05 Dezembro 2024
Como reagir a tamanha fúria violenta do patriarcado que com seus longos tentáculos se espraia nos calabouços autoritários das Forças Armadas e das Polícias Militares, na arrogância elitista das empresas transnacionais e das bolsas de valores, no pseudo discurso religioso-fundamentalista e machista dos conservadores que querem submeter as mulheres e seus corpos? Entregar-se com descrença e resignação não é uma opção. O que diz a pensadora feminista Vergès sobre o Estado pode ser transmutado para o sistema patriarcal, que se utiliza da manipulação do medo para exercer seu controle.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“No princípio era o Império, o império se considerava divino, ou seja, autorizado e legitimado por Deus e esse império agia como sendo o próprio deus”[1], reescreveu provocadoramente Marcelo Barros. “Assim”, continua o monge amigo de Dom Hélder Câmara, “pode começar nossa história, ou seja, a história do martírio nos diversos países da Abya Yala, a nossa pátria grande”. No fim de mais um ano, notícias aterradoras impõem-se em uma velocidade desconcertante. Não seria melhor cair no sono dos alienados ou entrar na realidade paralela pintada no vídeo recém-publicado pela Marinha do Brasil?
Ao chegarmos em dezembro, homenageamos os Marinheiros e Fuzileiros, que abdicam de suas famílias e dos momentos de lazer para proteger as riquezas do Brasil no mar. #DiaDoMarinheiro #VemPraMarinha pic.twitter.com/ItibdCLh3j
— Marinha do Brasil (@marmilbr) December 1, 2024
A violência sob qual o país foi construído cobra o seu amargo preço em uma sucessão de fatos chocantes. A força do patriarcado autoritário mostra-se desde o espírito golpista da caserna e os brutais casos de truculência policial, passando pela sanha ensandecida de controlar os corpos femininos até a onipresente ideologia neoliberal sempre ávida por cortes de gastos sociais. São todas representações do mesmo poder concentrado nos punhos de uma diminuta classe de homens brancos, herdeiros de uma herança colonial. Nesse sentido pontua Barros:
“É claro que no decorrer da história do continente, esse império foi mudando de nome ou de rosto. Eram os impérios de Portugal e Espanha e a partir do século XIX passou a ser a Inglaterra e no nosso século tomou a cara política do governo dos Estados Unidos da América, mas em nossos dias nem tem rosto. É marca anônima das multinacionais e do capital internacional”.[2]
A proclamação da República, há 135 anos, ocorreu por meio de um golpe dos militares, com o apoio da elite agrária que já governava o país, insatisfeita com a abolição da escravatura. Em 1964, após novo golpe empresarial-militar, o editorial de um jornal estadunidense confessava alguns dos interesses econômicos espúrios que levaram os Estados Unidos a patrocinar o retrocesso: “eis aqui uma situação em que um bom e efetivo golpe de Estado, no velho estilo, de líderes militares conservadores, pode servir aos melhores interesses de todas as Américas”[3].
Nas últimas semanas, o país confirmou, segundo os indiciamentos da Polícia Federal, que as ameaças à democracia proferidas pelo ex-presidente da República não eram mero discurso vazio e inofensivo. Em 2022 mais uma vez figuras de alta patente das Forças Armadas participaram de uma perigosa e concreta conspiração para pôr fim ao duramente conquistado Estado Democrático de Direito. Como se não bastasse, integrantes das forças especiais planejaram matar o então presidente eleito, o seu vice e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Não satisfeitos, os inimigos da democracia articulam uma imoral anistia no Congresso – que a qualquer momento pode ser descongelada em razão de negociatas envolvendo o PL de Bolsonaro e o apoio na próxima eleição para a presidência da Câmara –, tanto aos terroristas do 8 de janeiro de 2023, como aos envolvidos na recém revelada tentativa golpista. A velha lógica do inimigo interno persiste no imaginário militaresco e continua a ser acintosamente reproduzida nas academias militares.
Diante disso, a arte surge como um respiro de esperança e um antídoto ao preocupante esquecimento. O primoroso filme “Ainda Estou Aqui”, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, é um importante lembrete de que lutar pela preservação da memória e pela reparação dos crimes da ditadura é imprescindível para que tais eventos não se repitam jamais! O país deve muito a mulheres como Eunice Paiva e Clarice Herzog, corajosas testemunhas da verdade que o discurso da extrema-direita deseja ardentemente suplantar.
A mesma mentalidade de impunidade e conivência com a cultura da violência está, infelizmente, impregnada nas Polícias Militares Brasil afora. A alegação de que o brasileiro é um ser naturalmente pacífico, não passa de uma falácia. Conforme Elliot Aronson e Joshua Aronson, “nós, humanos, provamos que somos uma espécie particularmente agressiva”. Mesmo porque “nenhum outro animal, de forma tão consciente e arbitrária, agride, tortura e mata membros de sua própria espécie”[4]. Ainda assim, é escandaloso deparar-se com inúmeros casos de execução sumária por parte daqueles que deveriam proteger a população.
Apenas para citar os últimos episódios de repercussão nacional, entre eles estão o assassinato de um mototaxista em Camaragibe (PE) pelo fato de o policial ter se negado a pagar a corrida de 7 reais, além de um homem ter sido arremessado de uma ponte, por agentes de segurança, na periferia de São Paulo (SP). Por sinal, a Polícia Militar paulista vem batendo recordes escabrosos no número de mortes cometidas por policiais militares, no atual governo do “técnico” Tarcísio de Freitas.
Até 17 de novembro deste ano houve um aumento de 46% nos já estratosféricos índices de “mortes em conflito policial”. A reação dos chefes dos Executivos estaduais e de seus secretários de Segurança Pública beira à indiferença hipócrita quando não o completo desprezo pela vida humana. Defendem-se com escusas estapafúrdias, dizendo se tratar de “incidentes isolados”. Tal insensibilidade comprova, principalmente, o baixo valor das vidas de pessoas negras e empobrecidas.
Há pouco, o comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo veio a público dizer que os agentes que jogaram o homem de uma ponte cometeram um “erro emocional”. Não! Não se trata aqui de uma mera falha, erro ou sequer descontrole emocional, senhor coronel. Isso que ocorreu, e acontece sistematicamente nos batalhões da PM, se chama tortura, homicídio, abuso de autoridade. E essas condutas são crimes graves, inconcebíveis em uma sociedade democrática.
Enquanto isso, as forças políticas do atraso trabalham com afinco no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou a PEC do Estupro. Trata-se de uma iniciativa que faz o país voltar ao ano de 1940, quando se autorizou a interrupção da gravidez nos casos de abuso sexual e de risco de vida para a mãe. A iniciativa é cruel para as mulheres em uma realidade com altos índices de crimes sexuais, especialmente para meninas e adolescentes.
Em um cenário de generalizado feminicídio e violência doméstica, nunca foi tão necessário um movimento feminista aguerrido e assertivo, com um aprofundado trabalho de conscientização de jovens que se veem cada vez mais enredadas em inaceitáveis discursos misóginos. Aquilo que Vergès defende como feminismo de política decolonial, contra “uma manifestação da violência destruidora suscitada pelo capitalismo”[5]:
“‘O feminismo envolve muito mais do que a igualdade de gênero. E envolve muito mais do que o gênero’, lembra Angela Davis. Ele também ultrapassa a categoria ‘mulheres’, fundada sobre um determinismo biológico, e atribui novamente à noção de direitos das mulheres uma dimensão política radical: levar em conta os desafios impostos a uma humanidade ameaçada de desaparecer”[6].
A exploração econômica do patriarcado colonizador é antiga. “A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder”, denunciou Eduardo Galeano. “Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta”[7].
Tributários de idêntica perspectiva, o “mercado financeiro” – esse insaciável senhor concentrador de riquezas – não parece contente com o menor índice de desemprego em dez anos, nem com um crescimento anual do PIB de mais de 3%. Sua ira se dirige à recomposição de carreiras públicas sucateadas nos últimos anos e aos investimentos em saúde e educação.
Pouco importa se o IBAMA e a Funai não têm servidores suficientes para enfrentar os ataques ao meio ambiente e aos povos indígenas, ou se as universidades federais estavam prestes a interromper seu funcionamento, nem mesmo se a fila de cirurgias eletivas do SUS aumentava a cada mês. Aos detentores do capital e seus prepostos, a prioridade é a austeridade fiscal acima de tudo e de todos, para assim preservar a capacidade de o país arcar anualmente com dezenas de bilhões de reais de seu orçamento destinados aos preciosos e intocáveis juros da dívida pública.
Como já reconhecia há mais de 50 anos Galeano, é preciso uma mudança profunda de estruturas em uma sociedade e em um Estado encharcados de colonialidade. Vide os retrocessos que acontecem na Argentina de Milei, aplaudidos e apoiados pelos operadores financeiros e seus veículos de imprensa. Nessa esteira pontua o autor uruguaio:
“A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa nascer de novo, será preciso derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e de mudança. Há quem acredite que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências humanas”[8].
Ainda que as privatizações não sejam garantia alguma de aumento de eficiência na prestação de serviços, como demonstra o caso da distribuidora de energia Enel na maior metrópole brasileira – que deixou no escuro milhões de consumidores por dias a fio –, o apetite pela venda dos bens públicos parece incontrolável. No estado de São Paulo governado por um ilusório “bolsonarismo moderado”, além da venda da Sabesp, o apetite devorador dos senhores do capital se volta para a exploração da educação pública. Nem mesmo as democráticas praias estão livres de sua cobiça selvagem.
No Senado tramita a PEC das Praias que estabelece a possibilidade de transferência dos “terrenos de marinha”, pertencentes à União, para particulares, abrindo a brecha para restringir o acesso às praias. Alguns chamam a iniciativa de PEC da especulação. Não é de se surpreender que a iniciativa seja encampada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), aquele que há poucos dias subiu à tribuna para relativizar o plano de atentado contra o presidente da República e bradar que “vontade de matar alguém todo mundo alguma vez na vida já teve”.
Como reagir a tamanha fúria violenta do patriarcado que com seus longos tentáculos se espraia nos calabouços autoritários das Forças Armadas e das Polícias Militares, na arrogância elitista das empresas transnacionais e das bolsas de valores, no pseudodiscurso religioso-fundamentalista e machista dos conservadores que querem submeter as mulheres e seus corpos? Entregar-se com descrença e resignação não é uma opção. O que diz a pensadora feminista Vergès sobre o Estado pode ser transmutado para o sistema patriarcal, que se utiliza da manipulação do medo para exercer seu controle:
“Se o Estado quiser esmagar um movimento, ele recorrerá a todos os meios para isso, usará todos os recursos à sua disposição para reprimir e para dispersar os/as oprimidos/as. Ele bate com uma mão e com a outra tenta cooptar. O medo é uma de suas armas preferidas para produzir conformismo e consentimento”[9].
A resistência está aí, às vezes silenciada, outras com seu incômodo barulho cheio de rebeldia. Nos movimentos das mães que tiveram seus filhos assassinados pela violência policial e dos familiares e amigos dos mortos e desaparecidos pela ditadura militar, nas organizações de pescadores e indígenas que se negam a renunciar aos seus territórios tradicionais, nos mais diversos e plurais coletivos feministas defensores da dignidade das mulheres, nas manifestações dos professores e professoras contra o sucateamento da educação pública...
Com estratégias diferentes e pautas nem sempre coincidentes, muitas e muitos são aqueles e aquelas que se levantam contra o discurso violento hegemônico que mata, escraviza e explora as “maiorias populares oprimidas”, como dizia Ignacio Ellacuría. É preciso assumir, como o teólogo jesuíta radicado em El Salvador, que “se os direitos humanos se originam do bem comum, se apresentarão como obrigação para os integrantes da humanidade, pois todos teriam um direito fundamental a participar do bem comum como têm obrigação de contribuir com a sua realização”[10].
Sem ter a ilusão de que o Direito irá solucionar todas as questões, mas sem também ingenuamente descartá-lo, a luta política se faz em muitas searas tais como a promoção de uma educação popular libertadora e de uma economia solidária do dom e do comum. Para tanto, deve-se ter presente a compreensão oferecida por Vergès:
“Aprendi também que é preciso usar as leis do Estado contra ele próprio, mas sem ilusão nem idealismo [...] Essa estratégia nunca era empregada sozinha, ela sempre vinha acompanhada de uma crítica ao Estado e às suas instituições. As lutas se travam em múltiplas frentes e com objetivos que visam a temporalidades diferentes. A existência de um mundo vasto, onde resistências e recusas à submissão se opõem a uma ordem mundial injusta, fez parte da compreensão de mundo que me foi transmitida”[11].
O início do fim de 2024, também é o transcurso de um novo tempo para os cristãos, o Advento. Oportunidade de se preparar para celebrar o mistério do Natal, da vinda de Jesus, o Deus-menino que nasceu em um cocho porque não havia lugar para Ele. Com o início do Jubileu, o Papa Francisco conclama a ter fé na Esperança. Afinal, “a esperança é uma âncora”, “uma âncora que se joga com a corda e afunda na areia”. “E nós temos de estar agarrados à corda da esperança”, arremata o pontífice, “bem agarrados”[12]. Arraigadas na esperança que impele à resistência da luta pelos direitos humanos fundados no bem comum, possam as “maiorias populares oprimidas” manterem-se firmes e alertas.
[1] BARROS, Marcelo. Profecia e Martírio na Caminhada. São Leopoldo: Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, 2022, p. 80.
[2] Idem, p. 80-81.
[3] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 180.
[4] ARONSON, Elliot e ARONSON, Joshua. O animal social. São Paulo: Goya, 2023, p. 224.
[5] VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 35.
[6] Idem, p. 28.
[7] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 17.
[8] Idem, p. 301.
[9] VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 32.
[10] ELLACURÍA, Ignacio. Escritos filosógicos III. São Salvador: UCA Editores, 2001, p. 212.
[11] VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020, p. 33.
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O início de um fim: a resistência contra a violência do patriarcado. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU