29 Junho 2024
"A cada novo mandato ou troca de governo – como no caso de São Paulo –, uma guinada para o rumo que se quer, 'mais ou menos' violento, mas sempre contra as minorias e periféricos. Não há garantia ou amparo institucional sobre o controle da ação policial para além do momento político da ocasião", escreve Herbert Bachett, sociólogo, doutorando pelo PPGSOL-UnB, pesquisador do INCT-InEAC-UFF, em estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em artigo publicado por Jornal GGN, 28-06-2024.
Recentemente, Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicou um ótimo artigo no jornal O Globo sobre o que considerou o “curioso caso da polícia que é violenta apenas com os pobres”, referindo-se à escalada violenta da PM de São Paulo, especialmente no litoral, sob o comando do governador Tarcísio de Freitas. Meu ponto aqui, deixo claro de início, não é defender uma posição contrária da autora. É claro que a desigualdade social expressa na ação policial violenta é o corolário de uma perspectiva crítica e desalienante sobre a política das polícias e da criminalização dos pobres.
Entretanto, de curioso não há nada, apenas mais do mesmo, não só em São Paulo como em todo o Brasil. Talvez a novidade, ou a curiosidade, seja o fato do governo atual ter abandonado o véu do controle e da pacificidade policial como propaganda, assumindo a violência policial, uma das marcas do bolsonarismo, hoje no Palácio dos Bandeirantes. Deste modo, considero que seu artigo é capaz de suscitar outras questões sobre a política do controle da ação policial no Brasil, não só – mas também – em São Paulo. Por isso, o tomo como ponto de partida, complementando-o ao mesmo tempo em que subscrevo tudo que nele está escrito.
O estado de São Paulo fechou o ano de 2023 com a menor taxa de homicídios dolosos em 23 anos. Foram 5,7 casos para cada 100 mil habitantes. Essa queda na taxa dos homicídios não é novidade no estado, que registra recordes históricos recorrentes pelo menos desde o início da série histórica, em 2001, o que foi um dos orgulhos dos governos do PSDB por quase 30 anos.
Não só os governantes e governos usaram-se destes dados, realmente impressionantes e louváveis, como forma de autopromoção e propaganda, como alas da mídia e a própria academia – especialmente a paulista – passaram a utilizá-los como símbolo de uma melhoria nas condições da polícia e, consequentemente, maior controle sobre sua ação. Não é mentira, mas também não é uma verdade completa. Na rixa entre as duas “cidades-espelho” do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, São Paulo se colocava como a “Nova York brasileira” frente ao caos carioca, alucinante e aparentemente insolúvel. Entretanto, cabe relativizar: taxa de homicídios não é e não pode ser tomada como índice inequívoco de aferição do controle e violência policial, assim como o controle da violência urbana não se resume à diminuição da taxa dos homicídios, tanto entre civis como os praticados pelos PMs.
Não é preciso novos trabalhos de campo nas periferias de São Paulo para compreender que as tecnologias do matar, assim como a governança autônoma dos territórios por grupos criminosos, são não só diferentes dos presentes no Rio de Janeiro e em grande parte do Brasil, como essas tecnologias utilizadas visam sua legitimação exatamente pela “pacificidade” de sua dominação. Fenômeno já indicado nas produções sobre o tema, especialmente as mais recentes que tratam do fenômeno do PCC.
A violência da ação policial no litoral de São Paulo não só desconstruiu o mito da pacificidade bandeirante/paulista, como ajuda a trazer à tona a real situação de todas as polícias militares no Brasil: ausência de controle institucional eficiente, interno e externo. Demonstrando o nosso fracasso político-institucional em construir e constituir polícias realmente cidadãs no pós-1988. Acostumamos a nos relacionar com feudos corporativos que se autorregulam a seu prazer ou ao prazer dos governantes, de modo que a população fica à mercê da vontade e da boa ou má política de nossos governantes no que tange o policiamento e a segurança pública.
A cada novo mandato ou troca de governo – como no caso de São Paulo –, uma guinada para o rumo que se quer, “mais ou menos” violento, mas sempre contra as minorias e periféricos. Não há garantia ou amparo institucional sobre o controle da ação policial para além do momento político da ocasião.
O Ministério Público, que deve e pode exercer o controle externo, continua com dificuldades em alcançar mais do que um controle cartorial, meramente administrativo, sobre as PMs.
Aqui, não me resguardo apenas à São Paulo, ou ao Rio de Janeiro, nem mesmo à extrema-direita bolsonarista. A esquerda não fez o seu dever e também não conseguiu muito de diferente. Os governos federais sob o Partido dos Trabalhadores falharam ou aquiesceram-se no que tange o controle da ação policial e a construção e institucionalização de uma política nacional de segurança pública digna do nome. No âmbito estadual não foi e não é diferente.
Por exemplo, o estado da Bahia figura hoje como um dos mais violentos do país, tanto nos índices de homicídios como na vitimização policial. Governado pelo PT desde 2007, os governadores da ocasião preferem contestar os dados ao invés de assumir e investir em soluções concretas e de longo prazo, rendidos à estabilidade política junto dos batalhões. Enquanto isso, o governo federal se mostra indiferente à calamidade das pequenas cidades do interior e das periferias baianas.
A violência policial em São Paulo continua e sempre esteve nas periferias, assim como no resto do país. Mais do que se esquivar em números, é necessário compreender e lançar luz sobre como ela se perfaz e se legitima em sua complexidade, na política e nas periferias. Ou continuaremos tomando e vendendo as cloroquinas da segurança pública, nos surpreendendo de novo, e de novo, ao vivermos o realismo fantástico de uma crônica de uma morte anunciada?
Menos do que curioso ou surpreendente, a violência policial contra os pobres e periféricos é uma tragédia anunciada que se repete não é de hoje, dia após dia. Mas é preciso otimismo: se a crise é política, a solução é política: com (re)institucionalização e reformas que lancem luz aos porões decisórios das políticas de segurança pública e tragam controle concreto e civil à ação policial.
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Violência policial contra os pobres: crônica de tragédias anunciadas. Artigo de Herbert Bachett - Instituto Humanitas Unisinos - IHU