Colapso da saúde em Manaus revela crises sistêmicas e históricas no coração do Amazonas. Entrevista especial com Wilton Abrahim

Jovem professor traz seu relato de décadas de desassistência, falta de políticas públicas e um clientelismo político que só favorece uma elite local que, na pandemia, se revelou ainda mais desumana

Na UPA José Rodrigues, zona Norte de Manaus, a dor da mulher que não consegue atendimento adequado ao familiar e consolo de profissionais da saúde é a imagem da crise no Amazonas que tem raízes muito mais profundas | Foto: Márcio James/Amazônia Real

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 19 Fevereiro 2021

A Amazônia é tida por muitos como o pulmão do mundo, está sempre nos noticiários nacionais e internacionais – especialmente nesses tempos de desmonte das políticas ambientais –, mas pouco se sabe sobre as pessoas que vivem no estado do Amazonas, especialmente na cidade de Manaus. É o que revela o relato do jovem professor Wilton Abrahim. Incrustada no meio da floresta, a cidade concentra desigualdades e muita pobreza, num cenário ainda agravado pela distância geográfica de outros centros e pela dificuldade de acesso. “A fome sempre esteve presente em nossas vidas. Na cidade de Manaus, antes mesmo da pandemia víamos homens, mulheres e crianças nos ônibus, nas esquinas, nas paradas de transportes coletivos, em uma situação muito degradante, sempre pedindo comida ou algum trocado”, conta Wilton em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

 

Numa terra em que o poder político é contaminado, apenas uma elite que se associa a esse poder consegue sucesso. Foi assim no histórico ciclo da borracha e segue assim até hoje. “A desigualdade social na vida das pessoas na cidade de Manaus é o reflexo da ausência e desinteresse de investimento mais adequado por parte dos agentes governamentais; ao invés disso o que se nota são inúmeros recursos desviados com finalidades privilegiadas para uma classe que se autoafirma elite”, acrescenta o jovem. Com a chegada da pandemia, o descaso de autoridades federais e o despreparo de chefes dos poderes locais, a população sente na pele as dores de uma tragédia anunciada. “A própria crise de domínio político-partidário no âmbito governamental fez com que não houvesse uma gestão humana para lidar com a pandemia, porque não basta criar decretos, é preciso criar decretos com condições mínimas e dignas para todos, especificamente para a classe mais pobre”, reitera.

 

Wilton revela que o maniqueísmo da imprensa nacional vendendo a ideia de que o prefeito de Manaus e o governador do Amazonas pediam socorro e denunciavam descaso do governo federal é apenas uma verdade parcial. “Manaus historicamente tem sido e vem sendo governado por um mesmo grupo político há muitos anos. Então, quando a pandemia chegou é claro que não tínhamos estrutura nenhuma nos hospitais para isso. Se antes da pandemia a situação da saúde sempre esteve em crise, imagine no ápice da pandemia”, constata. E ainda dispara: “há pessoas que estão há 40 anos como deputados, sempre com as mesmas promessas. A própria sociedade precisa rever tudo isso; creio que mudanças são necessárias, principalmente no âmbito da escolha da classe política governamental”.

 

No entanto, o jovem professor não desanima, mesmo tendo perdido a avó e muitos amigos para a Covid-19. Para ele, é preciso unir as forças e lutar de forma coletiva para mudar essa realidade. “Com a participação coletiva de diversos grupos com representações sociais é possível fazer uma frente única de combate à pandemia pela justa distribuição das vacinas”, exemplifica. Ele também defende mobilizações por políticas públicas que assegurem renda aos mais pobres. “Além disso, é imprescindível o aumento de leitos nos hospitais, assim como no acompanhamento e maior valorização dos profissionais da saúde, com melhores remunerações, e especificamente no investimento da ciência”, conclui.

 

Wilton Abrahim (Foto: Arquivo pessoal)

Wilton Abrahim é morador do bairro São Francisco, em Manaus, e nascido e criado na capital amazonense. Tem 24 anos de idade, gosta sempre de destacar que foi aluno de escola pública, e cursou História pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Ao longo dos estudos universitários, sempre esteve envolvido com a militância em pautas sociais. Seu trabalho de conclusão do curso de História, intitulado “Teologia da libertação, pontos e contrapontos”, dedica dois capítulos à história do movimento progressista e a reação dos conservadores na Igreja católica na América Latina. Ainda sem ter conseguido trabalho como professor, o jovem vive com a mãe. “Acredito que a força coletiva deve desempenhar um grande papel nas mudanças que virão. E estamos juntos”, resume, depois de falar sobre a sua vida neste momento de pandemia.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como você tem testemunhado a situação dramática que Manaus vem vivendo há quase um ano? Quais foram suas experiências pessoais mais marcantes?

Wilton Abrahim – Vivemos e ainda estamos vivendo um período crítico, anormal e, portanto, preocupante. Ficamos aterrorizados, pois se trata de uma doença pandêmica que ocasionou uma crise não somente econômica, mas principalmente uma crise sanitária que desequilibrou a vida cultural, religiosa, educacional e social das pessoas, isso não só aqui em Manaus. Fato é que Manaus viveu seu ápice de crise na saúde, com aumento de infecções da Covid-19 em janeiro de 2021 e essa crise ainda continua.

 

Mapa de Manaus (Foto: Wikipedia)

 

Vários fatores, infelizmente, contribuíram também para isso. Entre eles as aglomerações nas ruas, festas clandestinas em ambientes abertos ou fechados, insistência dos empresários em manter o funcionamento de seus comércios. Em geral, houve uma desobediência ou falta de consciência em relação às normas e prevenções decretadas pela Organização Mundial da Saúde - OMS, como o uso de máscaras, uso de álcool em gel, limpeza das mãos com água e sabão e o distanciamento social.

 

 

Além disso, a própria crise de domínio político-partidário no âmbito governamental fez com que não houvesse uma gestão humana para lidar com a pandemia, porque não basta criar decretos, é preciso criar decretos com condições mínimas e dignas para todos, especificamente para a classe mais pobre. No meu caso, quatro membros da minha família foram infectados pelo coronavírus, o mais duro foi a perda da minha avó, assim como também perdi professores e amigos.

 

 

IHU On-Line – Aparentemente, passado o caos da falta de oxigênio nos hospitais, quais são as maiores dificuldades que a população manauara enfrenta atualmente?

Wilton Abrahim – Entendo que o funcionamento de uma cidade, um estado, um país depende muito de quem está governando e Manaus historicamente tem sido e vem sendo governado por um mesmo grupo político há muitos anos. Então, quando a pandemia do novo coronavírus chegou é claro que não tínhamos estrutura nenhuma nos hospitais para isso. Se antes da pandemia a situação da saúde sempre esteve em crise, imagine no ápice da pandemia. Aqui em Manaus, por exemplo, temos muitas desigualdades sociais. Por isso mesmo que a atual situação da cidade, em meio ao ápice da crise da Covid-19, se deve à ausência de um plano de gestão devido para a área da saúde que vem de muito longe, porque se houvesse isso não teríamos tido tantas perdas. Isso porque muitas pessoas vieram a óbito na fila de espera, nos corredores dos hospitais ou preferiram tentar algum tipo de tratamento em casa, já que havia muitas burocracias e obstáculos para acesso aos tratamentos nos hospitais.

 

 

Segundo tenho visto nos meios de comunicação, jornais, revistas e artigos científicos, já havia previsão de um colapso de internações na cidade, inclusive com previsão de segunda onda da doença com alto índice de internações nos hospitais. Além da crise de disputa política que ignorou os alertas, a população em geral também não levou a sério, muitos motivados pelas ideias negacionistas de que se trata apenas de uma “gripezinha”. No entanto, o que se percebeu foi que o sistema de saúde não conseguiu suprir a alta demanda no atendimento.

 

 

Agora estamos no período de lockdown, de certo modo houve atendimento por parte da população, com poucas pessoas nas ruas, mas há muitas pessoas lutando contra o vírus nos hospitais. A vida aqui na nossa cidade não está normalizada, mas há esperança com a chegada da vacina, mesmo que em lentidão. A falta de oxigênio em Manaus ainda permanece, muitas pessoas estão fazendo o tratamento em casa. Segundo a reportagem do site Pública, o “aumento do número de novos casos da Covid-19 fez com que a demanda por oxigênio chegasse a 76 mil m3 diários no Amazonas”, sem contar com os desvios de cilindros de oxigênio. Tornou-se difícil a aquisição de cilindro até para quem tem condições financeiras.

 

À noite, Manaus tem tido ruas desertas. Mas, nas casas, muitas famílias ainda lutam contra a doença e para manter distante o fantasma da fome (Foto: Márcio James/Amazônia Real)

 

IHU On-Line – De que forma a fome tem sido um problema que voltou a causar preocupação à população desassistida de Manaus e do Amazonas?

Wilton Abrahim – A fome sempre esteve presente em nossas vidas. Na cidade de Manaus, antes mesmo da pandemia víamos homens, mulheres e crianças nos ônibus, nas esquinas, nas paradas de transportes coletivos, em uma situação muito degradante, sempre pedindo comida ou algum trocado. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, realizada entre junho de 2017 e julho de 2018 e amplamente divulgada na imprensa, houve piora na alimentação das famílias brasileiras. Entraram na conta somente os moradores em domicílios permanentes, ou seja, estão excluídos do levantamento as pessoas em situação de rua, o que poderia aumentar ainda mais o rastro da fome pelo país.

Agora, com a grande maioria da população em isolamento dentro de casa é muito comum vermos com frequência adultos revirando as lixeiras das casas e condomínios por aqui. Houve também aumento de desemprego e com isso a qualidade de vida das pessoas começa a entrar em situação crítica. Além disso, a própria situação psicológica das pessoas está em situação crítica. Todos, de uma forma ou de outra, estão procurando recomeçar em tudo.

 

 

IHU On-Line – Há muitas pessoas trabalhando nas ruas? Destas pessoas, há muitas em trabalho informal?

Wilton Abrahim – Existe sim, muito trabalho informal em Manaus, como vendedores de picolé, lanches, verdureiros, camelôs, pipoqueiros etc. Com lockdown na cidade, com mais rigidez para tentar diminuir as infecções, evitando uma alta de internações nos hospitais, muitos destes trabalhadores perderam suas rendas diárias. Portais de notícias locais noticiam que, em Manaus, 58% dos trabalhadores estão na informalidade. Assim, vemos um cenário em que trabalhadores informais e formais vivem um drama da incerteza da continuidade do sustento das suas famílias – a diferença é que o informal está em uma situação complicada e inferior a de um trabalhador com carteira assinada. Por isso, ambos esperam ajuda do governo enquanto a pandemia permanecer.

 

 

IHU On-Line – Como a desigualdade se expressa na atual situação de Manaus? Por que o distanciamento social na região acaba sendo um privilégio de poucos?

Wilton Abrahim – Em uma grande metrópole como Manaus, há áreas nobres e as comunidades mais necessitadas, sempre há essa divisão dos que têm muito e dos que têm pouco ou quase nada. Quem tem uma boa casa, com todos os mantimentos essenciais para uma quarentena, vive na tranquilidade e aconchegado no lar. Uma reportagem da BBC Brasil publicada recentemente dá ideia dessa dura realidade que presenciamos todos os dias, principalmente nas comunidades mais carentes e distantes do centro comercial de Manaus: quase 10% dos domicílios não têm água encanada. São pessoas que vivem em becos, vielas, quitinetes etc. Geralmente, moram em um ambiente pequeno para uma família grande com muitas crianças. É como diz a reportagem: “essa parcela menos favorecida da população não teve opção além de seguir a vida como era possível, apesar da pandemia”.

 

 

Por outro lado, pessoas com alto padrão de vida têm como se manter em uma quarentena, sem desequilíbrio financeiro, assim como a vida das pessoas empregadas tem suas pequenas vantagens em relação a quem está desempregado. A questão é que a desigualdade social na vida das pessoas na cidade de Manaus é o reflexo da ausência e desinteresse de investimento mais adequado por parte dos agentes governamentais; ao invés disso o que se nota são inúmeros recursos desviados com finalidades privilegiadas para uma classe que se autoafirma elite.

 

 

IHU On-Line – Como o fim do Auxílio Emergencial torna a situação ainda mais dramática na realidade de vocês? Que alternativas o poder público local tem construído?

Wilton Abrahim – Desde o final do ano de 2020, com o anúncio de que o Auxílio Emergencial do governo federal não seria prorrogado para este ano de 2021, surgiram muitas dúvidas e até mesmo pressões para que o comércio volte a funcionar normalmente. Assim, muitos trabalhadores voltariam para os seus empregos. Mas a pandemia não acabou, pelo contrário, veio a segunda onda do contágio mais rápido e forte.

 

Com muitos locais de comércio popular fechados para sanitização e medidas de isolamento físico, trabalhadores perdem sua renda enquanto comerciantes amargam despesas (Foto: Marinho Ramos/Fotos Públicas)

 

Atualmente, a prefeitura está lançando o Auxílio Manauara, que visa beneficiar 40 mil famílias de baixa renda, no valor de R$ 200 por 12 meses. O prefeito David Almeida em seu discurso disse que a prefeitura “vai fazer o maior programa de transferência de renda desse município. Serão R$ 96 milhões por ano, distribuídos para 40 mil famílias”. Entretanto, este auxílio não abrange todos, principalmente os moradores de rua e jovens aprendizes fora do mercado de trabalho. Mas creio também que isso vai ajudar muitas pessoas que precisam.

 

IHU On-Line – Como fazer convergir pautas e políticas públicas que possam enfrentar a crise e a situação de vulnerabilidade social que o Estado do Amazonas vem sofrendo?

Wilton Abrahim – Particularmente, eu acredito que com a participação coletiva de diversos grupos com representações sociais é possível fazer uma frente única de combate à pandemia pela justa distribuição das vacinas. Havendo pressões sobre os governantes e autoridades públicas, por uma vacinação em massa, assim como seria necessário aumentar o valor do Auxílio Emergencial, organizar ou providenciar um abrigo adequado para os sem-teto, ampliar a arrecadação para distribuição de cestas básicas, bem como pensar na ajuda psicológica para os isolados por causa da quarentena, creio que teremos outra realidade.

 

 

Além disso, é imprescindível o aumento de leitos nos hospitais, assim como no acompanhamento e maior valorização dos profissionais da saúde, com melhores remunerações, e especificamente no investimento da ciência. Isso para termos a partir da pauta coletiva hospitais de maior segurança e possibilidades de tratamento dignas.

 

Diante do colapso na saúde, pacientes do Amazonas tiveram de ser transferidos para outros estados da federação (Foto: Ricardo Amanajas/Agência Pará)

 

IHU On-Line – Em que sentido os políticos da região usam o assistencialismo não para ajudar os vulnerabilizados, mas para autopromoção? Onde se vê isso?

Wilton Abrahim – Em Manaus, existe um grupo político que está há mais de 30 anos na política amazonense. A cada eleição se troca o candidato por um novo, mas por detrás está a velha política, antigos “caciques”. Com a pandemia qualquer auxílio para os pobres é considerado por muitos uma volta para as próximas eleições. Isso acaba influenciando vários setores e instituições, como escolas, ou seja, o domínio dos velhos grupos políticos em Manaus está presente em todos os setores governamentais, há aliados envolvidos em todos os setores públicos.

Com isso continuam mantendo suas influências e domínio para usufruírem de seus interesses políticos e domínios grupais. Como resultado temos o reflexo caótico na saúde, na educação, na infraestrutura etc. O que temos é o aumento de poder público e financeiro desses grupos políticos dominantes, há pessoas que estão há 40 anos como deputados, sempre com as mesmas promessas. A própria sociedade precisa rever tudo isso; creio que mudanças são necessárias, principalmente no âmbito da escolha da classe política governamental, do contrário a sociedade vai continuar sofrendo massacres governamentais disfarçados de democracia.

 

IHU On-Line – Por fim, poderia comentar um pouco de sua monografia da Licenciatura em História na UFAM? Quais os limites e possibilidades de se pensar a Teologia da Libertação no mundo atual?

Wilton Abrahim – O que fiz foi uma breve análise cronológica desde o Concílio Vaticano II até os teóricos do movimento progressivo na Igreja. Logo em seguida escrevi sobre o movimento conservador contrário aos teóricos da Teologia da Libertação. Ambos os grupos participaram do mesmo contexto político e social nas décadas de 1960 e 1970. Foram dois anos de muita leitura de livros, revistas e artigos acadêmicos de Filosofia e Sociologia para construir uma narrativa histórica referente à temática da minha pesquisa.

 

 

Como o tempo está sempre em transformação, é bom lembrar que uma coisa foi a primeira fase da Teologia da Libertação, com ideias radicais e extremistas, inclusive isso fez com que houvesse intervenções e sanções da própria Igreja Católica. E outra coisa é a necessidade contínua de repensar a evangelização frente aos novos/velhos desafios, como a defesa da Amazônia e dos povos tradicionais, por exemplo. Além disso, percebe-se cada vez mais a necessidade de diálogo inter-religioso, bem como diálogo religioso com religiosidades tradicionais, indígenas; mas sempre prezando os princípios éticos e morais de cada religiosidade, no diálogo interdependente.

 

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