21 Novembro 2024
O ataque fracassado de 13 de novembro em Brasília pode ser lido muito claramente a partir do sentimento de triunfo global da extrema-direita que a recente vitória de Trump provocou no Brasil – e no resto do planeta.
O artigo é de Fernando de la Cuadra, doutor em Ciências Sociais e editor do blog Socialismo y Democracia, publicado por El Salto Diario, 19-11-2024.
Desde que um homem morreu, em 13 de novembro, enquanto atacava o Supremo Tribunal Federal em Brasília (STF), a tese do “lobo solitário” tem sido defendida por Bolsonaro e pela maioria de seus seguidores, mas à medida que mais informações se tornam conhecidas sobre o autor deste aparentemente absurdo ação, torna-se cada vez mais claro que esta tese é absolutamente insustentável. O ataque e todo o contexto que esta ação revela insere-se num plano terrorista que pretende iniciar um novo ciclo de desestabilização do governo e com a intenção de desencadear uma escalada do golpe com resultados imprevisíveis, tendo em conta que os setores da extrema-direita continuam a estar organizado e conspirar contra as instituições democráticas do país, especialmente contra o STF e todo o sistema judiciário.
O autor do ataque explosivo foi Francisco Wanderley Luiz, conhecido empresário de uma pequena cidade do Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil e também ex-candidato a vereador pelo Partido Liberal (PL), o mesmo de Jair Bolsonaro. Embora no momento da sua ação suicida estivesse sozinho, até agora está comprovado que frequentava redes de extrema-direita e mantinha contato com alguns parlamentares da oposição a Bolsonaro. Quem o conheceu afirma que Francisco se radicalizou desde a vitória de Bolsonaro em 2018 e desde então passou a ter um discurso cada vez mais violento em suas redes sociais contra o que considerava as forças demoníacas do comunismo. Desde o triunfo de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022, suas ameaças e seu repertório extremista contra as instituições passaram a ocupar um lugar central em sua vida.
Antes do dia do ataque, ele já havia visitado o prédio do Supremo Tribunal Federal para reconhecer o local onde seria realizado o ataque. Seu principal objetivo era o ministro Alexandre de Moraes e “qualquer pessoa que estivesse por perto”, como havia declarado diversas vezes à ex-mulher. Ela contou à Polícia Federal que há um ano Francisco estava obcecado com a ideia de matar o ministro Alexandre. Por isso, passou a viajar com frequência para Brasília e acabou alugando um pequeno apartamento em Ceilândia, cidade a aproximadamente 30 quilômetros da Praça dos Três Poderes, onde ocorreu o ataque. Ele mora em Ceilândia há quatro meses e desde então mantém contato com outros indivíduos de extrema-direita que vão aparecendo gradativamente nessa conspiração terrorista à medida que avançam as investigações dessa ação.
Junto com os explosivos que jogou contra o prédio do STF e aquele que finalmente detonou sob sua cabeça, esse sujeito havia detonado outros explosivos dentro de seu carro e, posteriormente, a Polícia encontrou um trailer cheio de explosivos ao lado de seu veículo. Por fim, quando os investigadores se dirigiram à sua residência, um robô da Delegacia da Polícia Federal especializada em bombas voou pelo ar ao abrir uma gaveta especialmente preparada como armadilha para matar quem tentasse descobrir o que havia dentro.
O que precede permite-nos concluir que, embora Francisco tenha agido sozinho, não ficou isolado neste ato de terrorismo, mas fez parte de uma vasta rede de apoio da extrema-direita que no seu delírio sedicioso continua a pensar e a aspirar que, ao criar um situação de instabilidade política e social, as Forças Armadas poderão intervir para restaurar a ordem e a estabilidade no Brasil. Nesse sentido, este ato insere-se numa estratégia que vem sendo desenhada desde o momento em que Lula da Silva venceu as eleições em outubro de 2022 e cujo objetivo é acabar violentamente com o governo legitimamente eleito através do voto popular.
Em última análise, o indivíduo que acabou se suicidando próximo à estátua da Justiça em frente ao prédio do STF faz parte de um clima ideológico que certamente foi alimentado por um ambiente virtual permeado de ódio e delírio coletivo que forja pessoas dispostas a sacrificar a vida em busca de de um fanatismo objetivo bizarro e irracional.
Tudo parece indicar que este ataque se insere numa estratégia que procura gerar condições de medo e insegurança nos cidadãos para que os anseios de muitos setores conservadores e de extrema-direita que existem no país, pressionem, por um lado, os instituições, especialmente ao Congresso Nacional para depor o presidente Lula por meio de impeachment como aconteceu em 2013 contra a presidente Dilma Rousseff.
Numa perspectiva mais ousada − se assim se pode dizer − setores mais radicais buscam diretamente a participação das Forças Armadas num Golpe de Estado que derrube o atual governo para impor um novo processo de ditadura civil-militar disfarçado de uma diante da “restauração da ordem e da convivência harmoniosa entre os brasileiros”. Como sabemos, este é o mesmo argumento que foi apresentado no passado para impor ditaduras sangrentas e opressivas na nossa região latino-americana e no resto do mundo.
Paradoxalmente, este ataque direto às instituições democráticas tem permitido a reação imediata dos vários órgãos da República e de muitos quadros políticos, autoridades e representantes de um amplo espectro da sociedade civil, dos sindicatos, do mundo académico, de parte da imprensa e do público em geral, que vê esta ação com profunda desconfiança e rejeita-a liminarmente. Existe uma espécie de cordão sanitário democrático que foi ativado quase automaticamente face ao risco iminente de uma escalada extremista e autoritária. Por exemplo, todo o debate sobre a concessão de anistia aos vândalos que invadiram e saquearam os edifícios dos Três Poderes em 8 de janeiro do ano passado, atualmente pendeu contra os possíveis beneficiários de tal medida.
Isto porque depois do triunfo da direita e da extrema-direita nas últimas eleições municipais e ainda mais encorajados pela recente vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, estes setores têm sido encorajados nas suas reivindicações para obter uma anistia não só para aqueles condenados pelos seus atos durante o frustrado Golpe de Estado de Janeiro de 2023, mas de todos aqueles que continuam a ser investigados pela sua participação, conspiração e financiamento nestes gravíssimos acontecimentos.
Contra esses pedidos de perdão incondicional, o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, apontou com louvável veemência e clareza que “algumas pessoas passaram da indignação à pena, buscando naturalizar um absurdo. Eles não percebem que estão dando um incentivo para que o mesmo tipo de comportamento ocorra outras vezes. “Eles querem perdoar primeiro, sem sequer condenar”. Por sua vez, o ministro Alexandre de Moraes, responsável pelos processos do golpe frustrado de 8 de janeiro e principal alvo do ataque, afirmou com firmeza que “Este não é um acontecimento isolado do contexto, é um fenômeno que começou há muito tempo e que resultou em 8 de janeiro. Esta necessária pacificação do país só é possível com a condenação de todos os criminosos. Não há possibilidade de pacificação com anistia para esses sedicionistas”.
Assim, as investigações que estão apenas em sua fase inicial poderão se transformar em uma verdadeira “Caixa de Pandora” na qual surgirão novos sujeitos e organizações ligadas a este ato terrorista. Há uma forte suspeita de que a maior parte destes possíveis parceiros no recente ataque também tenham participado nos acampamentos montados em frente ao quartel do Exército que funcionaram como centros da conspiração para as invasões e o golpe de Estado frustrado de 8 de Janeiro.
Além disso, a Polícia Federal está em plena investigação desde o dia do ataque e até agora o foco dessas investigações está nas mensagens e informações contidas no celular de Francisco, que foi encontrado ao lado de seu corpo. Nesse caso, os agentes policiais procuram apurar as possíveis ligações do agressor, se havia pessoas ligadas ao ato, que poderiam ter financiado o material explosivo e se existe algum grupo radical organizado ligado ao ataque ou apoiando sua logística.
Precisamente porque as investigações sobre o atentado certamente continuarão a oferecer detalhes mais horríveis nos próximos dias, acredito que as forças bolsonaristas vão perder no decorrer do processo de investigação dos trágicos acontecimentos ou pelo menos das suas aspirações a uma decisão definitiva a anistia deverá ser um assunto excluído da pauta do Congresso Nacional nos próximos meses pelos atuais presidentes das duas Câmaras. Na fase final do seu mandato, não correrão o risco de abrir as comportas de um debate sobre as ações de grupos considerados terroristas por uma maioria cada vez maior de cidadãos e eleitores.
Em suma, a pressão a favor da anistia dos envolvidos no ataque golpista deverá reduzir o seu nível de intensidade a julgar pelos efeitos negativos que este ataque produziu e pelas ligações do mesmo perpetrador/suicídio com todo o processo de destituição do governo e pela sua participação efetiva num conjunto de atividades que representam uma ameaça direta à democracia. Elas vêm ocorrendo praticamente desde que Bolsonaro venceu as eleições em outubro de 2018 e tornaram-se ainda mais agudas desde a vitória de Lula em outubro de 2022.
Por um lado, o bolsonarismo está preocupado com o desenvolvimento das investigações existentes sobre Jair Bolsonaro como principal instigador do frustrado Golpe de Estado, com a desqualificação do sistema eleitoral brasileiro e com a apropriação indébita de bens (joias) pertencentes ao governo brasileiro Estado. O ataque antecede efetivamente o provável processo judicial que deverá ser instaurado contra o ex-presidente, cujo relatório elaborado pela Polícia Federal está em fase final e deverá ser enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao Supremo Tribunal Federal. no início de dezembro.
Portanto, esta tentativa de criar uma convulsão social parece ser uma saída desesperada de alguns aspectos mais extremistas do bolsonarismo de raiz. O mais provável é que depois do seu desastroso epílogo, as exigências de anistia dos participantes dos acontecimentos de 8 de janeiro e o pedido de anulação da inelegibilidade de Bolsonaro diminuam nos próximos dias, até que uma nova situação permita que essas reivindicações do bolsonarismo sejam ser reavivado recorrendo agora a meios de negociação mais políticos, abdicando das soluções mais radicais. Embora exista sempre a possibilidade de que grupos mais violentos utilizem uma tática terrorista para atingir os seus objetivos.
No entanto, tanto Bolsonaro como os seus seguidores sentiram-se “encorajados” pela vitória de Trump. Até o ex-presidente, que está com o passaporte retido devido aos atos antidemocráticos cometidos durante seu mandato, teve a ousadia de exigir da Justiça a devolução do passaporte após a vitória do republicano. Seu argumento é que Trump o convidaria para o evento em que assumiria seu mandato e o sistema de justiça brasileiro não poderia “negar algo tão importante à pessoa mais poderosa do mundo” (sic). Seu tom de servilismo e submissão era tão absurdo que até alguns de seus próprios correligionários acharam exagerado o apelo de Bolsonaro e apontaram que o Brasil deveria defender sua soberania, embora ainda defendessem uma solução negociada para que Bolsonaro pudesse não apenas ir a Washington, mas ser absolvido de todos os crimes e delitos que estão acumulados na Justiça brasileira.
Por outro lado, o destaque que Elon Musk adquiriu neste processo de restabelecimento do conservadorismo americano está encorajando setores de Bolsonaro para que tanto a Casa Branca quanto o Congresso norte-americano criem um cerco ao Judiciário brasileiro e especialmente ao ministro Alexandre de Moraes. As restrições impostas por este ministro a Elon Musk e à sua rede social Agora esperam recuperar o controle hegemônico desta e de outras redes para continuar disseminando seus discursos de ódio e autoritarismo dentro e fora do Brasil como forma de compensar o tempo perdido durante a sanção aplicada por Alexandre de Moraes à rede X, do magnata e ideólogo extremista de direita sul-africano.
Em todo este quadro, as redes sociais desempenharam um papel enorme na radicalização da direita. Já foi suficientemente estudado como, através de algoritmos, organizações como a Cambridge Analytica utilizaram os dados de milhões de usuários para catalogar alguns perfis e aprofundar com informações falsas ou fake news os traços daquelas pessoas que demonstraram inclinação para o conservadorismo ou diretamente neoposições fascistas. Nisso, as milícias digitais da extrema-direita têm tido um tremendo sucesso e o seu trabalho em torno da disseminação e intensificação de discursos de violência e ódio não só contra a democracia, mas também contra a diversidade, a diferença e a pluralidade de pessoas, tem produzido excelentes resultados naqueles termos.
Há algum tempo expliquei em um artigo intitulado “Genealogia e bases do neofascismo brasileiro”, os mecanismos utilizados pela extrema-direita brasileira para introduzir discursos de ódio e intolerância na mente de milhares de habitantes deste país utilizando as redes sociais e destruindo-as. a imagem de políticos e figuras democráticas reconhecidas, para sobrepor a esta fúria devastadora aspectos de nacionalismo fanático, aliados a sentimentos de homofobia, xenofobia, superioridade racial, misoginia, classicismo e desprezo pela cultura, arte e produção intelectual que acabaram criando uma massa de eleitores influenciados por ideias retrógradas que levaram ao poder uma pessoa desqualificada e grotesca como Jair Bolsonaro. O mesmo pode ser dito no caso de Donald Trump, Javier Milei, Nayib Bukele, Viktor Orbán, Recep Erdogan, Benjamin Netanyahu e tantas outras figuras desprezíveis que atualmente administram muitas nações do planeta.
Neste contexto, o ataque pode ser lido muito claramente a partir deste sentimento de triunfo global da extrema-direita que a recente vitória de Trump provocou no Brasil – e no resto do planeta. Se Bolsonaro conseguirá reverter as decisões da justiça ou se conseguirá o indulto presidencial quando for condenado é uma questão que ainda precisa ser verificada. Enquanto isso, “a batalha de ideias” continuará a ocorrer no Brasil, embora deva ser reconhecido que após a vitória indiscutível nas eleições municipais de outubro passado, os setores ultraconservadores se sentem mais encorajados a quebrar o tabuleiro e as regras do jogo democrático para impor um regime autocrático nos próximos anos.
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Um ataque que deixa muitas dúvidas. Artigo de Fernando de la Cuadra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU