17 Abril 2023
"O sucateamento de ações territoriais, que visam os grupos da população com maior dificuldade de se deslocar aos equipamentos de Saúde teve consequẽncias imediatas" relata Stela Meneghel, pesquisadora da saúde e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A reportagem é de Gabriel Brito, publicada por Outras Palavras, 16-04-2023.
A médica e professora gaúcha Stela Meneghel pesquisa há 40 anos as violências de gênero e raça, e em especial como elas dificultam o acesso à Saúde. Por isso está particularmente impressionada com o desmonte da Atenção Básica em cidades brasileiras como Porto Alegre e sua consequência: o aumento das desigualdades no universo da Saúde Pública. Ele está provocando incidência explosiva de doenças como tuberculose, sífilis e aids. Stela narrou o processo em entrevista ao PULSO, o programa de entrevistas de Outra Saúde, na edição da última quinta-feira, 13/4
“A atenção básica foi destroçada em Porto Alegre”, explica Stela. “Hospitais privados receberam a gestão da atenção primária, o que significa uma rotatividade dos profissionais. Uma coisa é trabalhar com uma doença aguda: a pessoa faz uma consulta, pega um remédio e vai embora. Outra coisa é uma diabetes, hipertensão, situações de caráter crônico. Nesses casos o paciente precisa de vínculo com os profissionais. Os agentes comunitários de saúde, que trabalhavam no território, buscavam pacientes, marcavam consultas, achavam faltosos, detectavam situações que não chegavam na unidade”. Mas foram demitidos em massa. “O desmonte da saúde pública interfere muito nessas situações de violência e vai ser um trabalho hercúleo recuperar isso”, relata ela.
O sucateamento de ações territoriais, que visam os grupos da população com maior dificuldade de se deslocar aos equipamentos de Saúde teve consequẽncias imediatas. “HIV, tuberculose e sífilis são doenças para as quais existem tratamentos exitosos. Porto Alegre foi padrão, há 30 anos, os níveis de tuberculose eram muito baixos, reporta Stela baseada em sua longa experiência. O declínio atual é notável, ela prossegue: “Hoje a prevalência é elevada e está relacionada à situação social e geográfica. O risco relativo das populações negras é muito maior e isso está ligado à questão dos territórios. A mortalidade violenta (homcídio ou acidente como atropelamento) é a segunda causa entre negros. Entre brancos, não aparece entre as principais”.
A pesquisa de Stela sempre se voltou a grupos sociais mais vulneráveis, em especial mulheres vítimas de alguma forma de violência. A pesquisadora tem estudos sobre as chamadas “rotas críticas”, momento em que as mulheres começam a se desvencilhar de uma situação de violência e buscam o amparo do Estado em suas diversas dimensões, como as relacionadas à saúde, jurídica e policial. Assim, viu de perto o retrocesso que elas viveram nos últimos anos.
“Há uma sensibilidade muito maior à violência contra crianças e idosos. Sobre as mulheres ainda há aqueles velhos chavões, de que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’. Em áreas de tráfico, os profissionais da saúde têm medo de entrar. Tem muitas histórias de homens que entram em unidades de saúde e ameaçam todo mundo caso interfiram… Essa atitude é referendada pelo próprio senso comum embutido na cabeça das pessoas, inclusive de trabalhadores do poder judiciário, do sistema policial…”
Stela ainda explica que boa parte desta violência é simplesmente medicalizada. Ao invés de compreendida em sua dimensão social é tratada no âmbito psicopatológico. Por isso, ao longo dos anos, diante do acúmulo das experiências, a pesquisadora incorporou em suas elaborações os conceitos de racismo estrutural e de interseccionalidade entre gênero, raça e classe – fundamentais para a compreensão das desigualdades refletidas no acesso à saúde da população brasileira.
Sem relacionar estas diversas dimensões, sustenta Stela, há o risco de acabarmos capturados, como aconteceu com as feministas liberais. O capitalismo é astuto para nos dividir por questões pequenas. Por isso, articulamos classe, raça e gênero. Existem trabalhos e pesquisas, como uma que fiz com Fernanda Bairros, onde entrevistamos mil mulheres e vimos iniquidades na saúde das mulheres negras, como em exames citopatológicos. Descobrimos que para exames de mamas mulheres negras eram menos examinadas que brancas, porque eram menos tocadas, de maneira que percebemos que pessoas que deviam fazer isso não queriam tocá-las. Mulheres negras são menos anestesiadas em parto…”, ilustrou.
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Crise na atenção básica amplia desigualdades no SUS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU