26 Março 2020
Desde que a Organização Mundial da Saúde reconheceu a pandemia do coronavírus, em 11 de março, o desmatamento desapareceu dos noticiários. A Amazônia, no entanto, tem uma dinâmica própria, e ainda não se sabe de que forma será impactada por esta crise. Por um lado, há fatores que podem levar à redução do desmatamento, como a diminuição da demanda por commodities agrícolas e a dificuldade de escoar a produção. De outro, há variáveis que favorecem um maior descontrole na região, como a redução da fiscalização ambiental e o aumento do desemprego, que pode empurrar trabalhadores para a ilegalidade.
A reportagem é de Fernanda Wenzel, publicada por ((o))eco, 23-03-2020.
“O ouro já subiu quase 100%, e se a economia continuar desmontando o ouro vai continuar subindo. Isso é um princípio básico de economia. O garimpo é uma saída de trabalho informal com renda garantida em um momento de perda de empregos e de opções de renda”, diz Gustavo Geiser, perito criminal federal na área de meio ambiente na unidade da Polícia Federal em Santarém, no Pará.
Em relação ao desmatamento, Geiser vê dois movimentos contrários. Por um lado, ocorre a mesma coisa que em relação ao ouro: em tempos de crise, ativos mais “palpáveis” se valorizam, entre eles a terra. Por outro lado, mesmo para desmatar e ocupar a terra com algumas cabeças de gado, é preciso algum investimento. “Com menos dinheiro circulando, talvez haja alguma dificuldade para explodir o desmatamento. Por outro lado, a terra é um ativo seguro em um momento de total aversão a risco”, afirma.
Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon, tem uma opinião parecida. No curto prazo, ele acredita em uma desaceleração do desmatamento. O seu principal motor, a pecuária – responsável por dois terços do desmatamento na Amazônia – tende a sofrer com a crise internacional. “No curto prazo há muita incerteza, então as pessoas querem gastar menos. Como carne de gado é mais cara, há uma tendência de haver uma substituição por opções mais baratas”. Mas parte do desmatamento é especulativo, e pode encontrar no momento de crise uma oportunidade de lucro futuros: “O grileiro pode decidir desmatar agora para ganhar terra e vender mais adiante, quando o preço subir. Não dá para relaxar e dizer que a recessão vai baixar o desmatamento”, completa Barreto.
Cerimônia de assinatura da Medida Provisória (MP) 910/2019, conhecida como a MP da grilagem. (Foto: Carlos Silva/MAPA)
O pesquisador também lembra que, com o coronavírus, diminui a pressão da sociedade sobre o tema ambiental. Um cenário favorável à aprovação de projetos como a Medida Provisória 910, que regulariza a situação de quem invadiu terras públicas até dezembro de 2018. “Se aprovar, não pelo lado do mercado, mas pelo lado da apropriação de terra, pode subir o desmatamento”, afirma.
O desmatamento na Amazônia, que em 2019 atingiu o maior patamar em 10 anos, seguiu registrando índices mais altos que nos anos anteriores em janeiro e fevereiro – 284 km² e 185 km², respectivamente, segundo o Deter. Em março, o desmatamento caiu. Ficou em 55 km², abaixo dos anos anteriores e próximo do registrado durante a crise econômica de 2015/2016.
O cenário, no entanto, não tranquiliza Philip Fearnside, pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) há 42 anos. “Há coisas acontecendo neste exato momento”, diz Fearnside, referindo-se a um estrada aberta por grileiros dentro da Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande, no Amazonas, e que ameaça adentrar a Terra Indígena Lago Capanã, que pertence ao povo Mura. Para o pesquisador, a crise internacional pode afetar os empresários do agronegócio, mas não os que atuam de forma criminosa. “Quem realmente está exportando boi e soja são os empresários mais avançados, que realmente dependem da sua produção. Mas tem um setor que é de grilagem mesmo, de pessoas que não estão ganhando dinheiro vendendo produto, e sim vendendo terra”.
Para o pesquisador, o mais preocupante continua sendo a postura do governo federal: “Segue a sinalização de que tudo é permitido. Talvez isso seja mais importante ainda do que as próprias mudanças em função da pandemia. Um exemplo é o projeto que quer autorizar a mineração dentro de terras indígenas”. Na última quinta-feira, já em meio à crise do coronavírus, uma comitiva brasileira foi até o Canadá participar do “Brazilian Mining Day” durante o maior evento de mineração do mundo. Na ocasião, o secretário de Geologia e Mineração do Ministério de Minas e Energia, Alexandre Vidigal, se comprometeu a “promover avanços regulatórios, legais e ambientais” para tornar o setor mais atraente no Brasil, com ênfase na mineração em terras indígenas.
Bois no curral de um frigorífico. (Foto: Fabio Nascimento/((o)) eco)
A indústria da carne brasileira vinha acumulando boas notícias até ser afetada pela pandemia. Em novembro, a China autorizou 13 novos frigoríficos a exportarem para o país. Isso, somado a uma peste suína no país asiático, catapultou as exportações. O Brasil, que exportou US$ 384 milhões de carne em janeiro de 2018, chegou em dezembro exportando quase o dobro, US$ 762 milhões, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. A alta do dólar também beneficiou as empresas exportadoras: quem vende na moeda americana se dá bem na hora de converter para o real. A redução da oferta no mercado interno fez o preço da carne explodir nos supermercados brasileiros, e as ações das grandes empresas – JBS, Marfrig e Minerva – tiveram forte valorização.
Em janeiro, embora o vírus já se alastrasse por muitos países – especialmente na China – o faturamento com as exportações de carne bovina ainda foi 37,7% maior que no mesmo período do ano passado, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec). Em fevereiro, o incremento no faturamento foi de 8,9%, mas o volume das exportações caiu 5,7%.
Aos poucos, a crise começa a ser sentida pelo setor. Segundo apurou o Portal BDO, JBS, Marfrig e Minerva já fecharam unidades. A Marfrig suspendeu as atividades na unidade de Tucumã, no Pará. A JBS concedeu férias coletivas em 5 de suas 37 unidades de bovinos no Brasil por 20 dias. Já a Minerva Foods paralisou as atividades de quatro unidades.
Na última quinta-feira (19), a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) – que congrega 14 entidades e 71 empresas – emitiu nota da demonstrando preocupação com “a recente sugestão de paralisação do Porto de Santos por parte dos Estivadores”. “[…] quaisquer ações ou decretos […] que proponham o fechamento irrestrito do comércio e/ou prejudiquem a logística de distribuição podem vir a causar sérios impactos à produtividade agrícola”, afirma a Abag. Diante da incerteza sobre o escoamento da produção, os frigoríficos não compraram bois no último dia 13, e desde então as compras estão praticamente paradas. Doze feiras agropecuárias, que no ano passado movimentaram mais de R$ 10,1 bilhões, já foram canceladas.
“Eu não me recordo de já ter vivido alguma coisa como essa. Uma combinação de crise financeira, crise de oferta e paralisia, eu nunca tinha visto”, afirma Carlos Eduardo Young, professor do Instituto Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para o professor, a retração da atividade econômica em todo mundo deve levar à redução do desmatamento, pelo menos no curto prazo.
Ao contrário de Barreto e Geiser, Young é cético até mesmo sobre a valorização da terra em meio à crise: “Isso aconteceria em circunstâncias normais. Estamos vendo uma situação muito atípica. Quem precisa de liquidez está ofertando ativos a qualquer preço, então é um bom momento para comprar qualquer tipo de ativo: ações, terra, apartamento. O difícil é achar quantos destes agentes econômicos que têm dinheiro estão dispostos a entrar em um processo de semi ilegalidade ou plena ilegalidade, sabendo que há na economia um monte de outros ativos baratos que não têm risco e nenhuma ilegalidade”.
Young ressalta, no entanto, que não se sabe por quanto tempo estes elementos irão permanecer. Antônio Jorge Camardelli, presidente da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), diz que a proibição do trânsito de pessoas prejudica principalmente os serviços de fast food e restaurantes, que representam uma fatia importante do mercado da carne. “Para a Europa a gente não está mais mandando produtos, pela falta de consumo. Estamos com as barbas de molho”. Mas a expectativa é voltar o quanto antes à normalidade. “Está tudo pronto para liberar a exportação para os EUA, só não exportamos nada ainda por causa do vírus. A queda das exportações para a China era prevista, pois foi o primeiro país a iniciar este processo. Mas também vai ser o primeiro a voltar. Acreditamos que em 30 dias as exportações para China estarão no mesmo patamar de novembro”, afirma Camardelli. O presidente da Abiec nega a relação entre as exportadoras de carne e o desmatamento. Ele afirma que as grandes indústrias são submetidas a regras rígidas e têm sistemas de monitoramento eficientes, e que o gado oriundo de desmatamento ilegal acaba sendo comprado por frigoríficos estaduais ou municipais, que são menos fiscalizados.
Mas os dados contradizem essa afirmação. As exportadoras JBS, Minerva e Marfrig concentram 21% dos frigoríficos e 42% da capacidade de abate de gado na Amazônia Legal, segundo estudo feito em 2017 pelo Imazon e pelo Instituto Centro de Vida (ICV). O mesmo estudo mostrou que a JBS é a empresa exposta ao maior risco de desmatamento. A Marfrig ficou em quinto lugar e a Minerva na décima posição. Em novembro do ano passado, ao divulgar as auditorias do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne – que proíbe empresas de comprarem gado oriundo de desmatamento ilegal – o Procurador do Ministério Público Federal, Daniel Azeredo, afirmou que nenhuma em empresa que compra carne da Amazônia está livre do desmatamento em sua cadeia produtiva.
Apesar de o Ibama ter garantido, através de ofício, que as operações previstas no Plano Nacional Anual de Proteção Ambiental estão mantidas, é impossível que não haja um impacto nos trabalhos de fiscalização. Em uma portaria publicada na última quinta-feira (19), o Ministério do Meio Ambiente elencou sete grupos de trabalhadores que deverão trabalhar de casa, entre eles pessoas com mais de 60 anos, gestantes ou lactantes, pessoas responsáveis por crianças e que não tenham com quem deixá-las e servidores com doenças crônicas. Além disso, o Ministério determinou que apenas um terço da força de trabalho da pasta atue de forma presencial.
Pandemia afetará fiscalização. (Foto: Felipe Werneck/Ibama)
Não só a política ambiental que enfrenta problemas. No Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o momento ainda é de incerteza. O órgão é responsável por processar e analisar as imagens dos satélites que monitoram o desmatamento na Amazônia. São 25 técnicos que trabalham no escritórios de São José dos Campos e Belém produzindo os relatórios do DETER – um sistema de alertas diários que orientam as ações de fiscalização do Ibama – e do Prodes, que mede a taxa anual de desmatamento. Destes servidores, três já estão trabalhando em casa por orientação médica, em função dos riscos de contaminação pelo coronavírus.
De acordo com Cláudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e outros Biomas, uma das maiores dificuldades é garantir acesso ao banco de dados fora do Inpe, algo que nunca foi feito antes. “Estamos testando alternativas como fazer cópias off-line do banco, usar um banco localizado em uma “nuvem privada”, e outras possibilidades. Essa adaptação não é imediata, e ainda não temos uma avaliação do impacto que pode ter, depende por exemplo da qualidade da internet de que cada colaborador dispõe em sua residência. Há ainda caso de colaboradores que não dispõem de planos de internet com alta disponibilidade”, diz Almeida. A partir desta segunda-feira (23), todos os servidores do Inpe devem realizar todo o trabalho possível de casa. “Buscaremos manter o monitoramento […] funcionando da melhor forma possível, mas sempre priorizando a segurança de nossa equipe”, afirma Almeida.
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Pandemia terá impacto direto no desmatamento da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU