30 Mai 2020
Dos 7,8 milhões de brasileiros que estão a mais de quatro horas de um respirador, mais da metade vive na região. Referência de atendimento, Santarém tem leitos de UTI lotados e disputas em torno da resposta à pandemia.
A reportagem é publicada por Amazônia.org, 28-05-2020.
O encontro das águas turvas do Rio Amazonas com a clareza do Tapajós produz um dos cartões postais de Santarém, no oeste do Pará. As belezas naturais da cidade cercada por água a perder de vista atraem turistas do mundo inteiro, sobretudo para a vila de Alter do Chão. Para quem vive na região, a realidade é bem diferente. Apenas metade da população tem acesso a água limpa em Santarém, um dos cem maiores municípios do Brasil. O saneamento básico, por sua vez, é privilégio de 4,2%.
“A Amazônia recebe a pandemia nas piores condições possíveis”, diz Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde & Alegria, ONG que atua há mais de três décadas na região. “A principal causa de mortalidade infantil aqui é diarreia por água contaminada dos rios. Imagina trabalhar a importância da higiene com a população que não tem torneira em casa.”
O avanço do novo coronavírus na região levou o sistema de saúde de Santarém ao colapso, como já ocorrera em Belém e Manaus, principais capitais da região. Os 31 leitos de UTI disponíveis estão lotados, e a cidade é referência de atendimento para uma população superior a 1 milhão de pessoas, distribuída em 22 municípios do interior da Amazônia.
Alguns desses municípios são maiores que países europeus. Itaituba, com pouco mais de cem mil habitantes, tem o dobro da extensão territorial da Bélgica. O deslocamento dos pacientes que precisam de atendimento em Santarém depende de transporte por um helicóptero que o governo estadual colocou à disposição.
Dos 7,8 milhões de brasileiros que estão a mais de quatro horas de um aparelho respirador, mais da metade vive na Amazônia. Sozinho, o estado do Pará responde por quase um terço dessa população.
Enquanto no começo da pandemia, a cidade de São Paulo tinha um respirador por 2,4 mil habitantes, a taxa era de um por 20 mil em Santarém. Nesta terça-feira (26/5), a cidade paraense chegou a 1.016 casos confirmados e 65 mortes em decorrência da covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Os dados, porém, apresentam grande defasagem. Como não há estrutura para a realização de exames clínicos em Santarém, as amostras são enviadas de avião a Belém, capital do estado, e demoram até duas semanas para serem processadas. Há, ainda, limitação de testes rápidos, utilizados sobretudo para acompanhar casos já detectados.
“Pela quantidade de internações, estimo que haja entre 20 mil e 40 mil infectados no oeste do Pará”, avalia João Guilherme Assy, médico infectologista do município, que monitora as unidades de saúde locais. O crescimento da fila por um leito de UTI obriga os médicos ao improviso.
Não raro, pacientes têm que revezar respiradores para garantir o acesso de mais pessoas ao oxigênio. Começa a haver também carência de profissionais médicos, conforme os que estão na linha de frente adoecem pelo contato com o vírus.
A situação é agravada pela baixa adesão da população ao isolamento social. Para responder a esse quadro, a prefeitura decretou lockdown, ou seja, medidas drásticas de confinamento, por seis dias, até o último domingo. A taxa de isolamento social subiu de 39% para uma média de 49,9% nos dias em que vigorou a medida. Apesar da melhora, o indicador ficou abaixo dos 70% recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Com o aumento no número de óbitos (70%) e casos de covid-19 confirmados (56%) nesse período, o prefeito Nélio Aguiar (DEM) causou surpresa ao decidir pela não renovação do lockdown nesta semana. Devido ao fechamento de lojas, há uma forte pressão de comerciantes locais contra a medida. Porém, uma decisão judicial na última segunda-feira determinou o reinício do lockdown por sete dias.
Não tardou para circularem áudios em grupos de WhatsApp hostilizando a promotora de Justiça que moveu a ação, apontada como “esquerdista”. Uma pessoa sugeriu a realização de um “buzinaço” em frente à casa dela.
A economia da região é muito dependente do turismo, um dos setores mais afetados pela pandemia. Proprietária do restaurante Ty Comedoria e Bar, Juana Galvão pede medidas mais efetivas do governo estadual para garantir a sobrevivência financeira dos comerciantes locais. Mesmo assim, ela é favorável ao lockdown.
“É uma insensatez dos empresários ser contra a medida. A cidade vive do turismo, então precisa dar exemplo para ter a confiança do público quando a pandemia passar”, opina.
A contaminação ideológica em torno da resposta à pandemia gerou outro problema na cidade. Na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Santarém, que atende casos suspeitos da doença, se tornaram frequentes pedidos de pacientes pela prescrição da cloroquina, medicamento defendido pelo presidente Jair Bolsonaro para o tratamento da covid-19.
Os pedidos pelo medicamento aumentaram sobretudo após a publicação do protocolo do Ministério da Saúde que autorizou, sem comprovação científica, a utilização do medicamento em casos leves, desde que com acompanhamento médico e declaração de consentimento do paciente.
“Era comum eu ter que interromper meu trabalho na UPA por conta de alguém fazendo escândalo por não conseguir a prescrição”, conta Assy.
Sob ameaças de processos judiciais feitas pelos pacientes, médicos jovens contrários à aplicação do remédio no tratamento da covid-19 pela falta de embasamento científico começaram a ceder e receitar a cloroquina. Para dar respaldo aos profissionais na ponta, os infectologistas da cidade escreveram uma carta alertando para os riscos da medicação e a não obrigatoriedade de prescrição pelos médicos.
A mensagem era direcionada aos profissionais que atendem casos leves, nos quais a cloroquina pode ser prescrita, mas o comunicado foi tomado como uma afronta por médicos atuando em UTIs nos hospitais da região.
Em resposta, eles mobilizaram mais de 80 profissionais de outras áreas da medicina para defender o direito ao uso da cloroquina com prescrição médica. O tom do posicionamento formal era bastante distinto das redes sociais, com postagens que apontavam o “comunismo” dos infectologistas e aconselhavam a população a tomar cloroquina, utilizada no tratamento da malária.
Enquanto questões de saúde se transformam em discussões políticas e ideológicas, a pandemia segue seu processo de interiorização na Amazônia. Santarém está localizada entre Manaus e Belém, que constituem pontos de irradiação do contágio.
Mesmo com o lockdown, embarcações irregulares continuam fazendo o transporte de pessoas na região, que tem Santarém como polo de serviços. O principal entrave é a retirada do auxílio emergencial do governo, que gera aglomerações na cidade e obriga a população do interior a se deslocar.
Um dos pontos mais sensíveis na região é a Reserva Tapajós-Arapiuns, onde vivem 23 mil pessoas de 72 comunidades tradicionais, sendo 58 indígenas. Auricelia Arapium, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns, diz que tem havido muitas dificuldades para obter o auxílio emergencial do governo, devido a problemas com acesso à internet e documentos. Ela reclama da ausência de planos governamentais para os povos indígenas, especialmente vulneráveis ao vírus pela falta de memória imunológica.
“Não basta só nós dizermos aos nossos ‘parentes’ para ficar em casa. É preciso ter um olhar diferenciado para as aldeias. Estamos fazendo nossa parte, tentando mantê-las fechadas. Mas tem muita gente doente, e estamos vendo nossos anciões morrerem. Precisamos de apoio”, diz Auricelia.
Entre os dias 24 e 25 deste mês, o governo estadual enviou 18 novos respiradores para o hospital de campanha montado em Santarém, com 120 vagas, e serão ampliados para 49 os leitos de UTI disponíveis na cidade.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Em meio a colapso, interior da Amazônia vive embate sobre lockdown e cloroquina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU