Poeta, romancista e antropólogo, o baiano Antonio Risério, 70 anos, sempre foi ligado à esquerda e chegou a integrar a Política Operária - Polop, uma organização clandestina dos anos 1960. Sua oposição ao regime militar rendeu-lhe até uma prisão. Atuou também no marketing político e foi redator das campanhas presidenciais de Lula (2002 e 2006) e Dilma Rousseff (2010), quando trabalhou com os marketeiros baianos Duda Mendonça e João Santana.
A entrevista é de Roberto Midlej, publicada por Correio da Bahia e reproduzida pelo entrevistado em sua página do Facebook, 30-07-2024.
Suas críticas aos governos de Lula e Dilma - afirmou que a presidente eleita em 2010 cometeu estelionato eleitoral - transformaram-no em persona non grata entre os esquerdistas. A rejeição desse grupo a Risério tornou-se ainda maior quando o antropólogo passou a fazer críticas aos grupos identitários. Esses, por sinal, são o tema de seu mais novo livro, Identitarismo (LVM/ R$ 60/ 280 págs.).
Sem receio de se envolver em polêmicas, o autor é incisivo: "O resultado [do identitarismo] foi a formação de uma ideologia que voltou as costas às realidades sociais e econômicas do mundo, passando a encarar tudo em termos de raça e sexo. É um novo determinismo".
Risério também critica algumas causas dos movimentos identitários, que podem estar abandonando questões reais - como a luta contra a miséria - por outras simbólicas: "Temos a tragédia gaúcha, a expansão das favelas, o desemprego, a violência urbana, a fome e as pessoas ficam aí encasquetadas querendo obrigar todo mundo a dizer 'todes'." Nesta entrevista, Risério falou com o CORREIO sobre seu novo livro. Em tempo: o antropólogo assegura que não é direitista. “Continuo onde sempre estive: na esquerda democrática, hoje mais do que minoritária”.
Inicialmente, um importante esclarecimento ao leitor: afinal, o que é o identitarismo?
É um movimento nascido no sistema universitário norte-americano, a partir das “lutas de minorias” da década de 1960 e dos pós-estruturalismo francês, que descartava o marxismo. Tudo sob o alto patrocínio da Fundação Ford. O resultado foi a formação de uma ideologia que voltou as costas às realidades sociais e econômicas do mundo, passando a encarar tudo em termos de raça e sexo. É um novo determinismo, agora zoológico: você e seu destino estão eternamente aprisionados, determinados, pela sua anatomia ou pela cor da sua pele. O que importa são os grupos “oprimidos” que aí se formam. Substituiu-se o universalismo humanista pelo tribalismo, pela “guetificação” do mundo. E o imperialismo cultural norte-americano impôs isso no meio universitário brasileiro, com altas injeções de dólares, ainda através da Fundação Ford. O que, aliás, foi fácil de fazer: uma universidade paupérrima, sem dinheiro para comprar saco de pipoca, se rendeu à poderosa grana da Ford, que passou a financiar alunos e professores, bancar pesquisas e livros e até dar treinamento para a formação de “ativistas”, como aconteceu aqui na UFBA. Nada disso é segredo. Basta olhar as planilhas da Fundação Ford da década de 1970 para cá. Está tudo lá, perfeitamente discriminado: o nome da entidade ou instituição financiada e a soma de dólares que ela recebeu.
Logo no início do livro, o senhor faz questão de dizer que sempre esteve na esquerda. As suas críticas ao identitarismo fizeram muita gente da esquerda “empurrá-lo” para a direita e para o bolsonarismo?
A esquerda brasileira costuma tratar suas dissidências político-ideológicas não pelo que elas são, mas, como já dizia Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil”, como uma questão familiar, clânica. Você não é encarado pelo que é, como encarnação do dissenso, nem é discutido politicamente. A esquerda limita-se a fazer condenação moral e análise pseudopsicológica: tenta caracterizá-lo como ressentido e traidor. A outra forma é um velho truque stalinista que o PT assimilou e transmitiu ao identitarismo: se alguém de esquerda discorda da esquerda hegemônica, hoje lulopetista ou “identipetista”, o negócio é caracterizar esta voz discordante como de direita, como bolsonarista, no caso atual. É um golpe sujo e surrado, para evitar a discussão política e cultural. E funciona. Militantes precisam de acusações falsas, de maniqueísmos, de ataques morais, porque, regra geral, são seres mentalmente primários. Mas mesmo Ana de Holanda, que foi ministra da Cultura e me conhece muito bem, outro dia disse a um amigo comum que eu “tinha ido para a direita”. Ou seja: em vez de ler o que escrevo, ela preferiu acreditar na intriga petista. É mais fácil. Mas eu continuo onde sempre estive: na esquerda democrática, hoje mais do que minoritária.
O senhor fala em “fascismo identitarista”? Há mesmo elementos fascistas no identitarismo? Que elementos seriam esses?
Muitos. Tanto nazistas, quanto fascistas. Existem identitarismos de direita e identitarismos de esquerda. Como o identitarismo nazista, na direita. E há muitos pontos em comum entre o nazismo e a esquerda identitarista. A começar pelo ataque frontal à mestiçagem, que foi uma questão central do nazismo. Do mesmo modo, quando nossos racialistas neonegros dizem “só negro entende coisa de negro”, estão repetindo o princípio nazista de que só arianos entendem a cultura ariana. Eles se irmanam também na recusa à “verdade” e à “ciência” (“uma narrativa como outra qualquer”). E essa obsessão “negra” por ancestralidade e raízes raciais descende da política nazista do “Blut und Boden”, isto é, “sangue e solo”. No caso do fascismo, vemos isso em dois níveis. No sentido histórico do conceito e no sentido cotidiano, dicionarizado, da palavra. No plano conceitual, o projeto de um Estado Identitário (como vimos naquela recente proposta de constituição que o povo chileno recusou) é uma versão do Estado corporativo do fascismo mussolinista, apenas com a substituição de “categorias profissionais” por “grupos oprimidos”. Já no campo semântico cotidiano, basta olhar o dicionário “Houaiss”, por exemplo, que define o fascismo em termos de exercício (ou de tentativa) de controle autoritário. E veja o identitarismo, tal como existe e atua à nossa volta: é polícia do pensamento, polícia da arte, polícia do sexo, polícia da linguagem.
Às vezes, tem-se a sensação de que, para os movimentos identitários, os simbolismos - como a recomendação de não usar a palavra “denegrir” ou a exigência do uso de pronomes neutros - são mais importantes que questões mais concretas. Isso realmente ocorre?
Muitos críticos do identitarismo – especialmente, fora do Brasil, onde eles realmente são muitos e o movimento identitarista já dá sinais do início de seu declínio – apontam isso. Como o iraniano Sohrab Ahmari, a alemã Sahra Wagenknecht, a francesa Nathalie Heinich, etc., etc. Também a filósofa judia norte-americana Susan Neiman lamenta que a suposta esquerda de nossos dias – a pseudoesquerda identitarista, sustentada por grandes bancos e patrocinada pela grande mídia – pareça não ter olhos para questões econômicas e sociais, obcecada por pautas de “costumes”, atitudes morais, práticas linguísticas. Vejam a situação no Brasil atual. As questões reais não são tratadas por esta esquerda “cultural”. Temos a tragédia gaúcha, a expansão das favelas, o desemprego, a violência urbana, a fome, etc., e as pessoas ficam aí encasquetadas querendo obrigar todo mundo a dizer “todes”. Ora, uma esquerda mais preocupada com discussões pronominais do que com questões econômicas só pode estar vivendo mesmo em outro país, em algum país paradisíaco. E ainda há uma coisa paradoxal: é uma polícia de semiletrados que quer determinar o futuro da língua portuguesa... Ninguém é obrigado a ser culto, obviamente. Mas não se pode confiar a ignorantes a tarefa de definir rumos de uma cultura. E é isso o que está acontecendo hoje entre nós: um bando de ignorantes querendo nos obrigar a falar do modo que eles acham que é certo. Só rindo.
A esquerda se tornou uma polícia de semiletrados que quer determinar o futuro da língua portuguesa
As suas críticas ao identitarismo já lhe implicaram a pecha de racista, misógino ou homofóbico?
Claro. De “supremacista branco”, o que é ridículo, em qualquer sentido. O problema é que eles são dogmáticos, se consideram donos absolutos da verdade, e não praticantes de uma ideologia como qualquer outra. O identitarismo é uma religião. Façamos uma comparação. Se você discorda de um determinado discurso sobre a fome, isto significa que você é contra aquele discurso. Só. Não quer dizer, de modo algum, que, por ser contra aquele discurso, você é a favor da fome. Mas a lógica do identitarismo racialista é essa. Eles querem que todo mundo acredite que, quem discorda do discurso racial deles, não é simplesmente contrário àquele discurso – mas, sim, a favor do racismo. É uma estupidez. Mas muito esperta e eficaz, porque inibe ou neutraliza vozes discordantes, que é tudo que o fascismo identitarista quer. Daí o uso dessas palavras mágicas, como racista ou homofóbico, para calar adversários. Mesmo porque essa militância, em sua prática discursiva, não sabe argumentar. Substituíram o argumento pelo insulto. A resposta ao dissenso é xingar. Costumo dizer que xingar é o que faz o militante identitarista ter a ilusão de transcender a própria pequenez, como “o anão que se acha alto quando cospe longe”, para lembrar a frase de Prosper Merimée em “Carmen”.
O que é a “clicheria slogamática” identitarista?
Os militantes racialistas parecem incapazes de desenvolver qualquer raciocínio lógico, analítico. Recorrem sempre a dois expedientes. Um deles é o expediente fascista do “lugar de fala”, feito para calar o interlocutor que discorda. Seu princípio é o seguinte: “eu sou mais oprimido do que você, logo, quem pode falar de opressão sou eu”. O que é uma tolice, porque viver uma situação e entender esta situação são duas coisas completamente distintas. Mas é um truque que encerra a conversa. Aliás, alguém já definiu os identitaristas como “conversation killers”. O outro expediente é o das frases feitas, das fórmulas verbais, o que os linguistas tratam como “sintagmas cristalizados”. Militantes de esquerda ou de direita usam e abusam disso. Me lembro de assembleias estudantis na década de 1970, quando não havia discurso em que o orador não emitisse a fórmula “a ditadura que prende, tortura e mata”. Hoje, a clicheria racialista vem de “racismo estrutural”, “privilégio branco” e outros sintagmas cristalizados. George Orwell escreveu um ensaio maravilhoso sobre o tema – “Politics and the English Language”. Ele mostra como essas fórmulas verbais automatizam o raciocínio e, por isso mesmo, fazem com que as pessoas que as usam não precisem pensar. E o nó do problema, na minha opinião, está justamente aqui: é preciso pensar.