19 Fevereiro 2021
"A população amazonense, em meio a acordos criminosos, se tornou refém da farra em experimentos de kit-precoce, sob as bênçãos de determinados pastores que louvam a morte enquanto contam as moedas do sacrifício", escreve Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Comunicação, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
"Cruzes carregadas por mulheres pobres, sem trabalho, sem renda, sem comida" – escreve. "A outra asfixia mantida por um dedo que aperta o pescoço dos pobres do Brasil e afrouxa a regra para banqueiros e vendedores internacionais de armas que projetam lucro elevado nos negócios bélicos internos".
Eis o artigo.
A cruz multiplicada em tons de azul é plantação contínua no território da dor de tantos. O ritmo acelerado desmontou a tradição do adeus aos mortos, asfixiou a fabricação do símbolo. Há superávit de mortes e déficit de cruzes prontas.

Foto: Michael Dantas
Onze meses. Dez mil vidas perdidas no Amazonas. O número pode ser mais elevado diante da real subnotificação das mortes por Covid-19 no Estado. E o que importa se dez mil ou mais de dez mil morreram?
Qual a atitude demarcadora do tamanho da vontade dos governos, da sociedade, dos líderes de instituições e dos coletivos para salvar vidas nas cidades do Amazonas? Não aparece. Não se fez perceptível.
A população amazonense, em meio a acordos criminosos, se tornou refém da farra em experimentos de kit-precoce, sob as bênçãos de determinados pastores que louvam a morte enquanto contam as moedas do sacrifício. O incentivo de autoridades e segmentos empresariais aplaudiu, como grande feito a aglomeração e ato de ignorar o distanciamento social, o uso da máscara.
A Covid-19 é para os fracos, proclamaram os líderes de governos e do parlamento enquanto promoviam encontros públicos entre abraços, beijos e profusão de selfies. O que vale não é a morte, é a popularidade do herói da hora.
Dez mil lágrimas. Dez mil gritos de dor. Dez mil tristezas. Dez mil saudades. Dez mil ausências. Não há normalidade nessas mortes. Não podem ser aceitas e naturalizadas ou compreendidas como o destino das pessoas mortas. A opção feita para a condução das ações de enfrentamento à pandemia produziu muito mais mortes, preparou o caminho para que as vítimas sucumbissem uma a uma.
As mortes não cessaram. Não cessam. O número de cruzes cresce enquanto mais uma cruz é fincada no chão. Cruzes que cruzam histórias, emendam o sofrimento e esvaziam a palavra “sentimento”.
Cruzes carregadas por mulheres pobres, sem trabalho, sem renda, sem comida. A outra lágrima derramada diante do olhar faminto dos filhos, dos sobrinhos, dos netos, dos mais velhos. A outra feição da morte em desfile diante da vida dessas mulheres. A outra asfixia mantida por um dedo que aperta o pescoço dos pobres do Brasil e afrouxa a regra para banqueiros e vendedores internacionais de armas que projetam lucro elevado nos negócios bélicos internos.
Adeus a dez mil vidas sem trégua para reorganizar o sentimento, sem chance de abraçar a outra pessoa igual na dor, sem direito ao luto.
Leia mais
- Vacina já com data e hora marcada
- Colapso da saúde em Manaus revela crises sistêmicas e históricas no coração do Amazonas. Entrevista especial com Wilton Abrahim
- Entidades e personalidades do Amazonas lançam manifesto pedindo vacinação em massa no Estado
- Amazonas tem 148 mortes em 24h e segue transferindo pacientes para outros estados
- Amazonas: em pleno colapso do sistema público de saúde, TCE resolve renovar sua frota de veículos
- CNBB Norte 1 envia sopros de vida para o interior do Amazonas
- 1ª indígena vacinada no Amazonas: “Aceitei como um ato político, de luta, como sempre é a nossa vida”
- Os 60 bebês do Amazonas: retrato de um futuro asfixiado
- “Pelo amor de Deus, nos enviem oxigênio”, apelam os bispos do Amazonas e Roraima
- Amazonas entra na fase roxa, a mais grave da Covid-19
- Pandemia segue fora de controle no Amazonas
- Manaus deverá chegar à terceira onda de contaminação, dizem pesquisadores
- ‘Se não impusermos medidas mais restritivas, não só Manaus, mas outras cidades entrarão em colapso’. Entrevista com Julio Croda
- 20 concentradores de oxigênio e 50 BIPACs chegam em Manaus. Dom Edson e Dom Leonardo agradecem de coração
- Arquidiocese de Manaus cria Rede de escuta espiritual para atingidos pela Covid-19
- Momento de lamento e dor que continua assolando a cidade de Manaus
- “Manaus está dizendo para o Brasil: ‘Cuidado, sou você amanhã’”, alerta Nicolelis
- Elementos importantes para compreender o contexto trágico que vivemos na cidade de Manaus
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Amazonas. Adeus a 10 mil vidas. ‘Há superávit de mortes e déficit de cruzes prontas’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU