Capitólio brasileiro: um evento anunciado e avassalador. Entrevista especial com Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia

Pesquisadores do Laboratório de Estudos Brasil Profundo – LAEBRAP analisam e repercutem os ataques realizados por bolsonaristas ao Palácio do Planalto, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal - STF

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

14 Janeiro 2023

"Um capitólio brasileiro mais devastador e mais do que anunciado", é assim que professores Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia definem os ataques crimonos à Praça dos Três Poderes, em Brasília, no DF e à democracia brasileira.

Os pesquisadores apontam, em entrevista conjunta concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que "o eco dessa criptonormativa” exercida desde sempre no governo Bolsonaro "nunca deixou de insuflar os militantes mais radicais e mesmo entre parte dos tidos como mais moderados paulatinamente encontraram justificativa". Além disso, lembram que essas forças acabaram infiltrando especialmente as forças policiais e militares. “A inação policial possivelmente justifica-se ainda pela penetração do ideário bolsonarista nas polícias e Forças Armadas, o que tem gerado inclusive excesso de cuidado e certo receio por parte das elites políticas na condução da situação de caos que instalava”, observam.

Os quatro também chamam atenção para uma possibilidade de não se ter compreendido plenamente o que seria essa vitória de uma coalização pela democracia. “Há uma confusão no que a imprensa tem dito, a saber, que a frente democrática venceu a eleição e, portanto, a democracia venceu. Não. A democracia ainda é como um valor abstrato estreitamente associado ao sufrágio e totalmente desvinculado da vida ordinária dos brasileiros e brasileiras. E são esses os que aceitam a aventura do autoritarismo e do simplismo que Bolsonaro sempre manipulou”, pontuam.

Tiago Medeiros

(Foto: arquivo pessoal)

 

Tiago Medeiros, doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA. Tem experiência nos temas pragmatismo, teoria social e instituições.

 

Rodrigo Ornelas

 (Foto: arquivo pessoal)

 

Rodrigo Ornelas é doutor em Filosofia pela UFBA. Pesquisa a Modernidade e o Modernismo no âmbito da filosofia social, política e da cultura, seus pressupostos e suas consequências. Integra o grupo de trabalho Poética Pragmática da UFBA.

 

Sinval Silva de Araújo

(Foto: arquivo pessoal)

  

Sinval Silva de Araújo é professor do IFBA, licenciado em Ciências Sociais e História, bacharel em Sociologia pela UFBA. Também é bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL, mestre em Ciências Sociais pela UFBA e doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRJ.

 

 

Fábio Baldaia

 (Foto: arquivo pessoal)

Fábio Baldaia, graduado em Ciências Sociais, mestre em História e doutor em Ciências Sociais pela UFBA. Desde 2010, é professor do IFBA. Pesquisa processos de formação de identidades, notadamente nacional e baiana, e a relação mais ampla entre cultura e política. 

Os quatro pesquisadores integram o Laboratório de Estudos Brasil Profundo – LAEBRAP, grupo de estudos e pesquisas ambientado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Tem o objetivo de formular interpretações de fenômenos da sociedade brasileira por meio da noção de “Brasil profundo”. Atua em linhas como economia e sociedade, cultura e sociedade, artes e identidade nacional, planejamento institucional e práticas sociais. 

 

As entrevistas foram publicadas originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 11-01-2023.

Confira a entrevista.

IHU – Como avaliam os atos violentos e antidemocráticos que ocorreram na sede dos três poderes em Brasília no domingo?

Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia – Esse episódio é a culminância de uma sequência de episódios dispersos e abraçados por mensagens de direcionamento de um ativismo anti-institucional radical. Esse ativismo tem assumido desde o processo eleitoral modulações que autorizariam o extremismo político violento, o que se materializou em ações mais hostis contra o patrimônio material e imaterial do país, que são parte significativa da imagem da democracia brasileira.

Esse fato que demonstra que os sucessivos ataques de [Jair] Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal – STF e ao sistema político como um todo tiveram reverberação entre seus seguidores. Os episódios vinham ocorrendo ao longo do mandato do ex-presidente Bolsonaro, mas as mensagens os antecedem. Emblemático momento foi aquele em que Eduardo Bolsonaro verbalizou que, para se fechar o STF, bastaria um tanque e dois soldados. Não é difícil perceber a ligação entre o comportamento agressivo e hostil do ex-presidente e de seus próximos com jornalistas, que serviu de modelo para uma série de agressões a profissionais da imprensa e todo aquele que divergisse das representações nucleares que conferem adesão e fidelização aos autointitulados patriotas. 

Da mesma forma, ele fustigou e acicatou o poder do Judiciário, estimulando atos de ameaça ao STF repetidas vezes. Ocorre-nos aquele evento carregado de simbolismo em que fogos de artifício foram lançados contra o prédio do Supremo. Ainda mais eloquente foi o discurso do 7 de setembro de 2021, quando ele insultou e xingou os magistrados, dobrando todas as apostas e semeando a percepção popular de antagonismo à instituição em questão.

  

Um slogan era particularmente relevante. Dizia Bolsonaro coisas do tipo: "só depende de vocês", vez por outra associado ao outro: "povo armado jamais será escravizado". O eco dessa criptonormativa nunca deixou de insuflar os militantes mais radicais e mesmo entre parte dos tidos como mais moderados paulatinamente encontraram justificativa. Com a eleição de Lula, a ideia de que a vontade dos radicais autoproclamados "povo" se superporia à "fraude das urnas" os levou aos QGs. O melindre das polícias (militar, federal e do exército) para tratar com os manifestantes, uma transferindo para outro o abacaxi, contribuiu para que a instalação e a logística de manutenção deles ali prosperasse, a despeito de pregarem, desavergonhadamente, golpe de Estado, sob a alcunha cínica de intervenção federal. 

Contaminação nas forças de repressão

Outro ponto é que a inação policial possivelmente justifica-se ainda pela penetração do ideário bolsonarista nas polícias e Forças Armadas, o que tem gerado inclusive excesso de cuidado e certo receio por parte das elites políticas na condução da situação de caos que instalava. Com a mensagem de intervenção popular, com os episódios constituintes de um histórico de revoltas anti-institucionais simbólicas, com a complacência das polícias e com a esperança de serem abraçados por alguém com poder, notadamente, as Forças Armadas, cujo atual chefe, o ministro [José] Múcio, confessou ter amigos e familiares nos acampamentos. Com tudo isso, esse episódio chocante pôde acontecer.

Um capitólio brasileiro mais devastador e mais do que anunciado.

IHU – O que esses atos indicam e que desafios apresentam ao governo?

Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia – Indicam que há uma sensibilidade anti-institucional que se confunde com a pauta da extrema-direita no país, mas que não constitui a totalidade do bolsonarismo. Este é feito da combinação de práticas e entendimentos em sintonia com elementos longínquos da sociedade brasileira.

Por isso, sugerem que há uma massa identificada com teses da direita, que não são apenas as da cosmética neoliberal. A existência de um reacionarismo e de um conservadorismo que encontraram em Bolsonaro o representante é algo muito sério com o qual o governo terá de lidar de modo sistemático provavelmente durante tido o mandato.

Eis o desafio: lidar institucionalmente e democraticamente com uma massa ambígua em relação à democracia e vulnerável à figura de Bolsonaro e que veem nele uma espécie de último bastião contra um “sistema” que supostamente corrompe aquilo que é “verdadeiro”, apesar de nunca objetivamente definido: Deus, pátria, família...

Vitória realmente democrática?

Ademais, há uma confusão no que a imprensa tem dito, a saber, que a frente democrática venceu a eleição e, portanto, a democracia venceu. Não. A democracia ainda é como um valor abstrato estreitamente associado ao sufrágio e totalmente desvinculado da vida ordinária dos brasileiros e brasileiras. E são esses os que aceitam a aventura do autoritarismo e do simplismo que Bolsonaro sempre manipulou tão bem. 

IHU – Como avaliam as reações políticas e institucionais acerca dos atos?

Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia – Ambas as reações são corretas e coesas. Os atores políticos mais relevantes se distanciaram dos eventos e já organizam um isolamento ainda maior ao bolsonarismo que pode repercutir em processos e cassações, além de novas leis que avancem nas ferramentas de controle de manifestações potencialmente radicais, inclusive no cerne de instituições militares.

 

Até Bolsonaro deu a deixa de que vandalismo é coisa de esquerda... Mas Lula foi célere na resposta com o decreto de intervenção federal e não teve grande resistência ou crítica.

Jogo institucional delicado

O jogo institucional, contudo, é mais delicado. A decisão de Alexandre de Moraes atendendo ao pedido da Advocacia Geral da União – AGU tem duas dimensões consideráveis: primeiro, a opção do ministro tem um tom autoritário, afinal, seria preciso maior prudência no afastamento de um representante eleito. Deve-se frisar que os sucessivos atos extremistas do domingo ameaçaram gravemente os poderes da República, portanto, a despeito de um tom autoritário do ministro, parece correta a decisão de afastar o governador, subir o tom e passar um recado aos demais chefes de Executivos que a conta do descaso e inação será alta.

Contudo, a legislação que cobre os casos em que governadores podem ser afastados é muito leniente com as falhas eventuais desses políticos, pois se restringe a se fazer pesar sobre eles em casos de corrupção. A decisão do ministro abrange um coeficiente de responsabilização proporcional, visto que a incompetência confirmada pelo próprio governador em um vídeo de pedido de desculpas na administração do caso poderia produzir novos dissabores, razão pela qual se procedeu a sua retirada do comando do DF.

 

As consequências desse jogo ainda não são previsíveis, mas a jurisprudência que ele pode estar criando talvez lance luz sobre casos semelhantes, onde o que se discute é a relação entre o poder político e as polícias, setor, aliás, o mais bolsonarizado Brasil adentro.

IHU – Desejam acrescentar algo?

Tiago Medeiros, Rodrigo Ornelas, Sinval Silva de Araújo e Fábio Baldaia – Um tópico importante é a reação internacional, de órgãos multilaterais, imprensa e lideranças, de ampla reprovação aos atos extremistas. Isso ratifica e amplia o prestígio do governo Lula e dá a ele no plano externo uma retaguarda para medidas duras, além de deixar claro o custo geopolítico de um golpe.

 

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