03 Outubro 2020
"O país retrocedeu e está prostrado, mas a crença na “mercantilização eficiente” o inebria e impede de enxergar a si mesmo. Que fatos estão ocultos por esta operação ideológica? Que interesses poderosos permitem que ela esconda o Real?", escreve Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia e professor da PUC-SP e da Umesp, em artigo publicado por Outras Palavras, 01-10-2020.
Todos temos um pouco de raízes nas visões de Celso Furtado. Além das leituras, tive a oportunidade de cobrir pelo Jornal do Comércio de Recife uma reunião da Sudene, em 1963, em que Celso Furtado pedia aos governadores que resolvessem na própria reunião o andamento de alguns projetos. Frente à resposta de um dos governadores de que seria preciso dar um prazo para “as devidas considerações”, Celso respondeu secamente que também poderia tomar tempo para as “devidas considerações” quando recebe pedidos dos governadores. Faceta de um realizador frente aos marasmos políticos.
Celso Furtado nos permitia focar problemas estruturais da sociedade. Queria na presente nota trazer o problema da subutilização de fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia como a política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas.
A realidade é chocante: neste país de 212 milhões de habitantes, o emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando 11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de trabalho de 105 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma dimensão particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se trata, para além do drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese de Indicadores Sociais 2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor informal. Segundo o IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que o trabalhador formal aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser empreendedor individual sem dúvida frequentemente assegura uma aparência mais digna à subutilização, mas vemos na própria uberização e terceirizações irresponsáveis o que isso pode significar. E temos 13 milhões de pessoas formalmente desempregadas. Somando os 40 milhões do setor informal e os 13 milhões de desempregados, são 53 milhões, a metade da força de trabalho. A esse contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que estão em idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
No conjunto, a subutilização da força de trabalho, num país onde há tantas coisas por fazer, é absolutamente chocante. Em cada um dos 5.570 municípios do país, temos por exemplo pessoas desempregadas e terra parada. Não é complicado pensar que se possa organizar um cinturão verde hortifrutigranjeiro em torno de cada um, simplesmente articulando os fatores de produção parados. Em Santos, no tempo de David Capistrano, acompanhei o projeto em que os desempregados da cidade foram cadastrados e organizados na Operação Praia Limpa, que permitiu realizar as obras de saneamento, tirando os esgotos dos canais pluviais, o que recuperou a balneabilidade das praias, e em consequência o turismo, a atividade hoteleira e semelhantes, transformando uma operação temporária em empregos permanentes. Exemplos não faltam, planejamento econômico e social consiste em boa parte em articular fatores subutilizados.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a desigualdade com a falta de iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe ensinem disposição para trabalhar, precisa de oportunidades. Isso envolve planejamento e iniciativas públicas, em vez de discursos ideológicos.
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da subutilização dos fatores. O Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilômetros quadrados correspondem a 850 milhões de hectares. Segundo o censo, 353 milhões de hectares constituem estabelecimentos agrícolas. Nesses, 225 milhões de hectares constituem solo agricultável, portanto disponível para atividades produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela disponibilidade de água. O que choca, é que somando a agricultura permanente e temporária, o uso produtivo no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares. Arredondando, temos 160 milhões de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado. Essa área representa 5 vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada pela pecuária extensiva. O limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um amplo debate devido à pressão secular pela reforma agrária no país. Usar imensas regiões com quase um hectare por cabeça de gado gera sem dúvida fortunas para os conglomerados agroexportadores de carne, mas para quem conhece formas modernas de criação de gado semi-confinado, com as unidades de pecuária plantando forragem, o desperdício torna-se evidente. Numa imensa parte do Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo improdutivo. A pecuária extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está articulada com os grandes traders de commodities agropecuárias.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil constitui uma ficção, permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na Europa e em outras regiões, o fato de pagarem impostos sobre terra parada estimula os proprietários a utilizá-la de maneira mais produtiva, ou vendê-la para quem produza. Em particular, é preciso tributar o rentismo, em que se valorizam terras com a simples expansão de infraestruturas e da urbanização. Em Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos produtos nas gôndolas dos supermercados vêm de São Paulo, enquanto em volta da cidade dormem imensas extensões de terra parada, que se valoriza passivamente com a expansão urbana. Estamos esperando que “os mercados” resolvam?
Tão gritante como a subutilização da força de trabalho e da terra no Brasil, é a subutilização do capital, que se transforma em patrimônio familiar e aplicações financeiras em vez de investimentos produtivos. Isso trava o desenvolvimento de infraestruturas, a produção de bens e serviços e o emprego. No Brasil raros que fazem a distinção tão essencial entre aplicação financeira e investimento produtivo. Em francês, placements financiers e investissements é bastante clara. O Economist, por falta de conceito de aplicação financeira, distingue speculative investments e productive investments. Mariana Mazzucato utiliza financial investments para caracterizar a diferença. O fato é que no Brasil o que os bancos chamam de investimento constitui uma imensa esterilização dos nossos recursos.
Os 206 bilionários brasileiros apresentados na edição especial da Fortune são essencialmente donos de holdings, acionistas, controladores de fundos de investimentos, donos de cotas acionárias, e naturalmente banqueiros ou acionistas de bancos. A intermediação financeira transformou-se entre nós em autêntica extorsão. Um dos principais mecanismos são as taxas usurárias de juros, representando como ordem de grandeza ao mês o que no resto do mundo se cobra ao ano. Exemplos de custo efetivo total de crédito apresentados pela ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis) incluem, para pessoa física em junho de 2020, 74% em média no crediário comercial, 256% no cartão de crédito, 129% no cheque especial, 46% no empréstimo pessoal nos bancos. A título de comparação os juros sobre cartão de crédito no Canadá eram 22% ao ano, reduzidos por ordem do governo para 11% com a pandemia.
Para pessoa jurídica a média apresentada é de 43%. Todas essas taxas estão no mesmo nível desde 2013, apesar da forte redução da taxa Selic. [1] O resultado é que duas forças essenciais de propulsão da economia, a demanda das famílias e o investimento das empresas, se vêm drasticamente reduzidas, ainda antes da pandemia. Lembrando que o último ano de crescimento significativo da economia brasileira foi 2013, de 3,0%. Com a ofensiva contra a fase desenvolvimentista e distributiva em 2013 e 2014, a guerra da Lava jato e o caos pré e pós-eleitoral, a economia brasileira está no sétimo ano de paralisia. O primeiro trimestre de 2020, sem impacto econômico significativo ainda da pandemia, apresentou uma queda do PIB de 1,5% relativamente ao trimestre anterior. O dreno dos recursos pelos grupos financeiros desarticulou a economia e a mantém parada.
Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização se tornou essencial. Os trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de Marjorie Kelly, de Ann Pettifor e de tantos outros permitiram uma reviravolta depois de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a produção de bens e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao ano. Os rendimentos de aplicações financeiras em volumes elevados rendem entre 7% e 9%. Entre juros e dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se divorciou em grande parte dos processos produtivos. O capital vai para onde rende mais. O mecanismo básico de apropriação do excedente social se deslocou: para explorar um assalariado, o empresário precisa pelo menos gerar um posto de trabalho. Hoje o endividamento das famílias é generalizado, as tarifas absurdas nos cartões atingem a todos. E os dividendos elevados nas empresas produtivas tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de “confiança” ou de discurso ideológico, precisa de famílias com capacidade de compra, para ter para quem vender, e de juros baratos para poder financiar a produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra. Após tantos anos de Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas no Brasil estão trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era capital, portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje é essencialmente patrimônio. Entre 2018 e 2019, em 12 meses, os 206 bilionários brasileiros aumentaram os seus patrimônios em 230 bilhões, um aumento de 23% numa economia parada. E já na pandemia, nos 4 meses entre março e julho de 2020, o grupo mais restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas fortunas em 180 bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família, para 42 pessoas, em 4 meses, em plena pandemia. [2] Lembrando ainda que desde 1995 esse tipo de ganhos é isento de impostos.
A dinâmica econômica da China, ou na Coreia do Sul, por exemplo, não constitui um milagre, tratou-se simplesmente de assegurar a orientação dos recursos financeiros para atividades produtivas. Um relatório da ONU resume a questão: ”A prosperidade para todos não pode ser assegurada por políticos com visão de austeridade, corporações centradas no rentismo e banqueiros especulativos. O que necessitamos urgentemente agora é um novo pacto global. ” [3]
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. O que está se formando é muito mais do que de uma ‘indústria 4.0’. A mudança é sísmica. Adotamos aqui a mesma visão expressa no New Scientist: “A tecnologia tem um potencial tão grande que a expectativa geral é que o seu impacto seja tão profundo quanto o da revolução industrial. ” [4] Não é só o dinheiro que se tornou em simples sinais magnéticos registrados em computadores, é o conjunto da economia que desloca as suas formas de organização para o que André Gorz chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e semelhantes que dominam o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das tecnologias, o GAFAM nos Estados Unidos, o BAT na China, os SIFIs (Systemically Important Financial Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão as plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação. [5]
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos Estados Unidos no caso da tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades de pesquisa da Petrobrás, o fechamento do programa de formação de cientistas no exterior, o travamento das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal abortada da Embraer, a transformação do país em mero comprador de patentes: o recuo nesta área terá impactos avassaladores sobre o futuro do país. Temos mais de um terço da população sem acesso à internet, numa era em que ficar fora do sistema digital significa isolamento social. Ainda temos universidades em que os alunos tiram xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os disponibiliza na plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE (China Open Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online de apoio tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura familiar. A Finlândia há 50 anos lançou o programa de generalização de elevação científico-tecnológica do país, com programas educacionais públicos, gratuitos e universais. No Brasil ainda se discute a privatização e distribuição de vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se travar as oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou adequadamente de A elite do atraso.
Celso Furtado tinha a ideia clara da importância do Estado e do planejamento. No nosso caso, em nome de ideologias ultrapassadas, está se paralisando o país, mas também comprometendo o seu futuro. A ideia do ‘Estado Mínimo’ é simplesmente burra. Há coisas que a empresa privada faz melhor, como produzir tomate, bicicleta ou automóvel. Entregar para grupos privados serviços básicos como saúde, educação, cultura, segurança e outras políticas sociais leva a perdas radicais de eficiência. O maior setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, cerca de 20% do PIB. O custo dos serviços americanos de saúde, em grande parte privatizados, é de 10.400 dólares por pessoa por ano. No Canadá, onde os serviços de saúde são públicos, gratuitos e de acesso universal, o custo é de 4.400 dólares. O Canadá está entre os primeiros em termos de qualidade da saúde da população, no conjunto dos países da OCDE, enquanto os Estados Unidos entre os últimos.
Mariana Mazzucato, no seu O Estado Empreendedor, e no mais recente The Value of Everything, traz com força a importância do papel do Estado na promoção de políticas. Não se trata do tamanho do Estado, e sim dos efeitos multiplicadores, em termos de produtividade sistêmica do país, que pode trazer um Estado forte e orientado pelos interesses da nação. No nosso caso, com a apropriação de funções-chave do Estado por grupos privados, e a liquidação da regulação financeira, é o conjunto das atividades do país que é prejudicado, e inclusive tantas empresas produtivas que apoiaram os retrocessos políticos. Entramos na era da pandemia com 6 anos acumulados de marasmo econômico e social. Resgatar o papel do Estado como indutor de desenvolvimento, resgatar a função do planejamento na articulação dos recursos subutilizados, e em particular resgatar a regulação do sistema financeiro, para que financie o que é necessário ao país, são apenas pontos de partida. É impressionante ler no editorial do Financial Times de 4 de abril de 2020, em plena pandemia, de que “os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia, e devem ver os serviços públicos como investimentos, não como obrigações. ” Aqui economistas pré-históricos falam em Estado-Mínimo e qualificam os serviços públicos como “gastos”. Que saudades de Celso Furtado.
[1] Ver ANEFAC, pesquisa mensal de juros. Disponível aqui.
[2] Dados da Forbes aqui. Dados da Oxfam aqui.
[3] UNCTAD – Trade and Development Report 2017: Beyond Austerity, Towards a Global New Deal – Unctad, Geneva, 2017, p. ii
[4] “The technology has such potential that its impact on society is widely expected to be as profound as the industrial revolution.” – New Scientist, April 23, 2018
[5] Detalhamos essas transformações, e a gestação de um novo modo de produção informacional, em O Capitalismo se Desloca: novas arquiteturas sociais, SESC, São Paulo, 2020. Disponível aqui.
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Dowbor: Os cinco fatores de nossa miséria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU