De onde vem a riqueza de tão poucos

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10 Março 2023

"Em obra político-didática essencial, Michael Hudson descreve as engrenagens do rentismo capitalista pós-moderno. Livro alerta: ao parasitar o trabalho produtivo, o Ocidente autocondena-se a estagnação econômica, regressão social e fascismo", descreve Ladislau Dowbor em resenha da obra Destiny of Civilization: Finance capitalism, industrial capitalism or socialismde Michael Hudson (Islet Editorial, 2022).

Eis a resenha. 

Michael Hudson escreveu o que me parece ser a melhor e mais clara explanação sobre como a economia financeirizada transforma a sociedade moderna. Não estou exagerando nos qualificativos, trata-se de um trabalho realmente excepcional, e que permite que qualquer pessoa com um nível razoável de cultura possa entender os principais dilemas de como nos organizamos como sociedade. O livro resulta de um curso para a universidade chinesa Global University for Sustainability, transcrito pelos chineses, revisado pelo autor, e transformado numa prosa onde a oralidade e os exemplos asseguram a compreensão das principais dinâmicas do capitalismo atual. O livro explica, não complica.

Um ponto chave é a confiabilidade. Michael Hudson tem décadas de contribuições na área financeira, trabalhou com governos e instituições internacionais, e se tornou um dos principais decodificadores dos mecanismos e das narrativas que geraram a desigualdade explosiva que vivemos. Ter trabalhado nas instituições financeiras é essencial para poder sistematizar os impactos da financeirização. O fato do curso ter sido realizado para chineses é particularmente interessante, pois a China, como o próprio livro apresenta, se caracteriza por um sistema misto que envolve economia de mercado, regulação estatal e contratos negociados com empresas transnacionais que se instalam no país, gerando uma articulação inovadora. Em particular, a China manteve a atividade bancária como instrumento público de fomento das atividades produtivas.

No prefácio, Wen Tiejun, economista e professor da universidade Renmin, resume: “Essas palestras explicam porque os EUA e outras economias ocidentais perderam a sua dinâmica anterior: uma classe rentista estreita ganhou o controle e se tornou o novo planejador central, usando o seu poder para drenar renda da indústria e de trabalhadores de alto custo cada vez mais endividados. A doença americana de desindustrialização resultou do fato dos custos da produção industrial terem sido inflados pelas rentas econômicas extraídas por essa classe, no quadro do sistema de capitalismo monopolístico financeiro que atualmente prevalece no Ocidente” (iv). Esse espelho em que nos vemos pelos olhos de um pesquisador chinês é particularmente interessante.

O deslocamento essencial, muito bem explicitado e comprovado por Thomas Piketty, é que no capitalismo de hoje rende mais fazer aplicações financeiras do que investir na produção. Segundo Hudson, ”os retornos para o capital financeiro são mais elevados do que as taxas de lucro industriais. Fortunas se fazem mais rapidamente ao endividar a indústria, os bens imobiliários, os assalariados e os governos, drenando (siphoning off) o excedente econômico por meio de juros, outras tarifas financeiras e bônus, e ao “financeirizar” a gestão de empresas industriais para inflar os preços das suas ações e títulos ” (93). Assim, “o volume da dívida numa economia cresce exponencialmente pela magia do juro composto, mas não a economia real. Isso significa que o volume da dívida deve necessariamente crescer até exceder a capacidade real da economia pagá-la” (102). Assim, o endividamento tornou-se um dos principais mecanismos de apropriação do excedente produzido pela sociedade.

A questão da privatização aparece com força: “A questão básica é se o dinheiro e o crédito, terra, recursos naturais e monopólios serão privatizados e concentrados nas mãos de uma oligarquia rentista, ou usados para promover a prosperidade geral e crescimento. Isso é basicamente um conflito entre capitalismo financeiro verso socialismo como sistemas econômicos. Quando os estrategistas comerciais americanos justapõem a ‘democracia’ do mundo livre e a autocracia chinesa, o conflito maior na realidade se refere ao controle governamental do dinheiro e do crédito. A China evitou a dependência externa ao não transformar os seus investimentos em infraestrutura em pedágios que extraem rentas (rent-extracting tollbooths) sobre estradas, telefonia e outros monopólios naturais como é característico das economias rentistas ocidentais. Manteve os serviços de infraestruturas básicas com preços baixos por meio de empresas públicas” (218).

Em termos de teoria econômica, Hudson se volta muito aos clássicos, como Adam Smith, Ricardo e outros, para quem liberalismo significava se livrar do conjunto de controles, taxas e impostos que as aristocracias utilizavam para drenar as atividades industriais e comerciais. Eram oligarquias improdutivas que oneravam qualquer atividade produtiva, para sustentar as suas guerras e luxuosos palácios. Versalhes não era de graça. No final do século 19, Bismarck introduziu um conjunto de políticas sociais, entendendo que o financiamento público barateava a mão de obra para a própria indústria: o Estado se tornava produtivo. Era do interesse do capitalismo industrial.

Mas as teorias não são tanto sobre o que funciona na economia, e sim para quem a economia deve funcionar. A teoria que hoje defende privatizações e estado mínimo tem endereço óbvio. O neoliberalismo busca justificar as vantagens dos rentistas, em nome do interesse geral. Terminamos tendo oligarquias financeiras improdutivas lucrando ao endividar ou ao impor dividendos sobre as atividades produtivas, a indústria, o comércio e o próprio Estado. Olhamos para a bolsa para saber se a economia vai bem, como se os dividendos pagos sobre o petróleo – extraídos de cada botijão de gás que a população paga – fossem resultado de produção.

Nada como ouvir um banqueiro brasileiro afirmar com orgulho que a situação dos bancos no Brasil “é sólida”. Os bancos constituem uma atividade meio, um custo para a sociedade, não um “produto”. Nos termos de Hudson, um “overhead”. Falamos muito de quanto nos custa o setor público, mas não quanto nos custam os intermediários financeiros. Ao impor limites (Teto de Gastos) sobre políticas sociais como educação e saúde, que são atividades fins, que contribuem diretamente para o bem-estar da população, de maneira a pagar mais aos banqueiros e acionistas, que representam um custo de intermediação, estamos simplesmente financiando um setor que drena a economia. De certa forma, voltamos aos tempos aristocráticos, desta vez com oligarquia financeira.

Em 1993, os banqueiros conseguiram modificar o cálculo do PIB, de forma a incluir os lucros dos banqueiros como contribuição ao crescimento, em vez de custo de intermediação, um ônus. “As estatísticas de PIB mostram uma proporção crescente do PIB como sendo rentismo para bancos e donos de títulos, donos de imóveis e de monopólios. Os juros que cobram, penalizações de devedores, e rentas sobre imóveis e monopólios, são apresentados como refletindo um produto na forma de “serviços financeiros” ou serviços de senhorio e extração financeira semelhantes” (238). Para dar um exemplo, se eu, professor Ladislau, contrato um gestor financeiro para cuidar da minha poupança, e ele me custa mais do que acrescenta, o meu “PIB” individual diminui. Acrescentar os custos do gestor como “produto” é absurdo. Mariana Mazzucato, no seu O Valor de Tudo, detalha também essa deformação do cálculo do PIB: “As contas nacionais atualmente declaram que estamos melhor quando uma parte maior da nossa renda flui para as mãos de pessoas que ‘administram’ nosso dinheiro, ou que especulam com a seu” (The Value of Everything, p. 109). Assim, a atividade financeira especulativa aumenta artificialmente o nosso PIB.

O resultado é que “a ideologia econômica de hoje é basicamente a economia do Um Porcento, apagando a distinção clássica entre renda e crédito produtivos e improdutivos. Ganhos de rentismo são atualmente apresentados como se acrescentassem ao produto nacional (como medido pelo PIB), não como um custo (overhead) extraindo renta do resto da sociedade como ‘pagamentos de transferência’. O resultado não é democrático; é oligárquico” (277). Trata-se de privilégio obtido pela força política, não por racionalidade econômica: são leis que ampliam privilégios privados (privilégio vem do latim privada-lei). Na Constituição de 1988 o artigo 192 qualificava agiotagem como crime, mas os bancos conseguiram tirar a lei, como conseguiram que os seus lucros fossem isentos de imposto (lucros e dividendos distribuídos, 1995). Não é a “ciência econômica” que leva a essa deformação, e sim interesses financeiros. Estamos sustentando parasitas. “O controle do setor financeiro sobre o poder do governo de regular, legislar e aplicar a lei, bem como sobre a política do Banco Central torna os juros cobrados quase puro rentismo econômico” (87).

Os mecanismos de extração de renta improdutiva hoje atingem diversos setores. “Todas as formas de rentismo – sobre terra, monopólios e juros – derivam de privilégios legais assegurados pelo estado, generosamente chamados de ”direitos”, indo dos direitos sobre recursos minerais do solo e do subsolo até “direitos de propriedade intelectual” e outros monopólios, encabeçados por privilégios bancários e de criação de moeda. Tais privilégios são obtidos dos governos, e assim as rentas que deles resultam são custos de produção políticos em vez de tecnologicamente necessários” (86).

Hudson também explicita o funcionamento muito particular da economia americana, único país a ter o privilégio de emitir uma moeda mundial, permitindo-lhe financiar as guerras e suas 750 bases militares pelo mundo afora com simples emissão: dinheiro que irá circular no exterior ou como reservas de divisas de bancos centrais, sem gerar inflação nos EUA. “O que sustenta o poder militar é o controle do sistema financeiro internacional, permitindo-lhe gastar mais de $1 trilhão anualmente para financiar operações militares que quebrariam a taxa de câmbio de qualquer outro país, e que na realidade levou o dólar de ser tirado da base de ouro em 1971” (186).

Como enfrentar essa oligarquia financeira internacional? Na página 225 o autor apresenta 11 linhas de ação, medidas que permitam resgatar o bom senso e a utilidade social na economia. Resumindo, a visão geral apresentada por Michael Hudson é de uma economia mista. “Existem essencialmente dois tipos de sociedade: economias mistas com pesos e contrapesos públicos, e oligarquias que desmantelam e privatizam o Estado, tomando o controle do seu sistema monetário e de crédito, o solo e infraestrutura básica para enriquecer, mas travando a economia, não ajudando no seu crescimento. A lição da história é que oligarquias privatizadas polarizam e se tornam estados falidos. Economias mistas com governos suficientemente fortes para proteger a sua sociedade e as pessoas da exploração predatória rentista são resilientes e têm sucesso” (275).

Pelo estilo direto, que apresenta os desafios práticos e reais da economia moderna, com numerosos exemplos e ilustrações, considero este livro como aquele comando no computador que permite “atualizar” o nosso software, neste caso atualizar a compreensão do capitalismo tal como hoje funciona. O capitalismo realmente existente vive de sucessos emprestados de outra era. Em termos econômicos, perdeu a sua legitimidade.

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