27 Novembro 2024
"É justamente por causa da impunidade histórica que integrantes do núcleo duro que rodeia Jair Bolsonaro não se preocuparam em deixar tantas e tão evidentes provas do planejamento de crimes abomináveis", escreve Camila Rocha, doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em artigo publicado por Folha de S.Paulo, e reproduzido por André Vallias no Facebook, 25-11-2024.
Eis o artigo.
O Brasil conquistou um feito histórico. É a primeira vez que a tutela militar de governos civis é posta em xeque. O indiciamento de sete generais e 18 militares por tentativa de golpe de Estado é um fato inédito. A conciliação conservadora que permeia a atuação política dos militares finalmente está abalada. Em outras palavras: não estamos mais dispostos a passar pano para militares golpistas.
Graças à atuação primorosa de nossas instituições, há um caminho aberto para que o país atinja um novo patamar democrático: submeter os militares ao controle civil.
A questão é antiga. Segundo o historiador Paulo Ribeiro da Cunha, antes da Proclamação da República, que completou 135 anos no último dia 15, o barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, já se preocupava com o tema. Por conta disso, enviou ao visconde de Ouro Preto, último primeiro-ministro, livros vindos da Europa sobre sujeição dos militares ao poder civil para que fossem traduzidos e adotados nas escolas militares. Porém a iniciativa não teve a menor chance de prosperar. Bastou um rumor infundado de que havia a intenção de dissolver o Exército para que um levante militar botasse fim à monarquia.
Desde então, governos civis que se seguiram, à esquerda e à direita, sempre foram tutelados por militares. Segundo o historiador Daniel Aarão Reis, quando Getúlio Vargas instaurou a ditadura do Estado Novo em 1937, os militares estavam entre as principais bases de sustentação do regime. Em 1945, também foram os militares que depuseram Vargas e tornaram-se fiadores da "democracia autoritária" vigente até 1964. Lembrando que, durante esse período, o general Eurico Gaspar Dutra chegou a se tornar presidente e as Forças Armadas continuaram a protagonizar golpes, contragolpes e ameaças de intervenção.
Nossa longa transição para a democracia também ocorreu sob a tutela militar. No entanto, ainda que os militares tenham sido fiadores de todo o processo de abertura, grupos extremistas realizaram uma série de atentados terroristas para tentar retardar a chegada da democracia. O maior e mais conhecido foi o atentado do Riocentro em 1981.
O atentado ocorreu no Centro de Convenções do Riocentro, no Rio de Janeiro. A ideia era aterrorizar as 20 mil pessoas que estavam em um show em comemoração ao Dia do Trabalho, incriminar grupos de oposição à ditadura e, assim, justificar a permanência dos militares no poder. A condução desastrada da operação, entretanto, impediu que o "objetivo" fosse atingido e causou a morte de um sargento por uma bomba que explodiu antecipadamente. Como seria de se esperar, os responsáveis saíram impunes.
É justamente por causa da impunidade histórica que integrantes do núcleo duro que rodeia Jair Bolsonaro não se preocuparam em deixar tantas e tão evidentes provas do planejamento de crimes abomináveis. Como aponta a atriz Fernanda Torres, protagonista do filme "Ainda Estou Aqui", as "soluções" para os crimes dos militares passaram sempre por "varrer a sujeira para debaixo do tapete, deixar a casa bonita e seguir em frente". Agora é chegada a hora de limpar a sujeira e fazer as mudanças necessárias para que os militares sejam, finalmente, tutelados pela democracia.
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