Especialistas analisam os descalabros da atual gestão na área da saúde e indicam caminhos para reconstrução e fortalecimento do sistema público
Questionada sobre a avaliação da gestão da saúde no governo de Jair Bolsonaro, a médica e pesquisadora Ligia Bahia usa a linguagem metafórica para dar forma à dimensão do problema: “algo como um terremoto seguido por um tsunami”. Para ela, “inicialmente trataram de desmoronar a institucionalidade do Sistema Único de Saúde – SUS e alagaram com o negacionismo a terra arrasada”. Seu colega, o também médico e pesquisador Rômulo Paes de Sousa, recorda que o desmonte vem de muitos anos, especialmente via estrangulamento do financiamento. “Mas o governo Bolsonaro vem e agrava todas essas grandes questões. A forma do agravamento se dá, primeiro, do ponto de vista do financiamento. Consiste não apenas numa redução muito grande dos recursos necessários, mas numa redução de recursos que compromete o funcionamento do próprio sistema”, completa.
Na entrevista, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Ligia também observa que entre os problemas centrais está a gestão da pasta da saúde como um todo. “Em termos mais objetivos, nomearam pessoas sem nenhuma condição técnica que atuaram de modo completamente equivocado”, pontua. Rômulo, entre tantos problemas que enumera na entrevista concedida ao IHU via chamada de vídeo, também aponta essa falha na gestão ou, como prefere, “incompetência” na gestão. “Vimos um governo onde há uma baixa qualificação das suas lideranças no topo do sistema de saúde e do próprio Ministério da Saúde. Na verdade, muitas das decisões que foram tomadas envolvem o baixo conhecimento que os líderes do Ministério da Saúde têm do ponto de vista do que seja a gestão de um sistema de saúde”, analisa.
Ambos os especialistas usam a experiência da pandemia como reveladora de todos esses problemas que enumeram. É como se todas as questões de fundo que sustentam a desastrosa gestão Bolsonaro na saúde fossem escarnadas no processo da pandemia. Mas os dois também indicam que o momento é de reconstrução e que o governo eleito já emite bons sinais nesse sentido. “A saúde não pode ser moeda de troca”, aponta Ligia, ao detalhar que a gestão central é o tema central que deve nortear todas as ações de reconstrução e fortalecimento do sistema.
Rômulo vai nesse sentido também e, mesmo ainda sem o anúncio de um novo Ministério da Saúde [ele concedeu entrevista na manhã de terça-feira, 13-12-2022, quando ainda não havia sido feito qualquer anúncio], vê que o caminho sinalizado parece ser o melhor. “A impressão que me dá é de que há uma decisão muito importante que o presidente Lula parece estar fazendo na área da saúde, que é retirar a saúde do balcão da governabilidade”, observa. Ele indica que essa nova equipe deve ser a representação de “esforço acadêmico, técnico, racional de enfrentamento” da atual conjuntura. “E há a sugestão para que seja uma mulher a ocupar esse lugar [de ministra da Saúde]. Afinal, há também a compreensão de que a mulher, hoje, é majoritária entre os profissionais de saúde e na academia”, completa.
Ligia Bahia (Foto: Elpídio Jr.)
Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).
IHU – Que diagnóstico faz da gestão de Jair Bolsonaro na área da saúde?
Ligia Bahia – Algo como um terremoto seguido por um tsunami. Inicialmente trataram de desmoronar a institucionalidade do Sistema Único de Saúde – SUS e alagaram com o negacionismo a terra arrasada. Em termos mais objetivos, nomearam pessoas sem nenhuma condição técnica que atuaram de modo completamente equivocado. Basta lembrar o ex-ministro [Eduardo] Pazuello na cena da transferência por avião de pacientes graves com covid-19. O diagnóstico é: estivemos submetidos a um governo responsável por mortes evitáveis.
IHU – Além dos erros de gestão ao longo da pandemia, que outras áreas revelam o descaso e a falta de planejamento do governo na área da saúde?
Ligia Bahia – Áreas como saúde mental, política para AIDS e mesmo para gestantes foram contaminadas pela perversa contaminação de preconceitos e discriminações nas políticas de saúde.
IHU – Quais os caminhos possíveis para rever esses déficits na saúde pública do Brasil?
Ligia Bahia – Para efetivar políticas de saúde adequadas às necessidades das populações, será necessário fortalecer a capacidade de resposta das instituições, a começar pelo Ministério da Saúde e intensificar a participação social, seja com os políticos para construir um patamar de diálogo republicano e a saúde não pode ser moeda de troca, seja com entidades da sociedade civil para reunir agendas particulares em torno de um projeto de garantia progressiva do direito à saúde.
IHU – Pelas informações e movimentações da área na equipe de transição, por que caminhos o novo governo Lula parece estar seguindo? Como avalia esse caminho?
Ligia Bahia – A equipe de transição está realizando um trabalho relevante e qualificado. É um bálsamo ouvir, ler e contribuir para uma construção coletiva comprometida com a melhoria da saúde da população.
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Rômulo Paes de Sousa (Foto: Fiocruz)
Rômulo Paes de Sousa é epidemiologista e especialista em avaliação de políticas públicas. Médico, especialista em medicina social pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, é PhD em epidemiologia pela London School of Hygiene and Tropical Medicine (Universidade de Londres). É especialista em política, planejamento e gestão em saúde do Centro de Pesquisa René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz Minas Gerais – Fiocruz Minas. É autor ou organizador de seis livros de epidemiologia, monitoramento e avaliação de políticas públicas, e de vários artigos em revistas científicas. Recentemente, coordenou a elaboração do Dossiê Abrasco Pandemia de Covid-19.
IHU – Que diagnóstico faz da gestão de Jair Bolsonaro na área da saúde?
Rômulo Paes de Sousa – O Brasil prévio ao governo Bolsonaro já enfrentava dificuldades importantes na área da saúde. Dificuldades como o financiamento da saúde, estagnação e, depois, de subfinanciamento muito nítidos. Entretanto, esse contexto e outros vão se agravar ao longo do governo Bolsonaro.
Uma segunda questão é que a constituição de nosso Sistema Único de Saúde – SUS apresentava déficits crônicos também em relação a outros temas que são mais próprios da gestão, mais próprios da tensão entre um modelo público e um modelo privado e, também, de uma forte desigualdade na competência agregada em vários municípios. Isso é uma combinação de fatores onde nós temos uma desigualdade socioeconômica muito grande e que envolve uma parcela muito grande da população brasileira, o que as coloca em uma condição de maior fragilização frente aos riscos diversos da saúde. Ao mesmo tempo, são populações que têm mais dificuldades de acessar os serviços de saúde de qualidade.
Então, já tínhamos várias dificuldades assim colocadas. Mas o governo Bolsonaro vem e agrava todas essas grandes questões. A forma do agravamento se dá, primeiro, do ponto de vista do financiamento, pois há uma agudização desse processo e muitos autores passam a chamar isto de desfinanciamento. Consiste não apenas em uma redução muito grande dos recursos necessários, mas em uma redução de recursos que compromete o funcionamento do próprio sistema. Assim, passa a interferir no volume, na intensidade e na qualidade das respostas dos próprio sistema.
Isso ocorre também porque parte do mecanismo de governança do governo Bolsonaro se deu a partir da compra aberta do Congresso Nacional. E esse modelo, fundado nas emendas impositivas e, depois, nas emendas sob o controle do relator e as chamadas emendas secretas, implica um deslocamento dos recursos do Executivo para o Legislativo. E a alocação desses recursos, feita pelo legislativo, acontece a partir de interesses muito particulares dos parlamentares, com baixo controle, com baixa qualidade do gasto e com privilégios de áreas cujas necessidades não são consistentes com os mecanismos mais universais de distribuições de recursos. Eles privilegiam as áreas de maior concentração de votos.
A política de austeridade, com níveis muito altos de contenção já definidos previamente ainda no governo de [Michel] Temer, chega, no governo Bolsonaro, provocando muitos danos no funcionamento do sistema de saúde. Esses danos se dão, primeiramente, porque há uma redução nos recursos para investimento, ainda com uma supressão de investimentos. Uma segunda questão é que isso vai implicar no funcionamento do próprio sistema com a redução de equipes de saúde, redução de turnos de atendimentos, um sucateamento da máquina e dos equipamentos necessários para o sistema.
Uma outra questão tem a ver com a governança. O governo desarticula um sistema muito bem-sucedido que tínhamos – e que estamos retomando agora, certamente será retomada no próximo governo – de governança do SUS, que envolve uma participação social intensa e isso foi desarticulado com uma articulação nos três níveis de governo, que passa a ocorrer de uma forma conflituosa. A pandemia foi um exemplo claro.
O governo federal acaba confuso, oscilando no tipo de recomendações sobre o que deveria ser feito e acaba transferindo as responsabilidades para os governos estaduais, que, muitas vezes, entravam em conflito com os governos municipais. Se já tínhamos uma dificuldade nessa governança em função de modelo federativo que possuímos, o governo Bolsonaro torna essa governança muito mais complicada, ou porque desarticula instâncias ou porque se apresenta de forma belicosa mesmo com os outros níveis de governo.
Há uma terceira questão importante, e a palavra exata é incompetência. Vimos um governo onde há uma baixa qualificação das suas lideranças no topo do sistema de saúde e do próprio Ministério da Saúde. Na verdade, muitas das decisões que foram tomadas envolvem o baixo conhecimento que os líderes do Ministério da Saúde têm do ponto de vista do que seja a gestão de um sistema de saúde.
E é baixo conhecimento mesmo. Vemos muitas decisões tomadas em função de um caráter muito intuitivo e de baixa qualidade técnica, além de decisões desastrosas. No caso da pandemia, as escolhas como a aposta no chamado kit covid é uma demonstração muito clara do baixo conhecimento do que são as alternativas terapêuticas disponíveis. O processo de escolha dessas alternativas terapêuticas traz, certamente, muitos interesses escusos, pois, obviamente, muita gente vai ganhar dinheiro com esse tipo de coisa.
É apenas um exemplo, mas poderia citar vários que implicam na baixa qualificação dessa equipe. E aí não é baixa qualificação de alguns indivíduos, é uma baixa qualificação de uma certa força política que se apresenta para governar o país. Isso ocorre por várias razões. Primeiro, porque essa coalização política que chega ao poder tem baixa inserção partidária e baixa capacidade de aglutinação de setores decisivos. Por exemplo, o funcionamento da vida nacional, a baixa presença na academia, na cultura e em outras áreas. E aí, portanto, os recursos humanos disponíveis ou devidamente articulados pelo poder para assumir as funções gerenciais no governo são pouco qualificados para uma diversidade de funções.
Simplesmente, são pessoas que não conhecem do assunto e que chegam, se apresentam de uma forma pouco humilde, porque poderiam vir e aprender, mas se apresentam já como conhecedores de soluções baseados em pura intuição e uma intuição de senso comum, de baixa complexidade. Não há nada mais perigoso do que um gestor que quer resolver problemas complexos de uma forma muito simples, com desconhecimento de causa. Eles são capazes de grandes estragos. E fizeram isso, pois nosso desempenho na pandemia é muito ilustrativo porque o Brasil, com um sistema de saúde potente, capilarizado e com muito conhecimento acumulado sob vários temas, como vacinação, atenção primária, combate a doenças infecciosas com uma vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, com todos esses elementos, teve uma das piores performances no combate à pandemia. No geral, os países combateram muito mal a pandemia, sobretudo no primeiro ano. Os meses de 2020 formaram uma coleção de fracassos em muitos países, mas o Brasil teve uma das piores performances dentro desse contexto muito negativo.
Uma outra questão que me parece importante é a politização da agenda da saúde, porque parte dos problemas da gestão é esta politização. Aqui o conceito de politização não é a compreensão dos problemas da sociedade e uma forma de resolvê-los, como aparecem nas conceituações de Aristóteles e Platão. Não. Aqui estamos falando de outra coisa, falamos do uso do aparelho de estado para a reprodução das máquinas partidárias ou de máquinas políticas com interesse eleitoral.
Esse tipo de politização é uma condição em que se substitui a competência técnica ou se faz uma escolha em detrimento da competência técnica em favor da reprodução dessa força política com qualquer custo social que ela possa empregar. A máquina pública acaba impregnada pelas escolhas dos indivíduos para gestão, do processo decisório, do posicionamento muito influenciado pelo debate político em uma certa contraposição, muitas vezes até infantilizada, onde, de um lado, se diz uma coisa e, de outro, se opta por algo diferente.
Só que esse outro lado é o esforço racional de enfrentamento de problemas, pois esse outro lado são os cientistas, as agências multilaterais internacionais, os gestores da saúde em vários níveis. É todo esse esforço civilizatório que se tem para enfrentar os problemas que a vida coloca para nossa espécie com aquilo que conseguimos construir até hoje. É o que chamo de polarização dos insensatos porque é como se houvesse equivalência quando não há nenhuma equivalência.
IHU – Além dos erros de gestão ao longo da pandemia, que outras áreas revelam o descaso e a falta de planejamento do governo na área da saúde?
Rômulo Paes de Sousa – Sempre retorno para a pandemia porque é uma experiência sempre muito rica em termos de fatores variados que se apresentam na saúde. Quando olhamos a pandemia, pela importância sanitária e repercussão socioeconômica e política que ela nos dá, vemos que somos testados num grau de estresse muito alto. E isso tanto o sistema e as corporações como o cidadão, no seu domicílio, no seu trabalho, no seu espaço de lazer, onde todas essas coisas sofrem alterações profundas.
E pelo grau de complexidade que envolve esse conjunto de questões, é de se esperar, portanto, que os dirigentes e aqueles responsáveis pelo sistema de saúde estejam à altura de apresentar soluções para isso. Mas o governo atrasou nas decisões de compras das vacinas, e houve espertos que tentaram vender vacinas auferindo lucros para cada dose, a escolha da ação terapêutica, que curiosamente até hoje vai encontrar médicos prescrevendo Ivermectina para tratar covid. É a força desse tipo de informação que revela como isso é contagiante, como esse nível de irracionalidade toma conta dos tecidos sociais onde as pessoas, mesmo com uma formação clínica, acabam desprezando o conhecimento acumulado em função desse sentimento generalizado. Ouvi muitos profissionais de saúde dizerem: “Ah, mas isso não faz mal.” Mas, veja bem, nossa função é fazer bem. Então, não adianta prescrever alguma coisa que seja inútil, porque, entre outros problemas ligados a isso, é gerada uma confiança que não se sustenta, numa certa ousadia de se expor ao risco.
No fundo, a questão é sempre esta: uma certa polarização entre quais são os sacrifícios necessários para o combate à doença e seu custo na sociedade. Cheguei a escrever um artigo publicado no The Lancet, onde alguns médicos brasileiros afirmaram: se continuássemos fazendo essas restrições de mobilidade, haveria um impacto muito grande na economia, as pessoas morreriam de fome. Assim, teríamos um choque econômico e mais mortes do que a pandemia em si. Isso é uma bobagem sem tamanho e esse debate foi parar na revista The Lancet com médicos brasileiros dizendo isso. Só que, rapidamente, a pandemia se encarregou de mostrar que era uma tolice.
Outras questões importantes de relacionar é o desabastecimento de insumos necessários para enfrentar a pandemia. Veja o caso dos respiradores. O governo fez uma confusão nessa questão, inclusive em alguns momentos alegava que não era sua responsabilidade, que era responsabilidade dos governos estaduais e municipais. Isso é uma falácia porque naquele momento o mundo inteiro estava em busca desse tipo de insumo. Então, se existe uma tensão no mercado internacional, quem tem maior poder de compra tem maior possibilidade de resolução do problema. E é justamente o governo federal que tem tudo isso. Se temos um sistema único, fazer uma compra centralizada é muito mais inteligente do que deixar os estados, sobretudo o estado do Amazonas, que é uma das economias com baixíssima arrecadação, fazerem a compra no mercado internacional de um insumo que está escasso e incrivelmente disputado.
Essa é uma atitude de desresponsabilização do governo federal e que é inaceitável. É a falta de uma compreensão sistêmica de que a nossa força está justamente na capacidade de articularmos um sistema único. Se abrimos mão dessa nossa força, estamos nos expondo a um risco enorme.
Outras escolhas que também foram feitas e que foram incorretas – é difícil dizer qual a mais grave, mas esta, inicialmente, foi a mais grave – diz respeito à atenção primária. A atenção primária, que é um dos grandes patrimônios do Sistema Único de Saúde, só vai ser oficialmente convocada para enfrentar a pandemia no final de julho de 2020. E a estratégia toda é centrada, num primeiro momento, numa abordagem hospitalar. Aí temos um conjunto de equívocos.
Primeiro que a condição de uma abordagem hospitalar é quando estamos num momento mais dramático da doença, quando o paciente chegou ao nível de gravidade onde precisa de uma internação. Entretanto, para chegar lá, é preciso que coloquemos uma espécie de barreiras no sentido de que essa infecção não se propague, que as pessoas com sintomas mais leves sejam devidamente atendidas em locais apropriados, inclusive o próprio domicílio devidamente orientado e que a possibilidade de uma abordagem hospitalar se dê num momento adequado.
Quando não nos preparamos previamente para evitar que haja um agravamento da doença a esse ponto, estamos manejando a pandemia de uma forma completamente errada. E pior: parte dessa atenção hospitalar vai ser sobrecarregada e teremos os pacientes expostos ao risco, inclusive de se infectarem porque não exatamente são portadores da doença. É preciso gerenciar a separação de filas e ambientes para evitar esse tipo de situação.
Em segundo lugar, é preciso manter o atendimento de outras doenças, pois as pessoas não deixam de adoecer por outras causas. E, em terceiro lugar, é preciso um bom manejo das formas mais graves da doença. E isso leva tempo, porque é preciso aprender rapidamente. Porém, numa doença que se propaga tão rapidamente e onde há muitas variantes, que vão driblando nossas estratégias de imunização, iremos perder muitas vidas até chegar lá.
Por isso considero como grave esse primeiro erro, de demorar na utilização da atenção primária. E o mais curioso é que nós já tínhamos visto alguns países que têm menos recursos que o Brasil para fazer investimento em saúde, como o Vietnã, a Tailândia e a Costa Rica, saírem muito bem no manejo da pandemia, utilizando a atenção primária.
O que é surpreendente é que o governo despreza aquilo que o planeta está rapidamente acumulando, pois se tivemos tantos problemas com a pandemia, também acumulamos conhecimentos com ela. Publicou-se muito e num esforço intensivo de que esse conhecimento pudesse ser disseminado rapidamente. O que é surpreendente e chocante é uma atitude de ignorância deliberada, como se dissesse: eu não quero ler, não quero ver, não quero saber, não quero dialogar, não quero participar desse esforço global de enfrentamento desta pandemia. E vai assim o tempo todo, operando dentro de suas próprias convicções, ainda que o mundo inteiro diga que está errado.
IHU – Quais os caminhos possíveis para rever esses déficits na saúde pública brasileira?
Rômulo Paes de Sousa – Será necessário fazer três movimentos. Um primeiro é de restituição. Existe, portanto, um aspecto reparador e reorganizador do SUS que precisa ser o centro das atenções do próximo governo. Ele consiste em restituir os pontos de resiliência do sistema, porque, apesar desse esforço de desconstrução, o SUS mostrou força.
Um dos aspectos interessantes é a própria Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, instituição à qual estou vinculado e que apresentou uma contribuição decisiva para o enfrentamento da pandemia, com a produção de vacinas e a vigilância epidemiológica que fez, também, articulação com iniciativas sociais importantes. Governança é um aspecto fundamental; é possível restituir rapidamente nossa capacidade negocial de produzir, dentro do SUS, o entendimento sobre vários temas. Esse é um aspecto fundamental.
Dentro dessa restituição, há a questão da recuperação orçamentária. Isso também é um ponto fundamental para que o sistema funcione em melhor qualidade.
Uma segunda questão, que envolve os aspectos desses déficits crônicos, é a inovação. Vamos precisar fazer coisas novas, porque os sistemas, quando vão se consolidando, apresentam muitas dificuldades de inovação. E, por razões diversas, há uma certa acomodação de interesses, aspectos corporativos, questões diversas do próprio modelo híbrido de atenção à saúde que temos no Brasil, que joga entre público e privado.
Aliás, o setor privado tem crescido o investimento em saúde enquanto o setor público tem decrescido. Hoje, temos entre 1/4 e 1/3 da população brasileira atendidos pelo setor privado, mas mais da metade do investimento em saúde está no setor privado. Esse tipo de desequilíbrio é muito perverso. Em termos de investimento que o setor privado faz para seus usuários, ele equivale ao que os países ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento – OCDE fazem. Enquanto isso, o investimento que o setor público faz para seus usuários é quase 1/6.
Na questão da inovação, a pandemia trouxe também ensinamentos importantes. Por exemplo, o uso da telessaúde. É algo que tínhamos muita dificuldade de precificar, de regular, envolvendo questões éticas e que na pandemia, pelas necessidades, apresentou muitas possibilidades. Existe uma experiência interessante ocorrida na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, onde, em parceria com a Fiocruz, o próprio movimento social criou unidades de telemedicina para o atendimento de 36 especialidades. É a Rede Maré. Tudo com equipamento adequado, condições de atenção também adequados com uma oferta de serviços muito bem-organizada. Existem possibilidades para reduzir aspectos no nosso déficit de atendimento em várias áreas. Na nova estrutura do Ministério da Saúde, haverá uma secretaria especializada nessas inovações.
Há também inovações na forma de organizar a atenção. Eu destaco, por exemplo, essa própria lógica de filas paralelas, separando os suspeitos de covid dos portadores e suspeitos de outras doenças. É muito interessante essa lógica de reorganizar o espaço dentro das unidades de saúde.
Uma questão que também é importante e que não foi realizada na pandemia, mas a pandemia nos cobrou isso, é a integração, as abordagens integradas para a atenção da população mais pobre. Trata-se da necessidade de combinarmos políticas de proteção social com a política de saúde, e aí entendo a proteção social especificamente como assistência social e, também, a educação.
Essas abordagens integradas agora precisam ser somadas, por exemplo, aos temas do meio ambiente, porque a questão ambiental não é uma questão distante dos problemas sociais. Pelo contrário, eles estão embricados. Por isso precisamos ter abordagens integralizadas para o atendimento dessa população vulnerabilizada. São aspectos inovadores, tanto no sentido da tecnologia quanto do tipo de articulação de várias políticas que devem ser ofertadas.
Uma outra coisa muito importante que a pandemia também nos mostrou, e que está no topo da agenda de todos os seus legados nos países da OCDE, é a questão da formação dos recursos humanos. Nós precisamos investir para aumentar a qualificação dos profissionais que fazem o atendimento na ponta, todos os profissionais que fazem o atendimento na ponta, para eles aprenderem a forma de abordar os pacientes na flexibilidade que é necessária com a gravidade do momento.
No Brasil, temos um problema adicional, que é na desarticulação do Mais Médicos. O governo federal não produziu uma alterativa para o programa. Desse modo, temos grandes vazios de atenção à saúde em vários locais, mas sobretudo temos um vazio de atenção de profissionais médicos e isso também a pandemia no cobrou de uma forma cara.
Um dos problemas da atenção em vários estados brasileiros, como aconteceu no estado do Amazonas, é que nós já tínhamos um déficit grande de profissionais treinados para fazer a atenção nas UTIs. Então, quando vem uma demanda muito forte para atendimento em saúde na forma intensiva, não tínhamos como realizar esse trabalho e aí o sistema entra em colapso. Entrou em colapso o sistema, as improvisações que foram feitas para leitos de atenção em maior gravidade e todo sistema hospitalar acabou entrando em colapso. Isso aconteceu em Manaus, no Rio de Janeiro, em Fortaleza, Belém e em vários lugares, porque são justamente esses centros para onde afluem pacientes do estado inteiro e, às vezes, até de outros estados.
Vamos precisar fazer um investimento muito grande para melhorar o atendimento na ponta a partir da qualificação desses profissionais, provendo condições para que realizem esse atendimento. Várias pesquisas foram feitas durante a pandemia e uma reclamação constante dos profissionais de saúde era que eles não tinham informações, não conheciam os protocolos de atendimento, não tinham equipamentos de proteção individual para os atendimentos. Eram pessoas assombradas pelo medo de fazerem um atendimento de má qualidade e de virarem pacientes. E se tornaram. Não temos um registro muito preciso de quantos profissionais da saúde morreram, mas foram muitos e sobretudo mulheres negras que faziam o atendimento na enfermagem e na cadeia de serviços que a enfermagem engloba.