10 Dezembro 2024
O governo concebeu um instrumento que vai contra a principal marca dos governos petistas: apreciação do salário mínimo e investimentos em saúde e educação.
O artigo é de Bianca Valoski, doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global e servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas, publicado por Opera Mundi, 07-12-2024.
No dia 27 de novembro o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de cortes de gastos do governo federal e alterações no Imposto de Renda. Mas de fato o que foi encaminhado para a Câmara dos Deputados em regime de urgência foram o PLP 210/24 e o PL 4.614/24. O primeiro altera o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) e o segundo é um pacote que ajusta o crescimento do salário mínimo, estipula cortes (o governo está chamando de “pente fino”, um eufemismo) no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e diminui o acesso ao Abono Salarial e ao Seguro Desemprego. Sobre os cortes nos super salários do funcionalismo público e as modificações no Imposto de Renda, medidas positivas e interessantes para combater a desigualdade no Brasil, ficou uma espécie de “na volta a gente compra”: não há previsão exata de quando essas medidas serão propostas no legislativo, o que é lamentável, a julgar que estes foram os únicos aspectos positivos do pronunciamento do ministro.
Quando o NAF foi criado – e aqui é importante destacar que o governo poderia ter feito qualquer modelo de ferramenta de balizamento do gasto público, uma vez que era de sua competência a concepção de um mecanismo que substituísse o Teto de Gastos do Temer – optou-se por apresentar ao legislativo um arcabouço agressivo e que atende muito mais aos interesses da Faria Lima de um Estado completamente limitado do que qualquer outra coisa. Para se ter uma ideia, o próprio Temer elogiou o NAF. Além disso, desde a aprovação do NAF, já se sabia que ele é aritmeticamente incompatível com a política de valorização do salário mínimo e com os pisos constitucionais de saúde e educação. Isto é, o governo concebeu um instrumento de enquadramento da política fiscal que vai contra aquilo que já foi a principal marca dos governos petistas: apreciação do salário mínimo e investimentos em saúde e educação.
Mas voltando aos PLP 210/24 e PL 4.614/24, quero focar na questão da revisão sobre o crescimento do salário mínimo e o suposto “pente fino” no BPC. A principal proposta do pacote é limitar o reajuste do salário mínimo às regras do arcabouço fiscal, com aumentos entre 0,6% e 2,5% ao ano. Em 2023, o governo Lula retomou a política de ajuste do mínimo baseado na inflação do ano anterior e no crescimento do PIB de dois anos antes. Para 2025, o PIB de 2023 (2,9%) seria usado no cálculo, mas o teto do arcabouço fiscal restringe esse aumento a 2,5%, reduzindo o potencial de valorização do salário mínimo. Se essa regra de limitação para o crescimento do salário mínimo estivesse valendo desde 2003, ele seria cerca de 25% menor do que é hoje – R$1.412,00 –, isto é, inferior a R$1.000,00. Em seis anos dos primeiros governos de Lula, o salário mínimo teve aumentos reais (acima da inflação) de 8,23%, 13,04%, 5,10%, 4,03%, 5,79% e 6,02%. Restringir o ganho real do salário mínimo ao NAF (2,5%) é ir contra o que já foi uma política petista e, pior ainda, submeter a um estrangulamento à renda de 60% dos brasileiros que ganham até um salário mínimo, além de limitar este instrumento de desenvolvimento e distribuição de renda, uma vez que ele também serve como referência para diversos benefícios, tais como abono salarial, BPC e seguro-desemprego.
Mas o mais perverso de todo o pacote é o suposto “pente fino” no BPC, que podemos aqui chamar de cortes mesmo. Esses cortes no BPC impactam cerca de 1,2 milhão de beneficiários, sendo eles idosos e pessoas com deficiência cuja renda familiar per capita não ultrapasse um quarto do salário mínimo (R$353,00). Além da revisão nos cadastros, o governo estabeleceu novos critérios para o acesso ao benefício, como a exigência de registro biométrico e o inominável retrocesso que é fazer o BPC voltar a contar como renda dentro de um mesmo domicílio, isto é, em um lar com dois idosos que recebam o benefício, apenas um poderá ter BPC. Uma idosa com um filho com deficiência só poderá contar com um BPC. Importante destacar que o “pente fino” já começou e tem dificultado o acesso ao BPC, tendo bloqueado 300 mil pessoas pelo Brasil. Sob o argumento de prevenir fraudes, o governo iniciou uma revisão detalhada, exigindo atualização no Cadastro Único (CadÚnico). Essa medida bloqueou o acesso de milhares de beneficiários, especialmente os mais vulneráveis, como analfabetos ou pessoas sem acesso à internet e mobilidade limitada. Apenas 60,3% dos 505,1 mil beneficiários obrigados a atualizar seus dados conseguiram cumprir as exigências. A suspensão do BPC afeta drasticamente a qualidade de vida dessas famílias, que dependem dele para necessidades básicas como alimentação e moradia.
15.08.2022 – Lula e Haddad falam para estudantes na USP (Foto: Ricardo Stuckert)
Em uma Nota Pública sobre as medidas anunciadas por Haddad e os seus impactos na população mais pobre e vulnerável, o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS) declara que o “Pente Fino”, “remete a uma prática fiscalizatória e persecutória de criminalização da população mais pobre e que vive do trabalho, impactando especialmente nas mulheres, crianças, população negra, pessoas com deficiência e idosas. Outro ponto de preocupação é o fato de as mudanças anunciadas terem o nítido objetivo de limitar o acesso ao benefício e reduzir sua cobertura, representando mais uma barreira para que pessoas idosas e com deficiência acessem um direito conquistado através de lutas coletivas. Lutas essas também personalizadas através das mulheres cuidadoras”. O Conselho Federal de Assistência Social também se manifestou contra o pacote do Ministério da Fazenda, alertando que cortes no BPC geram fome. Interessante que em 2019 o PT também se colocou contra este tipo de medida. O que mudou de lá para cá?
A Faria Lima grita que sem ajustes atrás de ajustes fiscais a economia vai quebrar, enquanto que não se pronuncia sobre as inúmeras renúncias e benefícios fiscais que as grandes indústrias e o agronegócio têm, e muito menos sobre os altíssimos juros da dívida pública. Esse pacote anunciado por Haddad faz coro ao que a Faria Lima quer e esmaga a camada mais vulnerável da população, além de que, como o próprio ministro afirmou, se forem necessários mais cortes, serão feitos. E enquanto o NAF perdurar, acreditem, isso vai acontecer, pois o governo enfrenta um dilema ao tentar conciliar duas agendas econômicas contraditórias: uma voltada para distribuição de renda e estímulo ao crescimento, e outra que busca reduzir a presença do Estado na economia, como exigido pelo arcabouço fiscal e a Faria Lima. A desigualdade é intrínseca ao sistema capitalista, mas pode ser atenuada com escolhas orçamentárias que priorizem as políticas públicas, o que não é o caso do pacote anunciado por Haddad.
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Cortes no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e limitação do salário mínimo: um retrocesso na inclusão social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU