“O primeiro movimento dessa sinfonia foi o apaziguamento do mercado financeiro”, avalia o economista
O novo marco fiscal sancionado pelo presidente Lula quinta-feira, 31-08-2023, que substituirá o teto de gastos instituído no governo Temer, em 2016, recebeu críticas ao longo dos últimos meses, ao propor que o gasto estatal possa crescer entre 0,6% e 2,5% acima da inflação. Classificado como "bote salva-vidas" e "cilada" por aqueles que esperavam mudanças mais robustas, o novo arcabouço fiscal – e as demais propostas de reformas em curso – precisa ser compreendido a partir das restrições que estão sendo impostas ao governo, argumenta o economista Luiz Gonzaga Belluzzo na entrevista a seguir concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
As restrições, explica, dizem respeito à necessidade de "fazer uma reverência ao mercado e às suas concepções" de desenvolvimento. "O que tenho observado é que o governo está tentando contornar essa situação de uma maneira muito prudente por causa do poder que os mercados financeiros têm de causar dano. Se se convencem que está tudo errado, eles começam a subir a taxa de juros a longo prazo, inclinam a curva de juros, o crédito fica mais complicado para quem precisa dele – já é complicado por conta do número de inadimplentes que o país tem", explica. Segundo o entrevistado, é preciso "medidas mais ousadas, mas isso está bloqueado. O governo está tentando contornar".
Um exemplo, pontua, é a ação política do presidente de tentar "atrair para sua base parlamentar os partidos que lhe eram hostis, o que é uma atitude que faz parte do enfrentamento das dificuldades políticas de uma democracia desigual como é a brasileira. Ao mesmo tempo, Haddad está tentando contornar as objeções, críticas e oposições no setor do sistema financeiro".
A próxima pauta do governo, que consiste em aprovar uma reforma tributária do Imposto de Renda, menciona, precisará "obter o beneplácito do Congresso. Essa vai ser a parte mais difícil. Corretamente, Haddad procurou ganhar essa batalha no Conselho de Administração de Recursos Fiscais – CARF, e ganhou. Além disso, ele está tributando os recursos que estão offshore. É importante que haja concordância nesse ponto e a aprovação do Congresso. Será difícil não aprová-la porque todo mundo vai ficar nervoso. O Congresso vai ser acusado de proteger os ricos – e não é sem razão que falam isso".
Na entrevista a seguir, o economista também comenta as recentes movimentações do BRICS, os limites do dólar como moeda de reserva e transação internacional, e a necessidade de "criar uma moeda internacional, coordenada por um ente internacional que possa nos permitir a liberdade, sem dificuldades, de execução de políticas domésticas, de proteção social, de avanço econômico mais equilibradas do que temos agora".
Belluzzo em conferência no IHU | Foto: Ricardo Machado
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – ILPES/CEPAL e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores das Faculdades de Campinas – Facamp, onde leciona. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (Facamp/Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Facamp, 2009), Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo (Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outros livros.
IHU – Na quinta-feira, 31-08-2023, o presidente Lula sancionou o marco fiscal que substituirá o teto de gastos em vigência desde 2016. O que essa mudança significa e pode representar em termos de investimentos sociais, considerando que agora os gastos podem crescer acima da inflação entre 0,6% e 2,5%? Isso será suficiente?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Vou começar respondendo a esta questão de maneira mais ampla para situar, do modo que vejo, o debate sobre o arcabouço fiscal, a reforma tributária, e como estas coisas podem afetar o desenvolvimento. Começo por isso porque precisamos considerar que o governo Lula foi eleito em uma situação muito peculiar. Ele teve uma diferença [de votos] muito exígua em relação ao seu competidor, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Essa é somente uma dimensão da dificuldade. As outras foram encontradas do ponto de vista do ambiente do debate econômico brasileiro, que está muito marcado por uma permanente tentativa de encurralar o Estado na sua capacidade de elaborar programas que ajudem a economia a ultrapassar a estagnação em que está metida. Não vamos nos enganar: desde 2015-2016, depois da experiência Joaquim Levy, a economia trotou, andou muito devagar. A taxa de crescimento foi muito baixa, na média de 1,5 ou 1,6% e, neste ano, havia uma previsão de 2,5%, mas não tenho certeza de que isso se realizará. Estou observando os dados do superávit primário e os jornais já notam a queda da receita fiscal e o aumento da despesa, o que é sinal de uma economia um tanto quanto enfraquecida.
Para discutir o arcabouço fiscal, precisamos olhar para as restrições que estão sendo impostas – do ponto de vista das concepções de economia e política econômica que estão arraigadas no mercado e em boa parte da classe média, da mídia – e que, na verdade, obrigaram o governo a transitar do teto de gastos, que já era uma impropriedade desmoralizada, para um arcabouço um pouco mais flexível, o que significa que é necessário fazer uma reverência ao mercado e às suas concepções. Eu diria que, ouvindo as notícias a respeito da aprovação do marco fiscal, do comportamento do Congresso etc., fiquei impressionado com a repetição de reverência que os apresentadores da Globo News e da CNN prestam ao mercado. Eles dizem: “os especialistas falam isso, falam aquilo”. Esta é uma forma de constranger – este não é um fenômeno desconhecido porque vários episódios desse tipo se repetiram; o pior deles foi na década de 1930, na Alemanha, com a gestão do chanceler [Heinrich] Brüning que, depois da crise de 29, resolveu tomar atitudes de austeridade para agradar os mercados de modo que eles voltassem à Alemanha. Ele não entendeu a gravidade da crise e a situação terminou com a eleição de Hitler.
O que quero dizer é que essas restrições voltam a se repetir. Veja o que está acontecendo com [Joe] Biden nos Estados Unidos. Ele protagonizou um programa de gastos de estímulos à economia, tentando salvaguardar a situação americana, e recebe o auxílio dos republicanos. O que quero observar é que esses constrangimentos que são impostos à ação do governo Lula agora, que estão sendo respondidos com muita habilidade pelo próprio Lula, pelo Haddad e outros componentes do governo, devem ser entendidos como uma dimensão da economia que é pouco lidada porque os economistas estão habituados a regrinhas: se, na verdade, tem déficit, está tudo errado. Mas isso vem de uma advocacia a respeito da economia que considero bastante imprópria e inadequada para uma economia capitalista-monetária-financeira. Mas aí teríamos que partir para uma exposição a respeito da natureza dessa economia. Por exemplo, quando leio que a receita fiscal caiu, por que ela caiu? Se a economia estivesse crescendo, ela certamente subiria; só se arrecada imposto se tem fluxo de renda. O imposto não preexiste à formação da renda. Não se tem o recurso do imposto para gastar; na verdade, só se tem o recurso de imposto porque outras categorias sociais na sociedade gastaram. O pessoal não se dá conta disso, mas esta é uma das dificuldades: tratar a circulação da renda como se fosse uma situação de uma residência, de uma família e não é assim; é um sistema que tem um conjunto de relações que estão articuladas através do circuito monetário, ou seja, o gasto de um é a receita de outro. É assim que funciona. Vários protagonistas, proprietários de recursos, de empresas, gastam pagando seus trabalhadores, fazendo investimentos e isso gera o circuito da renda. Assim como o Estado gasta antes de arrecadar. O pessoal fica nervoso porque se não gasta, o circuito da renda não gira. É isso que me preocupa. Mas o governo está tentando fazer um trabalho de coordenação, respeitando essas restrições políticas e ideológicas de visão de mundo, que não são removíveis.
IHU – Apesar destes constrangimentos externos, o que a sanção do marco fiscal pode significar em termos de novos investimentos sociais? Essa é uma demanda de muitos setores da sociedade que votaram no presidente e esperam algo diferente deste governo.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Esse é o processo do caminhar. Claro que no arcabouço fiscal se flexibilizaram os parâmetros e isso permite mudanças. Em um primeiro momento, foi apresentada uma relação entre os parâmetros, que, na verdade, são um tanto quanto restritivos, mas têm espaço ali para mudar, discutir, etc. Ele é muito mais flexível do que era o teto de gastos. Esse é um primeiro passo. Mas vamos admitir, por exemplo – e o PAC está neste caminho –, que a economia tenha um crescimento bastante modesto este ano. Isto vai suscitar uma discussão muito séria. Em minha opinião, o primeiro movimento dessa sinfonia foi o apaziguamento do mercado financeiro. Mas, como se sabe, esse primeiro movimento pode desencadear um crescimento baixo, o qual vai suscitar questionamentos dentro do próprio governo a respeito da conveniência ou inconveniência. Aí, o que tem força não é o debate econômico stricto sensu, mas a capacidade política de reorganizar as relações de poder que estão dentro da economia. O poder do mercado financeiro, até pela função que cumpre, é excessivo e sempre foi assim em todas as crises financeiras. Basta dizer que, depois da crise de 29, JP Morgan impedia que os seus secretários levassem os jornais para dentro [da sua sala] sem antes recortar a figura do [Franklin] Roosevelt, porque ele tinha ataques de fúria quando via a figura deste presidente. O presidente do Banco Central à época dizia [ao JP Morgan] que a única instância que pode criar liquidez é o Banco Central, então ele deveria ficar sossegado. Isso é assim em todos os momentos da vida econômica. Se você perguntar para o economista o que se deve fazer, ele vai responder “isso, aquilo...”, como se ele fosse um deus. Só que não é assim.
IHU – As restrições políticas e ideológicas, seja do mercado ou de parcelas da sociedade, são inevitáveis, independentemente do projeto do governo? Quais são as dificuldades de enfrentá-las? Há algum tempo é feita uma crítica aos governos progressistas, no sentido de que há uma expectativa de que eles façam algo diferente em comparação a outros governos.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Existe um ditado italiano que diz: “piano, piano, se va lontano”. Isto é, devagar se vai ao longe. O que está acontecendo é que as restrições, as convicções e os convencimentos são de tal ordem – não só no Brasil, mas no mundo inteiro –, que têm força material, força política. Dei o exemplo da Alemanha em 1930. Isso é complicado. Por isso mencionei os jornalistas e economistas que falam na televisão, porque isso conforma uma espécie de consenso em torno das coisas.
O que tenho observado é que o governo está tentando contornar essa situação de uma maneira muito prudente por causa do poder que os mercados financeiros têm de causar dano. Se se convencem que está tudo errado, eles começam a subir a taxa de juros a longo prazo, inclinam a curva de juros, o crédito fica mais complicado para quem precisa dele – já é complicado por conta do número de inadimplentes que o país tem; o Brasil está com o sistema de crédito travado porque tem um grau de inadimplência nas famílias, nas empresas e no comércio e isso gera um grau de risco muito grande. Precisaria de medidas mais ousadas, mas isso está bloqueado. O governo está tentando contornar. Lula está tentando atrair para sua base parlamentar os partidos que lhe eram hostis, o que é uma atitude que faz parte do enfrentamento das dificuldades políticas de uma democracia desigual como é a brasileira. Ao mesmo tempo, Haddad está tentando contornar as objeções, críticas e oposições no setor do sistema financeiro.
Por que o sistema financeiro é importante? Porque na economia capitalista-monetária-financeira é ele o responsável por alocar o recurso. As visões e opiniões que ocorrem no mercado financeiro podem bloquear um comportamento mais adequado da taxa de juros para que a economia possa se recuperar e o crédito possa crescer – como na verdade estão bloqueando, através do Roberto Campos Neto, não por maldade, mas porque eles [do mercado financeiro] têm essa concepção.
IHU – Além desse exemplo que o senhor menciona, quais são as concepções de economia e desenvolvimento da sociedade, da classe média, da mídia, do mercado? Como essas concepções se contrapõem ao projeto do governo e qual é o projeto econômico do governo? Não é tão claro qual é o projeto de desenvolvimento do governo diante das divergências no interior dos ministérios.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Qualquer que seja o governo, essas divergências vão existir. A visão do Lula é bem alinhada com o que podemos chamar de um projeto de desenvolvimento, de industrialização. Mas exatamente o que ele está tentando é reforçar a base parlamentar e vai ter muita negociação em torno disso para poder passar os projetos, como os do PAC. Os projetos do PAC vão exigir que haja um maior esforço governista no desenho dos projetos e nas condições de financiamento. Quando falo dos projetos do PAC, também penso no realinhamento do BRICS, que significa um fortalecimento bastante importante do grupo porque se está criando um ente coletivo com alguns propósitos e projetos. Um deles é criar uma zona monetária especial para permitir as transações e os financiamentos entre esses países.
Muitas pessoas não levam em conta isso, mas alentar o banco dos países do BRICS é um interesse muito grande da China. O pessoal diz que quem vai mandar nisso é a China e a moeda chinesa. Mas, no dólar, não é os EUA quem manda? São os EUA quem mandam no dólar. O que torna cada vez mais difícil a permanência do dólar como moeda-reserva é exatamente o fato de que os americanos colocam, à frente dos interesses de conjunto da economia global, os seus interesses – como não poderia deixar de ser. O grande problema para o sistema monetário internacional é o fato de ter uma moeda internacional que funciona como moeda-reserva e de transação no mundo inteiro. Isso é um obstáculo que [John Maynard] Keynes queria enfrentar em Bretton Woods, criando uma moeda efetivamente de transação entre os países para permitir o financiamento de déficits e o controle dos países superavitários, para gerar estabilidade que envolva a manutenção do poder dos países participantes de realizar suas políticas nacionais. Uma das questões que está sendo tratada pelos economistas é o fato de que o movimento de capitais e a abertura financeira submete os países de moedas não conversíveis, como é o caso do real brasileiro. Nem vou falar do peso argentino, que já é um caso escandaloso de degradação monetária.
O Brasil tem uma situação diferente da Argentina porque acumulou reservas graças aos primeiro e segundo governos Lula. Há uma hierarquia entre as moedas. A moeda-reserva internacional é a que comanda a relação das outras moedas. Há uma volatilidade enorme entre elas. O real brasileiro está se valorizando em relação ao dólar. Está se mantendo em uma posição de R$ 4.80 e está com uma estabilidade. Keynes disse para criar um Banco Mundial como tentativa de disciplinar e organizar o movimento de capitais para os países, ou seja, para não deixar esta tarefa para o mercado, que o faz de maneira danosa e desorganizada para os países sem moeda conversível.
Em relação à inflação, o choque de oferta dos combustíveis, por exemplo, se espalha para o mundo inteiro. Isso acontece também com as taxas de câmbio dos países que têm moeda não conversível. Ou seja, elas explodem e contaminam o desenvolvimento econômico com a inflação. Quando ocorreu esse choque de oferta, como os bancos centrais reagem? Sobem a taxa de juros. É como se você tivesse uma forte cólica intestinal e tomasse um remédio fortíssimo para dor de cabeça. Certamente você vai continuar sentindo as dores e vai ter um problema difícil de resolver do ponto de vista da sua situação de bem-estar. O exemplo disso é a estreiteza das políticas econômicas decorrentes de uma estreiteza da visão convencional a respeito de quais são as causas da inflação. Dizem que a inflação é sempre um fenômeno monetário. Mas existe alguma relação na economia que não seja monetária? Conhece alguém que sobreviva sem dinheiro na economia? A pessoa pode sobreviver dois dias, mas não uma semana sem dinheiro. Sem dinheiro, o indivíduo não existe econômica e socialmente. Como já disse Karl Marx de maneira interessante: os preços são formados pelas decisões das empresas, mas é a quantidade de moeda que se ajusta aos preços que estão sendo decididos.
Isabella Weber, que esteve no Brasil recentemente, escreveu um artigo sobre inflação. Ela disse que a formação de preços é um poder de fixação de margens por parte das empresas mais fortes. Isso já foi discutido no passado, mas passou para o banco de trás da história e ninguém mais fala a respeito, porém é um ponto importante para julgar a formação de preço. É uma dimensão relevante da teoria econômica que não querem explicar, mas os fatos são relevantes: há um choque de oferta de combustíveis, que se espalha pela economia inteira e gera uma reação dos formadores de preço, que começam a reajustar as margens. Isso vira um processo porque os que são partidários da inflação inercial dizem que o processo inflacionário continuado dá passagem do passado para o presente. Mas isso não existe. Olha-se para o futuro. Por que se olha para o futuro? Porque quando se desencadeia um processo inflacionário, como o que observamos, o formador de preço olha para frente e reajusta os preços, tentando imaginar o que vai acontecer adiante. Se ele acha que a inflação vai acelerar, ele mesmo produz uma aceleração na inflação. Então existe esse problema observado em todas as dimensões do debate econômico, que é o estreitamento da visão econômica, que acaba constrangendo. Esse é o exemplo típico e inarredável.
Muitos pensam que estes fatores não têm nada a ver com o modo como as economias estão funcionando hoje. No entanto, eles têm a ver porque constrangem, porque impedem que se use o potencial que as economias têm entre o setor privado e o setor público, ou seja, a capacidade que teriam para avançar na redução das desigualdades, no aumento da produtividade. Muitos falam em aumento de produtividade como se fosse uma ação do Espírito Santo. O aumento da produtividade é uma coisa sistêmica. Como se aumenta a produtividade em uma economia industrial? Aumenta-se pela eficiência das empresas, pela maior participação de tecnologias mais avançadas. É preciso tratar sistemicamente dessas questões.
IHU – Os constrangimentos externos que o senhor menciona têm relação com as disputas internas do governo em relação ao modelo de desenvolvimento que se quer seguir? Por exemplo, recentemente o ministro Alexandre Silveira defendeu a exploração de pré-sal na Foz do Amazonas, enquanto o ministro Fernando Haddad discursou sobre o “desenvolvimento econômico e social caminharem de mãos dadas com a preservação ambiental”. O que esta tensão significa no modo do governo prospectar o desenvolvimento do país? Os constrangimentos externos que o senhor menciona se sobrepõem a essas disputas internas?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Não se sobrepõem; na verdade, eles estão articulados. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é a mesma coisa [risos]. O problema é que houve situações de relações externas da economia brasileira muito distintas ao longo da história, sobretudo da história recente do pós-guerra. No regime de Bretton Woods, o controle de capitais era muito mais recomendado e aceito pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, na cláusula quarta do seu estatuto. Com a abertura financeira proposta e executada pelos americanos, sobretudo a partir da década de 1980, os países de moeda não conversível ficaram muito sucessíveis. O movimento do BRICS tem a ver com isso. Na verdade, vejo muitas pessoas dizendo que o dólar nunca vai deixar de ser a moeda internacional, o que gera a falta de noção do que aconteceu ao longo da história do capitalismo, como, por exemplo, depois da Primeira Guerra Mundial, quando a libra perdeu a posição de moeda hegemônica e de reserva. Ela foi perdendo para o dólar. Ela repartiu com o dólar a função de moeda-reserva durante muito tempo e, depois da grande depressão de 1930, o dólar desbancou completamente a libra.
O que está acontecendo com o BRICS é o reflexo da inconsistência e da incapacidade do sistema monetário de prover os países com condições de desenvolvimento que permitam uma melhoria de vida das populações. Esse é um descontentamento que não vai parar; vai avançar. Até porque surgiu outro protagonista que pode ajudar que isso se transforme. Muitos dizem que ficaremos dependentes da China. A questão é que isso é avançar em uma direção melhor. Precisamos criar uma moeda internacional, coordenada por um ente internacional que possa nos permitir a liberdade, sem dificuldades, de execução de políticas domésticas, de proteção social, de avanço econômico mais equilibradas do que temos agora.
IHU – É uma proposta complexa. O quão difícil é os países chegarem a um acordo sobre a moeda?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Em Bretton Woods, Keynes já não propôs isso?
IHU – A Organização das Nações Unidas – ONU é a tentativa de resolver parte dos conflitos globais e nacionais através de um organismo internacional, mas a resolução dos conflitos sempre chega a impasses, com algum ator querendo dominar a questão.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim. É verdade. Você tem toda razão, mas não custa tentar. O dólar está em risco como moeda-reserva. Tem que observar o movimento de transformação que está ocorrendo, que é muito claro. O BRICS não surgiu por acaso; ele é fruto da incompatibilidade do exercício do poder do dólar e dos projetos de desenvolvimento dos países mais frágeis.
IHU – Como avalia a discussão em torno da reforma tributária? Ainda nem se discutiu a questão da renda e algumas entidades, representando profissionais liberais, apresentaram uma proposta de tratamento diferenciado na reforma tributária para seus setores. O que isso significa e indica sobre o modo como se compreende a função da reforma tributária no país? É uma disputa para ver quem perde menos, quem paga menos imposto?
Luiz Gonzaga Belluzzo – É isso mesmo. A reforma tributária que não teve questionamento de oposição foi a de 1965-1966, em pleno regime militar. Foi feita uma reforma autoritária, que não era ruim; estava sintonizada com o momento vivido. Na ocasião, criou-se o Imposto sobre Valor Agregado – IVA, fez-se uma redistribuição dos entes federativos, etc. Depois, no andar da carruagem, com o tempo foram sendo adicionados novos impostos e a reforma de 65 foi desconfigurada. É muito difícil fazer uma reforma tributária justamente por isso, porque não existem só as categorias sociais, como os profissionais liberais, mas também os estados e municípios que, na verdade, têm que ser contemplados na reforma.
Essa reforma está feita, por enquanto, apenas em cima do consumo e dos serviços. É preciso obter o beneplácito do Congresso para fazer a reforma do Imposto de Renda. Essa vai ser a parte mais difícil. Corretamente, Haddad procurou ganhar essa batalha no Conselho de Administração de Recursos Fiscais – CARF, e ganhou. Além disso, ele está tributando os recursos que estão offshore. É importante que haja concordância nesse ponto e a aprovação do Congresso. Será difícil não aprová-la porque todo mundo vai ficar nervoso. O Congresso vai ser acusado de proteger os ricos – e não é sem razão que falam isso.
A reforma do Imposto de Renda é muito importante porque a alíquota marginal de I.R. no Brasil, que é 27,5% para a faixa de renda mais alta, é muito baixa. Nos Estados Unidos, é cerca de 34% e nos países europeus, sobretudo Dinamarca e Suécia, a alíquota é ainda mais alta. Mas é o que restou, de maneira debilitada, da social-democracia. Houve tantas tentativas de fazer a reforma tributária, mas não foi alcançada por problemas federativos e resistências dos mais aquinhoados. Em uma reunião em Davos, os ricaços americanos propuseram que eles fossem mais taxados porque eles mesmos acham que a coisa está excessiva.
IHU – O Brasil está mudando de rota ou tentando mudar de rota? Que balanço faz dos primeiros meses do governo Lula?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Sim, é muito claro que está tentando mudar de rota. Os vetores do debate mudaram muito, mas tenho que repetir que isso tem que ser feito dentro das circunstâncias da vida social e política brasileira, que são aquelas que mencionei anteriormente, das oposições, das dificuldades. O Brasil sempre foi assim. No primeiro governo Lula, o presidente escreveu a Carta ao povo brasileiro, teve que colocar o [Antonio] Palocci de ministro e outros conservadores no Ministério da Fazenda. Depois, no segundo governo, ele conseguiu avançar mais, a economia cresceu, acumulou reservas, gerou uma situação fiscal favorável, teve superávit primário em todos os anos, exceto 2014, quando o déficit foi pequeno. Depois veio Joaquim Levy, que iria fazer um ajuste e produziu uma recessão de 3,8% em 2015 e de 3,3%, em 2016. Fez um ajuste que aumentou o déficit primário para 2.5 do PIB; foi a proeza do ajustamento.