24 Dezembro 2020
Pesquisadores descrevem como a Amazônia se tornou o ambiente ideal para a disseminação do novo coronavírus.
A reportagem é de Eduardo Nunomura, publicada por Amazônia Real, 16-12-2020.
Manaus representa hoje uma população “sentinela” para a Covid-19. Significa que se governantes ou epidemiologistas querem combater a doença, basta fazer o oposto do que a capital do Amazonas fez ou deixou de fazer nesta pandemia.
Um estudo publicado em 8 de dezembro na Science, uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo, revela como o novo coronavírus conseguiu se espalhar rapidamente por Manaus, cidade que optou por ignorar medidas de mitigação da doença. Em outubro, 76% dos manauaras já poderiam estar infectados pelo SARS-CoV-2, segundo o estudo. Na capital paulista, no mesmo período, essa taxa seria de 29%.
Cabe uma questão e uma explicação para os verbos no modo condicional (poderia e seria) do parágrafo anterior: se 76% da população já teve Covid-19, por que o hospital de referência de Manaus está lotado? A base de dados do estudo foi constituída de pessoas doadoras de sangue, mas não necessariamente ela pode ser considerada um indicativo ideal do perfil populacional. É necessário, portanto, cautela antes de considerar que a população de Manaus está imunizada naturalmente.
“Isso está acima do limite teórico de imunidade do rebanho. No entanto, a infecção anterior pode não conferir imunidade duradoura”, alertam os pesquisadores. Os dados acima foram obtidos a partir da testagem para anticorpos IgG (imunoglobulinas do tipo G), indicativos de que a pessoa já foi infectada pelo novo coronavírus. O teste foi feito a partir de amostras de sangue.
A velocidade de contaminação detectada em Manaus é muito superior à de estudos de soroprevalência (número de infectados) conduzidos na Europa e nos Estados Unidos. Os índices da capital do Amazonas só são comparáveis com os de favelas de Mumbai, na Índia. O estudo teve a participação de várias instituições, como a Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas, a Fundação Pró-Sangue-Hemocentro de São Paulo e a Universidade de São Paulo.
Verificação de temperatura do corpo para entrar em loja em Manaus. (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
Estar presente de forma negativa em uma prestigiada publicação de ciência é o que resta para a população da região Norte. Estudos científicos em todo o mundo buscam construir uma base sólida de conhecimento sobre um vírus que ainda é, na prática, um completo desconhecido. O que aconteceu e está acontecendo na região amazônica, particularmente, tem rendido muitas pesquisas que deveriam servir de alertas à população. A Amazônia coleciona cases de fracasso no combate ao novo coronavírus.
A Amazônia Real traz um levantamento de publicações científicas, os chamados papers, sobre os impactos da pandemia na maior floresta tropical do mundo. Apresentados em conjunto, eles revelam uma história ainda em andamento, mas que já mostra o quanto as populações da região se encontram vulneráveis.
Uma equipe multidisciplinar e regional de pesquisadores publicou na edição de novembro da Lancet os resultados de dois inquéritos domiciliares sorológicos realizados em 133 cidades brasileiras com 25.025 participantes em maio e 31.165 em junho. No primeiro levantamento, os autores do estudo se surpreenderam ao descobrir que 11 das 16 cidades com prevalência superior a 2% estavam localizadas em um trecho ao longo de 2 mil quilômetros do rio Amazonas, como Macapá, capital do Amapá, e os municípios de Breves, no Pará, e Parintins, no Amazonas. No segundo levantamento, às mesmas 11 cidades amazônicas se juntaram outras 23, sendo que 14 delas eram do Nordeste.
Covid-19 no interior do Amazonas. (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
O estudo, por se tratar de uma pesquisa domiciliar, permitiu levantar dados sociodemográficos, como sexo, idade, gênero, educação, renda, entre outros. Como se vê no noticiário diário, o novo coronavírus tem incidido com maior força entre a população mais idosa, aqueles de famílias mais numerosas (seis ou mais pessoas na mesma casa) e entre os mais pobres (3,7% entre eles ante o 1,7% dos mais ricos). Mas os pesquisadores voltaram a se surpreender no segundo levantamento: a prevalência do SARS-CoV-2 entre os indígenas foi de 6,4%, muito acima do 1,4% entre os brancos.
Em agosto, pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Centro Universitário do Estado do Pará defenderam no International Journal for Equity in Health a necessidade de estudos de vigilância soroepidemiológica em áreas como a Amazônia. Conhecer as taxas de mortalidade e letalidade e os aspectos epidemiológicos de risco de exposição em comunidades de ribeirinhos, quilombolas e povos indígenas daria condições de estabelecer recomendações específicas para uma “possível reemergência futura do vírus na região amazônica brasileira”.
Prosseguem os pesquisadores paraenses: “Diferentemente das populações urbanas, os povos indígenas historicamente são submetidos a uma profunda discriminação com base na etnia, pobreza e idioma; e medidas preventivas contra o vírus não são práticas cotidianas nas comunidades indígenas”.
Em julho, a revista Ambiente & Sociedade publicou o artigo “A Amazônia brasileira em tempos de covid-19: da crise à transformação?”, dos pesquisadores Fabio de Castro e Gabriela Lopes (ambos da University of Amsterdan) e Eduardo Brondízio, da Unicamp e Indiana University Bloomington. Para eles, a Covid-19 se soma a uma lista de ameaças às populações rurais e indígenas da Amazônia.
“A crise da Covid-19 expôs a posição da região como uma das mais pobres e politicamente desconsiderada do mundo”, escrevem os pesquisadores. “Desde os tempos coloniais, as fontes de riqueza mais importantes da Amazônia são consideradas um estoque de commodities, carbono ou biodiversidade, e as visões de desenvolvimento sustentável geralmente são produto da ideologia governamental centralizada ou de grupos de elite que defendem interesses específicos.” No ensaio, eles argumentam que a realidade pós-pandêmica exigirá atenção aos problemas estruturais que enfrentam os povos da região, mas que eles próprios têm maiores chances de serem os agentes de mudança.
Nos Cadernos de Saúde Pública, os pesquisadores Jesem Orellana (Fiocruz-Manaus), Geraldo Cunha (Escola Nacional de Saúde Pública), Lihsieh Marrero e Iuri Leite (Universidade do Estado do Amazonas) e Bernardo Horta (Universidade Federal de Pelotas) oferecem explicações sobre por que Manaus se tornou o epicentro da epidemia na Amazônia. Eles rastrearam o total de mortes ocorridas entre 2018 e 2020, que chegaram a triplicar em alguns grupos, conforme a epidemia avançava na região. Ao trabalhar com dados da mortalidade geral para estimar o excesso de mortes, os pesquisadores acabaram por perceber que esse recurso é um robusto indicador do avanço de doenças em cenários pandêmicos.
Covas para sepultamentos por covid-19 no cemitério de Manaus. (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
Feitos no calor de uma pandemia, os estudos podem correr o risco de projetar situações que acabam não se confirmando nos números oficiais. Nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, os pesquisadores Sandro Bitar e Wilhelm Steinmetz, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), simulam, com modelos matemáticos, o que aconteceria em Manaus caso fossem adotadas medidas mais ou menos restritivas no distanciamento social.
Em um cenário sem medidas de contenção, Bitar e Steinmetz apontavam que haveria mais de 50 mil infectados até o fim de abril na capital do Amazonas. Naquele mês, os dados oficiais indicavam 3.273 novos casos. Já com a adoção de um restritivo lockdown, haveria menos de 50 mil casos na primeira quinzena de junho. Na verdade, houve 23.138 novos casos no fim de junho. O patamar referencial dos pesquisadores só foi atingido em 28 de setembro, quando Manaus registrou 50.016 casos. Em 9 de dezembro, a capital amazonense possuía 73.601 contaminados pelo novo coronavírus (Leia nota abaixo sobre correção neste trecho).
Já Camila Palamim, Manoela Ortega e Fernando Marson, da Universidade São Francisco no interior paulista, publicaram em outubro o artigo no Journal Racial Ethnic Health Disparities, no qual traçam um panorama do avanço do SARS-CoV-2 entre as populações indígenas, com base em dados oficiais, como o do IBGE ou dos Distritos Sanitários.
Pesquisadores da Universidade de São Paulo, ligados à Faculdade de Saúde Pública, Instituto de Estudos Avançados e Escola Politécnica, na revista Estudos Avançados, alertam que o Sars-CoV-2 pode invadir biomas brasileiros, como a Amazônia, e retornar ainda mais agressivo no futuro. A ciência ainda está aprendendo sobre o processo evolutivo do vírus mortal. “Se considerarmos a quantidade de espécies vulneráveis ao novo coronavírus que o Brasil possui, especialmente a riqueza de morcegos na Amazônia, perceberemos o alto potencial de os biomas brasileiros se tornarem imensos reservatórios; e de lá poderão retornar novas cepas eventualmente ainda mais perigosas à saúde”, alertam.
Preguiça da Amazônia. (Foto: Lívia Prestes/MEG)
Tamanduás, tatus e preguiças da Amazônia são parentes próximos dos pangolins (Pholidotamorpha), a espécie animal de onde se originou o novo coronavírus, na China, e contaminou a população mundial. Para os pesquisadores, a habilidade de o vírus infectar humanos, por meio do processo chamado spillover, é real e nesse grupo se incluem garimpeiros, madeireiros, posseiros, e pessoas cujas atividades envolvam circular entre as florestas e cidades.
Em outro estudo, a partir de um caso de uma criança de sete meses infectada com o SARS-CoV-2, os médicos Emerson de Farias e Mary Lucy e Mello (Santa Casa de Belém) e Maria Cleonice Justino (Instituto Evandro Chagas) fazem um relato minucioso, na Revista Paulista de Pediatria, de como o vírus não pode ser debelado. Contaminada no hospital, já que ela havia nascido prematura de 26 semanas e estava internada em uma UTI neonatal, a menina chegou a ser tratada sem sucesso com azitromicina, cefepima e oseltamivir. Esses medicamentos continuam sendo receitados para combater a Covid-19.
Hospital Delphina Aziz. (Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)
Um ensaio clínico conduzido de 23 de março a 5 de abril no Hospital e Pronto-Socorro Delphina Rinaldi Abdel Aziz, de Manaus, deveria ter sido mais intensamente divulgado entre os frequentadores do Palácio do Planalto. Publicado no jornal da American Medical Association, o Jama, o estudo testou os efeitos do uso da cloroquina em 81 pacientes contaminados pela Covid-19. Medicamento seguro, a cloroquina é usada há mais de 70 anos para tratar a malária, endêmica na região amazônica. Mas se tornou uma espécie de panaceia para terraplanistas e negacionistas. A pesquisa indicou que o uso da cloroquina por 10 dias em altas doses, e em especial associada à azitromicina e ao oseltamivir, pode até ser letal. “Nosso estudo levanta bandeiras vermelhas suficientes para interromper o uso de um regime de alta dosagem, porque os riscos de efeitos tóxicos superaram os benefícios”, anotaram os pesquisadores.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como a região Norte virou ‘case’ de fracasso nos estudos científicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU