12 Julho 2022
"O feminismo universalista propõe lutar para alcançar condições de igualdade, mas respeitando as diferenças. Isso abre uma condição de liberdade para as mulheres que permite que elas não sejam ontologicamente atribuídas ao seu sexo, mas possam se mover no espaço público como puros e simples seres humanos", escreve Lucetta Scaraffia, historiadora italiana, membro do Comitê Italiano de Bioética e professora da Universidade de Roma La Sapienza, em artigo publicado por La Stampa, 11-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para o feminismo foi um verdadeiro terremoto. O repentino e sob muitos aspectos inesperado ressurgimento do tema do direito de aborto, após a decisão de não o reconhecer da Suprema Corte dos EUA, está desestruturando os programas do neofeminismo, isto é, das correntes feministas que estão se afirmando a partir de 2010. Essas novas correntes do feminismo sustentam a ideia - aliás já proclamada por Simone de Beauvoir - de que a diferença entre os sexos não existe como dado natural. Em última análise, seria uma diferença cultural, "socialmente construída".
É assim que o feminismo se abriu à possibilidade de modificar, ou melhor, anular, toda discriminação sexista, anulando nem mais nem menos a própria diferença em que se baseia tal discriminação.
Ou seja, para usar a nova linguagem que essa orientação engendrou, o programa do neofeminismo passou a ser o de substituir o termo sexo - que se refere a uma realidade biológica - pelo de gênero (ou melhor ainda, pelo termo inglês gender): uma característica, esta, considerada de tipo cultural-simbólica, portanto modificável. Daí, finalmente, a abolição conceitual do dualismo masculino-feminino, o recurso à "xevá" para apagar na linguagem a referência àquela odiada polaridade masculino/feminino, daí as leis que sancionam quem se opõe a essa transformação.
Até ontem, esses eram os termos da questão, esses eram os pontos para os quais convergiam as batalhas políticas. Hoje, porém, o retorno do aborto à mesa de discussão coloca em crise esse novo arranjo. O aborto lembra, de fato, que só as mulheres concebem e, portanto, só as mulheres devem/podem abortar. A diferença retorna ali, naquele terreno biológico, onde a batalha a ser travada não pode ser enfrentada com o discurso sobre o gender. Em certo sentido, o aparecimento do tema da violência sexual já havia evidenciado uma diferença de substância: como negar que as vítimas da violência eram, sem dúvida, em maior número as mulheres, aliás, quase só mulheres?
A questão da violência podia, no entanto, ser estendida aos menores de ambos os sexos, àqueles que se definem como LGBTs e, portanto, não havia de fato afetado seriamente o discurso de gênero. As vítimas eram, de fato, não apenas as mulheres, mas também os grupos minoritários socialmente desfavorecidos, então tudo caia dentro da dupla dominante-dominado.
Na luta pelo aborto, porém, as mulheres, vítimas, propõem uma inversão da dominação, tornando-se detentoras absolutas do direito à vida de um feto que não é só delas, mas também do pai. No entanto, não se trata de uma inversão que apaga as diferenças, mas de uma inversão baseada nas diferenças: de fato, só as mulheres podem gerar, só as mulheres podem abortar. O padrão das batalhas do gênero é, portanto, forçosamente posto de lado, revela-se totalmente inadequado, ou melhor, improponível.
O feminismo atual só poderia sair desse impasse ideológico de uma única maneira, em minha opinião: deslocando o olhar mais para cima, mais para a frente, ou seja, adquirindo uma posição universalista. A socióloga francesa Nathalie Heinich propõe isso em um artigo traduzido pela bela revista Vita e pensiero, animada por Roberto Righetto. Mas para isso é preciso coragem: a posição universalista exige, de fato, um esforço intelectual superior, uma capacidade de abstração, que leve em conta a igualdade formal, não apenas aquela real.
De acordo com essa perspectiva, as mulheres devem reivindicar seus direitos de igualdade de tratamento por serem seres humanos, portanto iguais aos homens, não por pertencerem a um grupo dominado. “O feminismo universalista – observa Heinrich – está ligado à concepção republicana de ‘comunidade de cidadãos’, que convida a colocar entre parênteses no contexto cívico o que nos diferencia em favor do que temos em comum”. Ou seja, propõe lutar para alcançar condições de igualdade, mas respeitando as diferenças. Isso abre uma condição de liberdade para as mulheres que permite que elas não sejam ontologicamente atribuídas ao seu sexo, mas possam se mover no espaço público como puros e simples seres humanos.
Podendo, portanto, esperar superar as condições - em muitos setores ainda pesadas – de real desigualdade, mas com base em um princípio válido para todos os seres humanos, ou seja, sem se sentir sempre e em qualquer caso "dominadas".
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Aquela sentença que causou um terremoto no feminismo. Artigo de Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU