“Meus esforços como pesquisadora e grande apoiadora do SUS estão voltados para sairmos da mesmice e desprivatizar a saúde no Brasil”, declara a entrevistada
Consolidado como o maior sistema público de saúde do mundo e um dos pilares da democracia brasileira, o Sistema Único de Saúde – SUS beneficia cerca de 180 milhões de brasileiros todos os anos. Isto é, mais de 70% da população é usuária desta política pública. Baseado nos princípios de universalidade, integridade e equidade, este sistema realiza desde atendimentos ambulatoriais até procedimentos de alta complexidade, como transplantes. Além de consultas, exames e internações, o SUS promove campanhas de vacinação e ações de prevenção de vigilância sanitária. Um arranjo multifacetado que possui muitos acertos, mas também gargalos a serem solucionados.
Contudo, a mercantilização da saúde promovida por princípios neoliberais tem comprometido esta política pública. “O sistema de saúde no Brasil é predominantemente privado. E, sim, é privado também em função de políticas sucessivas de corte neoliberal”, adverte a pesquisadora e professora Ligia Bahia. Para ela, precisamos compreender que “não existe um SUS isolado, mas sim um projeto de SUS em um país brutalmente desigual e que vem estimulando a privatização da saúde”, assinala.
Nesse sentido, devemos estar vigilantes para mobilizar a desprivatização da saúde com a adoção de políticas “para a reversão de subsídios fiscais, créditos, empréstimos de bancos estatais para o setor privado bem como para a regulação de estratégias de alavancagem dos negócios que imponham restrições ao SUS”, coloca Ligia na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo aponta a pesquisadora, “a privatização é um vetor inequívoco de estratificação e essa segmentação joga os indicadores de saúde para baixo. Tentando ser mais objetiva: 25% da população vinculada a planos privados têm à disposição muito mais recursos financeiros e assistenciais, mas é exatamente a parcela que tende a ser mais saudável. Um efeito anti-Robin Hood, privilegia-se a menor parcela, com menos necessidades”.
Para a médica, que é uma das idealizadoras do SUS na Constituição de 1988, não basta só defender, é necessário apoiar também o SUS universal. “O SUS para os pobres é consensual. Não tem opositor. É diferente do apoio necessário, aguerrido ao SUS universal. Sim, precisamos apoiar o SUS. Apoiar sem cinismo, sem fingir que servidor público não está firmemente agarrado em planos privados de saúde, que nas sedes de sindicatos não estão repletas de banners de planos de saúde”, assevera.
Ligia Bahia (Foto: George Magaraia | Abrasco)
Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Possui graduação em Medicina pela mesma instituição e mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos os livros Planos e seguros de saúde: o que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Cepesc, 2015).
IHU – O Brasil reduziu a pobreza extrema, mas aumentou a desigualdade para os super-ricos. Frente a este cenário, gostaríamos de lhe perguntar algo que sempre lhe é perguntado, mas que continua atual: qual a importância do SUS para o Brasil?
Ligia Bahia – O SUS é um projeto nucleado pelo aumento das chances e nascer, viver bem e por muito tempo, morrer de velhice, bem velho(a) e obter as mesmas condições de proteção dos riscos à saúde e cuidados assistenciais. Portanto, sim, o SUS, como previsto na Constituinte de 1988, ao lado de outras políticas de bem-estar social, é um vetor de redução de desigualdades. É importante compreendermos que as políticas de saúde universalizantes não “derrubam” disparidades de classes sociais, raça, cor, entre outras, mas podem incidir positivamente sobre circunstâncias que prolongam a vida com qualidade.
IHU – Por que a saúde suplementar não basta para dar conta das questões de fundo da saúde pública brasileira?
Ligia Bahia – A natureza do setor suplementar, dos planos de saúde privados, e se quisermos ir um pouco mais longe, dos seguros privados, não é a da prevenção, mas de uma monetização, ou atendimento de riscos que se tornam perdas. Portanto, “verdade seja dita,” nunca as empresas de planos se arvoraram a ser “sistema de saúde”. O adjetivo suplementar, foi cunhado por eles, e lhes protege adequadamente. Quem não lembra que os planos de saúde negaram cobertura para testes de Covid-19, quando o preço do exame era relativamente elevado?
Para que um país possua um sistema de saúde é necessário preencher três condições: melhorar a saúde, oferecer proteção financeira aos que necessitam de cuidados de saúde; evitar que os gastos de indivíduos e famílias com saúde causem, além do problema em si, empobrecimento; e ter aceitação da população. Os planos de saúde privados, a rigor, nem sequer atendem o segundo quesito e não buscam, não teriam como, desenvolver ações de redução de determinantes ambientais, econômicos e sociais que afetam a saúde.
Dizemos que a saúde pública é uma área caracterizada pela quebra de ovos para fazer omelete. Indústrias do tabaco, de armas, alimentos ultraprocessados, negacionismo, racismo, preconceitos fazem mal à saúde. São brigas exigentes de uma compreensão ampliada de saúde e de compromissos político e éticos, os quais são distintos em gênero e grau dos inscritos na agenda do setor suplementar.
IHU – Qual deve ser o paradigma orientador das nossas políticas públicas em saúde?
Ligia Bahia – Aumentar a esperança de vida. O sucesso de políticas de saúde pode ser medido em termos de populações longevas e ativas.
IHU – Embora saibamos todos da importância do SUS e seus serviços, quais são seus principais gargalos?
Ligia Bahia – Essa pergunta admite uma dupla interpretação. Em relação aos gargalos que rolam nos debates cotidianos, os mais notórios e permanentes estão relacionados com o racionamento do acesso e qualidade (longos tempos de espera, filas eternas, atendimentos tipo “ele nem olhou na minha cara”), no âmbito das burocracias públicas da saúde, se fala em “gargalo na alta e média complexidade”. Se estivermos querendo debater com mais profundidade e extensão, o gargalo é a desigualdade, o Brasil tem um SUS constitucional e um setor privado de saúde muito exuberante e em pleno processo de expansão. A privatização é um vetor inequívoco de estratificação e essa segmentação joga os indicadores de saúde para baixo. Tentando ser mais objetiva: 25% da população vinculada a planos privados têm à disposição muito mais recursos financeiros e assistenciais, mas é exatamente a parcela que tende a ser mais saudável. Um efeito anti-Robin Hood, privilegia-se a menor parcela, com menos necessidades.
O entendimento sobre o gargalo (os gargalos) é relevante para a busca de soluções. As tentativas de “desobstruir” gargalos pela oferta de exames e consultas especializadas e cirurgias eletivas resultaram até agora em maior acúmulo de demandas reprimidas. Soluções tipo mutirões, corujões, frequentemente acionadas fornecem bons slogans para campanhas eleitorais, mas nem sequer dão conta dos fluxos permanentes de novas necessidades. Tentar suprir o que falta de modo rápido e improvisado tem contribuído para perpetuar gargalos.
Alternativamente, se adotarmos uma acepção menos imediatista e linear sobre o sistema de saúde, poderemos mobilizar políticas para a desprivatização da saúde. Ou seja, estarmos atentos para a reversão de subsídios fiscais, créditos, empréstimos de bancos estatais para o setor privado bem como para a regulação de estratégias de alavancagem dos negócios que imponham restrições ao SUS.
IHU – Como superar o desafio da interiorização do SUS oferecendo procedimentos de média e alta complexidade no Brasil profundo? Como superar a resistência dos médicos em atuarem longe dos grandes centros?
Ligia Bahia – Há interiores e interiores. Estamos nos referindo aqui a espaços territoriais e populações que vivem e trabalham em locais remotos, isolados e ou perigosos e ou onde predominam segmentos populacionais com renda baixa. Em algumas cidades, por exemplo, no interior de São Paulo, os médicos querem trabalhar. A pergunta faz todo sentido ao se referir ao problema de como levar políticas sociais (as políticas de oferta, baseadas em unidades de saúde, escolas, transporte etc.) em um país imenso e diverso. Superar essas assimetrias exige um projeto nacional de desenvolvimento econômico, social e ambiental.
O SUS tem tudo para ser um elemento relevante em um plano Brasil do futuro. Mas é obvio que deveríamos formular políticas específicas de interiorização de cuidados à saúde. Outros países têm experiências muito interessantes, inclusive em relação a saúde indígena. Todas essas alternativas de levar cuidados qualificados para regiões longínquas ou que necessitam respeito e adequações culturais articulam universidades e seus estudantes e unidades de saúde nesses locais bem equipadas. Estudantes dos últimos anos e professores são responsáveis pelos atendimentos, frequentemente mantendo relações estruturantes com as comunidades locais. São estratégias de contorno, não confrontam os médicos. Mas exigem uma participação, presença de instituições públicas nos esforços de implementar direitos à saúde em todo o território dessas nações.
O Brasil experimentou outro caminho com o Mais Médicos na versão contratação massiva de médicos brasileiros formados em instituições privadas com pouco prestígio. Seria importante termos também modelos nucleados por universidades públicas para comparar. É difícil imaginar no médio e longo prazo que faculdades privadas, inclusive fora do país, serão o alicerce para o SUS em locais remotos.
IHU – Como é possível ter uma visão crítica sobre o SUS sem romantizá-lo, mas também sem cair, por outro lado, em um discurso neoliberal insensível à sua importância?
Ligia Bahia – O SUS é um projeto incrível e generoso, eu sou da geração e integro o grupo que esteve às voltas com sua formulação, portanto tenho uma relação de criador/criatura legítima, amorosa e orgulhosa. O que temos pesquisado, e aí sim é preciso criticar, é que o sistema de saúde no Brasil é predominantemente privado. E, sim, é privado também em função de políticas sucessivas de corte neoliberal. Para quem estuda políticas de saúde, os objetos não devem ser recortados tal como as caixinhas da administração os reconhecem. Não existe um SUS isolado, mas sim um projeto de SUS em um país brutalmente desigual e que vem estimulando a privatização da saúde.
Ter um repertório adequado para elaborar uma reflexão crítica sobre políticas e sistemas de saúde é o mínimo que se espera de um pesquisador da área da saúde pública. Um pensamento fundamentalista, ufanista, superficial e pautado por modismos, não faria jus à tradição da saúde coletiva que foi capaz de unir saúde com democracia.
IHU – Como compreender as contradições de órgãos como a Anvisa, que cumpriu um papel fundamental na pandemia, mas hoje é também a porta de entrada de agrotóxicos no país, produtos causadores de danos à saúde pública?
Ligia Bahia – O Estado e as instituições governamentais não são do “bem,” estão permeadas por contradições e por vezes bastante capturadas por interesses econômicos contrários à saúde. A estatolatria é a outra face da moeda do fanatismo acrítico neoliberal, contrário às políticas públicas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa e a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS sempre estiveram entre a “cruz e a caldeirinha”. De fato, um conjunto de instituições e personalidades se destacaram a favor de acelerar a produção e importação de vacinas, entre as quais a Anvisa. E de fato, a Anvisa também se mostra permeável e reticente em relação à autorização e ao banimento de agrotóxicos que são comprovadamente muito tóxicos. Uma ambiguidade que deve ser devidamente registrada para que lutemos por melhores instituições de saúde. Quais são os critérios de avaliação para instituições de saúde? Como podemos aprimorá-las?
IHU – Quais os riscos que o chamado “Arcabouço Fiscal” traz para o orçamento do Ministério da Saúde? Como fazer um SUS de “primeira classe” com a possibilidade de reduzir o já escasso orçamento da saúde?
Ligia Bahia – Nos livramos da Emenda do Fim do Mundo, mas ainda permanecemos imersos nas consequências da reforma trabalhista e da destruição dos marcos institucionais do Estado de bem-estar no Brasil. O arcabouço fiscal impõe amarras aos gastos com saúde, educação, ciência e tecnologia e salários de servidores públicos. Ficamos presos em uma armadilha ideológica: a de sermos um país pobre. Um país que paga 700 bilhões de juros da dívida pública não é pobre. No entanto, o pacto político realizado para buscar sair de uma de uma situação terrível, de um governo da morte e destruição, nos conduziu para uma aliança fiscalista. Não está nada fácil, basta observar as eleições de 2024, para perceber que o tempo médio de vida do ciclo de estrago radical não se esgotou. Ainda estamos vivendo sob ameaças de uma extrema-direita feroz e inescrupulosa, com capacidade inclusive de renovar lideranças. Eu moro em um estado, governado por um adepto da morte sumária, cujo secretário de segurança foi trocado quatro vezes, no qual os comandos dos batalhões da PM são designados por integrantes da Assembleia Legislativa.
Uma longa digressão que pode ser resumida em uma frase. O arcabouço fiscal desfavorece a perspectiva de um SUS qualificado e abrangente e está na contramão de políticas para a saúde no pós-pandemia. O governo que eu apoiei e votei nos trouxe, por um lado, a um patamar civilizatório essencial, vital. Por outro lado, atende, respalda interesses econômicos e políticos contrários ao avanço do padrão de sociabilidade. Por isso, a saúde deveria ter mais relevância, inclusive nos debates econômicos.
IHU – Como fazer política pública de saúde no Brasil frente ao lobby dos setores empresariais do segmento no Congresso?
Ligia Bahia – Os lobbies são legítimos? Vamos admitir que, sim, nas democracias eleitorais (mais eleitorais do que efetivamente igualitárias) os interesses se apresentam na forma de grupos de pressão, lobbies. Nesse sentido, os lobbies não seriam o problema, poderiam existir desde que não ditassem o rumo das políticas de saúde no país. As demandas empresariais teriam uma audiência compatível com a importância do setor para a saúde do país. Não é que acontece, os empresários estão representados em todos os fóruns, desde o Conselhão, em instâncias do Poder Judiciário e especialmente em jantares, casamentos e festas que reúnem as elites políticas do país. Quem representa a saúde nos “salões” são empresários e, quando muito, médicos do setor privado.
IHU – Nós brasileiros devemos defender o SUS? Por quê?
Ligia Bahia – Eu preferia que nós apoiássemos o SUS. Porque defender conota um certo distanciamento, estamos defendendo. Mas quem está atacando? O SUS para os pobres é consensual. Não tem opositor. É diferente do apoio necessário, aguerrido ao SUS universal. Sim, precisamos apoiar o SUS. Apoiar sem cinismo, sem fingir que servidor público não está firmemente agarrado em planos privados de saúde, que nas sedes de sindicatos não estão repletas de banners de planos de saúde. Precisamos nos compreender. Dizer "eu defendo o SUS" e correr para o atendimento privado não é uma pequena contradição, algo que dá e passa. Quem são os “defensores”? Quem tem plano? Meus esforços como pesquisadora e grande apoiadora do SUS estão voltados para sairmos da mesmice e desprivatizar a saúde no Brasil.