22 Novembro 2024
“O bolsonarismo, é fato, não se reduz à figura de Jair Bolsonaro ou à de sua família. Envolve uma força política que, embora difusa, perfaz uma legião de brasileiros racistas, misóginos, beligerantes, intolerantes”, escreve Rudá Ricci, sociólogo, com larga experiência em educação e gestão participativa, diretor do Instituto Cultiva.
Com o indiciamento de Jair Bolsonaro e 25 militares, sendo 24 do Exército (12 são militares da ativa, oito generais, seis tenentes-coronéis, sete coronéis, um capitão, um subtenente e dois majores) na trama do golpe de Estado, o cenário de risco e a fonte de ameaça à democracia brasileira já estão nítidos.
Venho defendendo que criemos uma lei similar à 7.716/89, que proíbe o nazismo no Brasil. Uma lei que proíba o bolsonarismo, assim como o uso de seus símbolos, caracterizando-o como uma variante da ideologia fascista. Para tanto, é preciso definir os traços fascistas do bolsonarismo como fundamento para que possamos colocá-lo na ilegalidade.
Os líderes do bolsonarismo se autodeclaram de direita. Nas teorias consagradas da ciência política, a direita se caracterizaria pela defesa do ideário da liberdade individual em seu extremo. A direita sustenta que a natureza humana possui distinções comportamentais e psicológicas: alguns indivíduos são mais esforçados que outros; alguns mais inteligentes que outros; alguns mais bem-aventurados que outros; alguns mais ambiciosos ou mais bem preparados. Tais diferenças, acreditam, levaria à inevitável desigualdade social. Ao Estado caberia tão-somente preservar a vida e dar condições de competição justa entre os indivíduos. Contudo, é o esforço e o engajamento individual que definirão o futuro de cada indivíduo. Assim, qualquer interferência externa neste engajamento individual implicaria em desequilibrar a ordem natural que rege a vida social.
O bolsonarismo não pratica e sustenta apenas este ideário. Vai além. Trata-se de um ideário de extrema-direita.
O jurista italiano Norberto Bobbio se dedicou a definir o que seriam os extremismos. Para o autor, “o que os autores revolucionários e contrarrevolucionários, e os respectivos movimentos, têm em comum é o fato de pertencerem, no âmbito dos respectivos alinhamentos, à ala extremista contraposta à ala moderada. A díade extremismo-moderantismo não coincide com a díade direita-esquerda e obedece a um critério de contraposição no universo político diverso do que conota a distinção entre direita e esquerda”.
O extremismo poderia ser assim definido como a negação da convivência com ideias e práticas opostas ao que prega. Mais que isso: a autoafirmação do extremista se dá pela eliminação ou ameaça de eliminação de qualquer ideário ou ideologia que não sejam os seus.
Bobbio qualifica os extremismos de antidemocráticos, irracionalistas, que se aproximam da prática intuitiva, muitas vezes alimentando-se de certo discurso místico e carismático, que excita seus seguidores e incentiva a ação violenta.
Os extremistas valorizam “as virtudes guerreiras, heroicas, da coragem e da ousadia, contra as virtudes consideradas pejorativamente mercantis da prudência, da tolerância, da razão calculadora, da paciente busca da mediação”.
Não é por acaso que tantos extremistas suspeitam da democracia. A democracia aparece, para eles, medíocre.
O fascismo, desde sua versão original, é multifacetado e heterogêneo porque absorve outros ideários, incluindo o religioso (no caso, o católico italiano). Benito Mussolini liderou o Partido Socialista italiano até sua expulsão. Entre 1912 e 1914, foi redator do jornal socialista “Avanti”. Articulava em seus discursos elementos de nacionalismo, corporativismo, anticapitalismo, sindicalismo nacional, expansionismo, progresso social, antiliberalismo e anticomunismo e suas posições se alteraram frequentemente em relação à guerra, às greves italianas e às ações de massa.
Em suma, ao contrário da confusão que se faz no Brasil, o fascismo desde sempre foi cambiante e um desairoso mosaico. Mas, há sim elementos centrais que o identificam.
Um deles é a masculinização da política e seu caráter patriarcal. Este caráter é herdado do futurismo italiano, lançado em 1909. No seu Manifesto Futurista, Marinetti, que estaria ao lado de Mussolini durante grande parte de seu percurso até assumir o poder na Itália, apresenta um nítido desprezo à mulher e a valorização do poder masculino.
Um segundo elemento do fascismo é a articulação entre modernização da nação e a militarização como projeto político. Os militares seriam a força masculina que coloca rédeas no país e assegura o futuro.
Um terceiro elemento do fascismo é o uso ou ameaça do uso da violência para coibir ou eliminar adversários.
Parte do discurso bolsonarista se articula a partir dessas ideias-força: moções homofóbicas, de crueldade, de humilhação ao sexo feminino, racistas, de ódio ou desprezo em relação aos pobres e desvalidos. Mas, também, evocando a tortura como instrumento de punição, projetando o uso da força para eliminação das oposições.
Acontece que na prática o fascismo se estrutura como uma bricolagem, um mosaico que adiciona, ainda que de maneira pouco nítida e organizada, diferentes ideias políticas e filosóficas que se apresentam como uma “contradição organizada” em inúmeras derivações.
O fascismo mobiliza, ao contrário do discurso autoritário que impede as manifestações públicas. Confunde o projeto de nação com o do próprio líder carismático fascista, reduzindo a imagem do Estado e Governo em instrumentos de operacionalização dos desejos das massas mobilizadas. Líder e nação transformam-se numa única expressão do desejo popular.
Este último aspecto é importante porque todo movimento fascista quer a unificação do poder executivo com o legislativo e o judiciário. Uma única força e fonte de poder faz leis, as implanta e julga quem achar que não as segue corretamente. O líder é o próprio Estado. E é por este motivo que todo fascista odeia o judiciário e procura intimidar ou subordinar o legislativo às intenções do governo.
Não há como negar que esses traços fascistas estão presentes no bolsonarismo. O bolsonarismo, é fato, não se reduz à figura de Jair Bolsonaro ou à de sua família. Envolve uma força política que, embora difusa, perfaz uma legião de brasileiros racistas, misóginos, beligerantes, intolerantes. As diversas pesquisas realizadas nos últimos 5 anos indicam uma variação que vai de 8% a 12% da população adulta brasileira.
E é essa turba que avança nas redes sociais, dissemina fake news e desorientações ao restante da população – descritas no inquérito recém-produzido pela Polícia Federal – com o objetivo de criar um clima político nacional que abra espaço para o golpe de Estado.
Não qualquer golpe, mas um golpe liderado por militares que tramam o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos democraticamente e ministros do Supremo Tribunal Federal.
O bolsonarismo é uma ideologia fascista que coloca em risco a democracia e o Estado de Direito.
O inquérito finalizado pela Política Federal seguiu para o STF e deve começar a ser apreciado pela Procuradoria Geral da República (PGR) na próxima semana. Se a PGR acatar que há realmente indícios de trama golpista e encaminhar ao STF para julgamento, teremos todas as bases para que esta classificação que proponho se fortaleça. O bolsonarismo, então, terá que ser colocado na ilegalidade. Porque estará nítido que se trata de um ideário de criminosos.
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Bolsonarismo e fascismo. Artigo de Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU