa do Banco Central representa a sobra de caixa dos bancos; é um dinheiro que pertence à sociedade que mantém depósitos bancários ou aplicações financeiras. Esse dinheiro da sociedade deveria retornar a ela por meio de empréstimos para pessoas e empresas a juros baixos, a fim de dinamizar a economia com a ampliação de negócios e geração de emprego e renda. Mas não é isso que acontece. O Banco Central aceita o depósito dessa fortuna e paga diariamente a taxa SELIC ou até mais sobre este valor aos bancos, por meio das chamadas “operações compromissadas” ou “depósitos voluntários remunerados”.
Em 2023, o Banco Central gastou mais de R$ 220 bilhões para doar esses juros aos bancos, sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles. Por isso, denominamos esse pagamento de bolsa banqueiro. Dessa forma, mais uma vez os recursos da sociedade que poderiam e deveriam estar circulando, na forma de investimentos produtivos em benefício da própria sociedade, ficam retidos, esterilizados no Banco Central, provocando, ao mesmo tempo, danos irreparáveis à economia e à sociedade: escassez de moeda na economia, elevação dos juros de mercado, explosão da dívida pública e rombo aos cofres públicos.
A desculpa usada pelo Banco Central para esterilizar esse elevadíssimo volume de moeda tem sido o “controle inflacionário”, o que não tem base técnica ou científica alguma, tendo em vista que no Brasil o volume de moeda em circulação tem sido mantido em patamar de escassez, e, ademais, a inflação aqui decorre da elevação de preços administrados pelo próprio governo (combustíveis, energia, remédios, planos de saúde, entre outros) e dos preços de alimentos (devido a fatores climáticos e à priorização do grande agronegócio de exportação).
Apenas 1 ano de bolsa banqueiro seria suficiente para reparar todas as perdas acumuladas pelo funcionalismo público federal desde 2010, estimadas em R$ 158 bilhões.
IHU – Quando esteve na oposição, o PT criticou duramente o ajuste fiscal, mas, na atual gestão, o Ministério da Fazenda trabalha para aprovar um ajuste fiscal. O governo está optando pelo mesmo caminho criticado antes ou sugere algo novo, apesar do ajuste?
Maria Lucia Fattorelli – Infelizmente, o governo Lula optou por aprovar um Arcabouço Fiscal que representou praticamente uma cópia do teto de gastos sociais de Michel Temer, por um lado permitindo apenas um ínfimo aumento real de até 2,5% ao ano, desde que obedecidas outras regras instituídas pelo próprio arcabouço, como as metas de resultado primário e a necessidade de crescimento das receitas arrecadadas. Desta forma, o pacote serve para limitar investimentos sociais dentro do teto do “arcabouço”, dentro da lógica do “resultado primário”, ou seja, desconsiderando os gastos com juros da dívida, que ficam fora de qualquer ajuste fiscal.
IHU – No mês passado, a Câmara rejeitou incluir imposto sobre fortunas acima de 10 milhões de reais na reforma tributária. Se a proposta fosse aprovada, que impactos poderia ter sobre o ajuste fiscal?
Maria Lucia Fattorelli – A proposta de Imposto sobre Grandes Fortunas previa uma tributação anual ínfima: apenas 0,5% sobre as fortunas entre R$ 10 milhões e R$ 40 milhões; 1% para fortunas entre R$ 40 milhões e R$ 80 milhões, e 1,5% para fortunas acima de R$ 80 milhões. A arrecadação estimada foi de cerca de R$ 70 bilhões anuais, ou seja, seria um valor maior que todo o esforço fiscal do pacote apresentado pelo governo para cortar principalmente no salário mínimo.
A maioria dos deputados federais rejeitou a proposta, alegando descaradamente que isso iria penalizar os super-ricos. Diante desse posicionamento, o indicativo de que esse Congresso irá aprovar o pacote que penaliza pobres corre o risco de ser aprovado, ainda mais que conta com o aval do governo, que é o seu autor.
IHU – Por que a esquerda política tem dificuldades de oferecer propostas mais ousadas do ponto de vista social?
Maria Lucia Fattorelli – Essa pergunta deveria ser respondida por Lula. Em seu programa de governo em 2002, constava explicitamente o compromisso com a auditoria da dívida. Depois veio a famosa “Carta aos Brasileiros” e desde então ele os governos petistas não falaram mais do assunto.
E não cabe alegar a falta de correlação de forças. Essa teria que ser construída, mas tem sido deixada de lado quando o próprio governo toma iniciativa de apresentar projetos contrários ao que havia prometido, como a contrarreforma da Previdência em 2003 e o arcabouço fiscal em 2023, por exemplo. Falta no Brasil um processo de conscientização social, a exemplo do que foi feito durante a auditoria da dívida no Equador, em 2007-2008, quando o presidente anunciava em cadeia de rádio as conclusões da auditoria da dívida, feita com participação da sociedade local e internacional. O resultado lá foi a anulação de grande parte da dívida pública daquele país, em vez de cortar os investimentos sociais.
Governos de esquerda precisam tomar iniciativa de apresentar propostas ousadas e lutar por elas, dando importância a iniciativas sociais para limitar os juros, por exemplo, e para realizar auditoria da dívida. Se não o fazem quando chegam ao poder, acabam se desmoralizando.
IHU – Sobre o aumento da taxa SELIC, você disse em suas redes sociais que o “Banco Central está suicidando o Brasil”. Pode explicar quais são as principais consequências deste aumento?
Maria Lucia Fattorelli – No Brasil, as consequências decorrentes do aumento exagerado da taxa básica de juros SELIC são muito graves e atingem toda a economia: pessoas, empresas e setor público, tendo em vista que a SELIC influencia todas as demais taxas de juros praticadas no Brasil, como informa o próprio site do Banco Central.
Além de aumentar as despesas com juros na esfera pública, tendo em vista o impacto da SELIC sobre os gastos com a dívida pública, a elevação desta taxa afeta também as empresas e famílias que acessam empréstimos e financiamentos, travando toda a economia, como comprova a crescente desindustrialização nacional, a queda registrada pelo comércio e a deterioração dos empregos qualificados.
O Banco Central também esteriliza um volume elevadíssimo de moeda (bolsa banqueiro, já comentada antes), e ainda gasta centenas de bilhões para remunerar os bancos. Ao gerar uma falsa escassez de moeda na economia com essa esterilização de moeda, faz com que os juros de mercado se elevem ainda mais.
Foi o famoso economista Thomas Piketty que citou, em um de seus livros, que “não baixar juros em momento de crise seria um suicídio”. Aqui, além de não baixar juros, o Banco Central aumenta. E ainda por cima retira um volume absurdo de moeda de circulação e gasta para remunerá-la. É um suicídio econômico, como abordo em artigo publicado em 2016.
Um país rico com a imensa maioria da população pobre e até miserável (…) ao mesmo tempo, o país que paga os maiores juros do mundo e onde os bancos batem sucessivos recordes de lucro – Maria Lucia Fattorelli
IHU – Deseja acrescentar algo?
Maria Lucia Fattorelli – Considerando as imensas riquezas existentes no Brasil, sob todos os aspectos, inclusive cerca de R$ 5 trilhões em caixa (na Conta Única do Tesouro, no caixa do Banco Central e em reservas internacionais), não há outra razão para sacrificar ainda mais os direitos sociais e deixar tantas demandas sociais urgentes desatendidas, a não ser a subserviência completa ao Sistema da Dívida, que absorve todo ano quase a metade dos recursos do orçamento federal, afetando também os orçamentos dos demais entes federados, pois esse sistema consome toda a receita auferida com a venda de títulos públicos e ainda abocanha recursos de outras fontes, que deveriam estar financiando investimentos sociais.
O resultado dessa subserviência é visível: um país rico com a imensa maioria da população pobre e até miserável; um atraso socioeconômico vergonhoso, descaso ao meio ambiente, população desatendida em seus direitos sociais básicos, e, ao mesmo tempo, o país que paga os maiores juros do mundo e onde os bancos batem sucessivos recordes de lucro.
É preciso enfrentar urgentemente o Sistema da Dívida para que os recursos públicos sejam aplicados corretamente em nosso desenvolvimento socioeconômico de forma sustentável e respeitosa em relação aos direitos sociais e ambientais. A ferramenta hábil para esse enfrentamento ao Sistema da Dívida é a auditoria, com participação da sociedade, para que sejam interrompidos os seus mecanismos de desvio das riquezas produzidas pela classe trabalhadora para especuladores nacionais e internacionais.
Convido todas as pessoas para acessarem nossa página http://www.auditoriacidada.org.br e redes sociais.