12 Janeiro 2023
"A razão bolsonarista é imperativamente letal ao modelo de democracia vigente e possui lastros pelo mundo inteiro. Não é precisamente uma 'extrema-direita'. Trata-se de algo muito mais sutil e mais radical. Algo específico do século 21. Um sinal dos tempos", afirma Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, professor na Universidade Federal da Grande Dourados e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.
Capa do livro "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas" de Daniel Afonso da Silva. (Foto: divulgação)
As tormentas brasileiras do 8 de janeiro de 2023 foram o único artifício capaz de harmonizar as convicções dos presidentes Biden, Macron e Putin. Eles condenaram os atos ultrajantes da Praça dos Três Poderes e manifestaram apoio incondicional ao presidente Lula da Silva e às instituições democráticas do Brasil. Todos sabem que seus telhados também são de vidro. E sabem também que o que se passou em Brasília pode se reproduzir em seus próprios países [novamente].
O Brasil não é os Estados Unidos nem a França tampouco a Rússia. Mas a multiplicidade de crises de representação que os acomete igualmente todos possui dimensão comum e preocupante.
O povo russo está neutralizado num conflito mundial que não diz seu nome [não se trata de guerra convencional ou irregular, mas de disputa pela hegemonia mundial] e as sociedades norte-americana e francesa reconhecem a duras e pesadas penas o seu rebaixamento em todos os seus indicadores de qualidade de vida e sociabilidade.
Desde o 24 de fevereiro de 2022 que o presidente Putin faz frente a uma ofensiva de Estados Unidos, União Europeia e Otan que se autodeclaram guardiões da soberania ucraniana ancorados em preceitos ocidentais de ética e moralidade. No limite, a retórica da responsabilidade de proteger. Vai, portanto e em contraponto, completar doze meses que a Eurásia, o Oriente Médio e vastas porções dos continentes africano e americano desmascaram a onipotência dos democratas liberais liderados pelos presidentes Biden e Macron que produziram esse choque inflacionário medonho causador do frio implacável aos europeus e da diminuição da oferta de produtos básicos da dieta alimentar dos africanos mais modestos.
Por essas razões que China, Índia, Irã, Arábia Saudita, África do Sul e outros estão perto de ressignificar todos os seus aglomerados institucionais regionais para refundar em outros termos a arquitetura multilateral saída de 1945.
Ficou evidente que o welfare state [estado de bem-estar social] praticado pelo mundo livre norte-americano e europeu depois da morte de Hitler deixou de viger, ficou anacrônico e não é mais exportável. Ninguém minimamente mentalmente saudável no século 21 almeja viver o american dream [sonho americano], o american way of life [estilo de vida americano] ou o rêve européen [sonho europeu]. Ninguém minimamente sensivelmente honesto troca a Bertioga por Ibiza ou Doha por Nova York.
Quem acompanha o drama do féretro das democracias acaba por constatar que a história não terminou, como sugeria Fukuyama, e o imperativo da democracia liberal como último refúgio jamais de fato vingou. Ao contrário. Desde o 11 de setembro de 2001 que se presencia a revanche dos povos retirados da História depois de 1945 – especialmente as gentes do Oriente Médio, das Áfricas e do hemisfério sul em geral. Uma revanche, portanto, contra o pensamento único imposto ao mundo inteiro pelo monopólio da razão infligido pelo Ocidente.
O diplomata singapuriano Kishore Mahbubani não se furta em reiterar que o século 21 decretou o fim do “parêntesis ocidental” de cinco séculos de ocidentalização do mundo. O suposto central de sua análise recai sobre o retorno intencional e ofensivo da China (e da Ásia) à manobra do mundo.
Toda a discrição da projeção chinesa do “gato caçando o rato” perdeu a sua inocência a partir do ingresso do seu ingresso na Organização Mundial do Comércio em dezembro de 2001.
Esse feito – o maior complicador da supremacia ocidental – modificou estruturalmente a ordem econômica internacional e segue causando mutações desconcertantes nas dinâmicas sociais da divisão nacional, regional e mundial do trabalho. A China, em pouquíssimos anos do início do século 21, multiplicou o seu PIB por oito. Salvo melhor análise, inexiste exemplo para comparação em toda a evolução da História Econômica. Se já não fosse o suficiente, praticamente todos os países estratégicos do ordenamento mundial contemporâneo possuem frações de suas dívidas soberanas franqueadas em capital chinês. Nem os Estados Unidos, a França ou a Rússia escapam.
Sem o boom da China nos anos 2000, o dito Sul Global, liderado pelos países dos BRICS, jamais ganharia expressão. A ostensiva demanda mundial por commodities e tecnologias levou a economia chinesa a produzir o sucesso ou a sobrevida econômica de países do Sul ao Norte. Do Brasil ao Canadá à Nigéria até a Itália, o Reino Unido e a França.
Com a mesma intensidade que os chineses compravam soja, carne e minério de ferro brasileiros, também avançavam sobre terras e madeiras africanas, soja e carnes norte-americanas e usinas nucleares europeias.
A crise financeira de 2008 jogou o mundo inteiro em queda livre. O espaço europeu jamais se recuperou da crise do euro. Os norte-americanos viram a (re)emergência do tea party que lançou as bases do trumpismo. O Magreg e o Oriente Médio foram varridos pelas primaveras árabes. O Reino Unido sucumbiu ao eleitoralismo do primeiro-ministro David Cameron que resultou na instalação do referendum que levou ao Brexit. E o Brasil foi lançado no torvelinho macabro da queda mundial do preço das commodities [especialmente do petróleo], da falência das “campeãs nacionais” [Eike Batista que o diga], na profusão de insatisfação das noites de junho de 2013, na inconsequência do “não vai ter Copa” promovida pelos “admiradores” [Guilherme Boulos à frente] de hospitais e serviços públicos padrão Fifa, nos desmandos da Operação Lava Jato [com Moro e Dallagnol no comando], no esquartejamento da Petrobras, no impeachment da presidente Dilma Rousseff e na prisão do presidente Lula da Silva.
Nessa turbulência toda, nenhum político europeu conseguiu se reeleger [apenas Angela Merkel na Alemanha e Emmanuel Macron na França]. Nenhum primeiro-ministro britânico terminou seu mandato na Inglaterra nem na Itália. A Hungria viu ressurgir a extrema-direita em sua versão mais tosca, indelicada e mal-educada. Os italianos não conseguiram se recuperar da vulgaridade de Silvio Berlusconi. Os espanhóis pressionaram o seu próprio rei Juan Carlos a abdicar. Os norte-americanos elegeram o bonifrate iconoclasta Donald J. Trump. Os egípcios, líbios tunisianos e marfinenses jamais recuperaram a estabilidade de antanho, dos tempos que possuíam seus malvados ditadores de estimação. A tragédia da Síria ficou imortalizada no colapso de Palmira. E o Brasil viu nascer o bolsonarismo.
O bolsonarismo é a versão brasileira da erosão da ideia progresso e esperança de prosperidade entoadas pela globalização e pelo multilateralismo saídos da Segunda Guerra Mundial; e que, depois de 1991, deixaram de existir.
As promessas da Carta do Atlântico de 1941 e da Carta das Nações Unidas de 1945 não convencem mais ninguém. Nem aos seus próprios fiadores norte-americanos e europeus. Desnecessário redizer que a invasão norte-americana do Iraque sem o aval do Conselho de Segurança após o 11 de setembro de 2001 e o verdadeiro bate-cabeça da Organização Mundial de Saúde na gestão da pandemia em 2020-2022 golpeou de morte a respeitabilidade dessas instituições multilaterais.
As premissas liberais de Bretton Woods também não se sustentam mais. Não bastasse a saída dos Estados Unidos dos acordos em 1971, a crise financeira de 2008 implodiu o consenso financeiro-econômico forçado pelo mainstream neoliberal e neoclássico dos anos de 1970-1980 e outro consenso nunca mais se organizou.
Ademais, hodiernamente, nenhum país seguidor desses ideais progresso e prosperidade modernos cultiva campos verdejantes.
Esquece-se com facilidade que não fosse a pandemia o presidente Donald J. Trump teria sido facilmente reeleito nos Estados Unidos em 2020. Não simplesmente pelas taxas de desemprego historicamente mais baixas do país no século 21, mas também pelas projeções de crescimento econômico mais substantivas dos últimas cinquenta anos. Mesmo sob o custo de bravatas, guerra psicológica com a China e com o mundo, desglobalização, protecionismo e (re)nacionalização industrial.
Da mesma maneira, subestima-se com desmesurada ingenuidade o potencial do bolsonarismo em reeleger – ou eleger outra vez – o presidente Bolsonaro mesmo sendo a sua linguagem corporal tão endemicamente rude, o seu vocabulário pouco ou nada polido e os seus gestos nada diplomáticos – como se pode notar às fartas durante a pandemia.
Por evidente que cloroquina pra emas e “não sou coveiro” ultrapassaram todas as linhas vermelhas. Foram movimentos dignos de lunáticos rastaqueras. Não – nunca, jamais – de um homem público com responsabilidades supremas de presidente da República. Mesmo assim, o bolsonarismo ao Bolsonaro perdoa tudo e a sua reeleição em 2022 não ocorreu por detalhes.
Isso tudo quer dizer que a negação do retorno do presidente Lula da Silva ao poder é muito mais intensa que se imagina porque o bolsonarismo é muito mais complexo que costuma supor.
Ao passo que o presidente Lula da Silva recorre ao identitarismo de ocasião e ao vocábulo neutro de convenção, os bolsonaristas de raiz voltam-se para a Bíblia para aguardar o retorno do seu Messias. Os trumpistas fazem o mesmo.
Bolsonaro e Trump não são a mesma coisa. Mas são, sim, quase dois irmãos. Não foi ao acaso que o ministro Ernesto Araújo vaticinou que Donald J. Trump iria “salvar o Ocidente” e Jair Messias Bolsonaro, o Brasil.
Os ideólogos do bolsonarismo – Olavo de Carvalho foi apenas um deles – acreditam que o Ocidente amarga uma decadência acelerada, sem precedentes e terminal. Sob muitos aspectos eles têm razão. O problema é que consideram que o presidente Lula da Silva, o lulismo e agora o lulo-psdebismo são a encarnação dessa decadência e dessa erosão.
Numa equação bem confusa, eles supõem que multilateralismo é sinônimo de globalismo e que globalismo é inimigo do Ocidente e que Ocidente (e tudo que ele representa) é o último refúgio da dignidade humana. Não vale a pena adentrar nessa confusão por agora [é preciso voltar a tudo isso, em espaço maior, com muito vagar]. Mas é de se notar que, no fundo, eles entendem o presidente Lula da Silva, o lulismo e os não-bolsonaristas como quase anti-Cristos, anti-Ocidente e anti-Brasil.
Os incidentes do 8 de janeiro foram promovidos pela camada odiosa e vulgar do bolsonarismo e não por seus ideólogos. A franja lunática e grosseira que adentrou as dependências dos Três Poderes em Brasília está longe de ter consciência da profundidade da luta que lutam os “pensadores” do bolsonarismo.
A razão bolsonarista é imperativamente letal ao modelo de democracia vigente e possui lastros pelo mundo inteiro. Não é precisamente uma “extrema-direita”. Trata-se de algo muito mais sutil e mais radical. Algo específico do século 21. Um sinal dos tempos.
Diferente do que se costuma indicar, a razão bolsonarista não é inculta nem breve. Nada disso. Ela veste punhos de renda; muita vez, em seda. Acompanha com paciência a composição de forças do governo recém-instalado. E planeja com percuciência o momento ideal para o golpe letal. Que não foi o do domingo, 8, nem foi desta vez.
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A razão bolsonarista. Artigo de Daniel Afonso da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU