A psicologia latino-americana tem que parar para pensar

Psicologia | Foto: unsplash

13 Setembro 2022

 

"As faculdades de psicologia da região estão preocupadas em prevenir e combater aquilo que faz sofrer à população?", questiona Santiago Gómez, licenciado em Psicologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA), mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e jornalista, em artigo publicado por Brasil de Fato, 12-09-2022.

 

Eis o artigo.

 

Assistimos à propagação de ataques, agressões, atentados, homicídios, feminicídios, tentativas de magnicídios, golpes, genocídios promovidos do exterior, com participação da mídia local, internacional, proprietárias das redes sociais, e o judiciário. O mesmo acontece do México até a Antártida. Os Estados Unidos investem em pesquisas comportamentais, conscientes da possibilidade de condicionar condutas. Nós seres humanos somos sistemas abertos. Temos cinco canais abertos pelos quais recebemos informação, e as percepções produzem emoções e condutas involuntárias. As emoções condicionam nossas condutas, nossas eleições. A mídia promove mal-estar social, para combater o Estado de Bem-estar social, o único modelo dentro do republicanismo que bota limites à voracidade liberal. Assistimos a uma disputa global entre as corporações transnacionais com interesses financeiros e os Estados soberanos. Conscientes dessa realidade, as nossas faculdades de psicologia preparam profissionais para prevenir e combater esses ataques?

 

Na nossa região, a psicologia está hegemonizada pela clínica. Preparamos profissionais para serem terapeutas. Nas nossas universidades, a disciplina Psicologia do Trabalho prepara estudantes para RH. Ou será que nas nossas faculdades estão ensinando quais são as causas estruturais do sofrimento na região? Estudei seis anos na faculdade de psicologia da Universidade de Buenos Aires e nunca ninguém me falou de Frantz Fanon. Por que será que nunca ninguém me ofereceu ler "Os condenados da terra", onde o militante da Frente Argelina de Liberação Nacional, formado em psiquiatria e psicanálise, descreveu a psicologia das pessoas colonizadas? Se não fosse porque na faculdade tive a opção de fazer a disciplina Criminologia, com Raúl Zaffaroni, uma das maiores referências mundiais do direito penal e um dos maiores pensadores dessa região, quem sabe nunca teria sabido que a mídia repete a mesma estrutura do discurso inquisidor: existe uma ameaça, é preciso acabar com ela, o risco é tão grande que estão permitidos os excessos, o estado de exceção. Foram as bruxas, os comunistas, os terroristas, são os jovens da periferia, o perigo populista.

 

Os tempos de guerra são propícios para pensar. Após a primeira grande guerra europeia, Sigmund Freud mudou sua teoria sobre o trauma. Nem todo trauma tinha origem sexual. Vendo os filhos acordarem na noite, sonhando com o que viram na guerra, morria a origem sexual como causa dos sonhos. O desenvolvimento de técnicas psicométricas, é consequência da necessidade do Estado estadunidense para filtrar quem estava em condições de trabalhar, após ter ido a guerra, e quem podia receber uma pensão. Cresci na Argentina antes de Néstor Kirchner, com os ex-combatentes da guerra das Ilhas Malvinas pedindo esmola no ônibus, no trem, na rua. Com a recuperação do Estado de Bem-estar social, passaram receber pensões dignas, foi reconhecido seu direito de receber um diferencial nos seus salários.

 

Após a segunda grande guerra europeia, quando ficaram à vista os campos de extermínio, aqueles que trabalhavam na psiquiatria e eram de esquerda olharam para os manicômios e disseram: não são tão diferentes. Começou a reforma psiquiátrica na Itália, em Trieste, conduzida por um comunista: Franco Basaglia. Basaglia considerava que o manicômio era a representação do Estado burguês. Os médicos os opressores, os pacientes os oprimidos, as pessoas que trabalhavam na enfermagem, classe trabalhadora alienada.

 

 

Há cinco séculos que interesses estrangeiros atuam na nossa região. Há cinco séculos, pela força, impera uma forma: a dos colonialistas, o modelo europeu, a república, a Grécia como origem. No Brasil mandaram para o manicômio um dos melhores escritores da sua história. Chamou o manicômio "Cemitério dos vivos". Tinha seis anos quando aboliram legalmente a escravatura. Questionava o silêncio da intelectualidade brasileira sobre a origem escravocrata da produção intelectual grega. Lima Barreto antecipou a unidade latino-americana contra os Estados Unidos. Tenho para mim, após ter pesquisado sua obra e o contexto da época, que o marginalizaram pelas verdades que não conseguia calar. Isso o levou a ficar alcoólatra.

 

Há duzentos anos que nessa região escreve-se que as nossas repúblicas não são como deveriam ser por culpa nossa. Nós somos o problema. Os primitivos, os bárbaros. "O problema do Brasil são os brasileiros", escuto todo dia. Sou suspeito de falar do povo com o qual escolhi viver. As nossas psicologias constituem-se na base de uma diferença entre como as coisas são e como deveriam ser. Mas, não contam para nós onde é que aquele modelo deu certo. Alguém perguntou na África pela fraternidade, solidariedade e a liberdade francesa? O que será que a juventude francesa negra, árabe, dirá da república francesa? É tratada como igual? O que tem para dizer o povo inglês, do modelo neoliberal de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que foi exportado para América Latina, começando pelo Chile? Não é casualidade que o ministro da Fazenda da maior potência da região, tenha participado da implementação do modelo neoliberal no Chile de Pinochet.

 

Os programas de estudo nas universidades da América Latina mudaram após o último período de ditaduras. Antes do golpe, na faculdade de psicologia de Buenos Aires, ensinavam sobre meios massivos de comunicação, propaganda, manipulação em massa. Hoje as faculdades formam profissionais que entendam desses processos? Estados Unidos financiou pesquisas para analisar a psicologia das pessoas de um país, a partir do que as pessoas escrevem nas redes sociais. Medem emoções, por isso colocaram emojis no Facebook, para saber do sentimento que a postagens produz em nós. Quem trabalha em agências de publicidade sabem disso, trabalham com isso. A psicologia latino-americana, está deixando o estudo comportamental nas mãos dos publicitários?

 

Não há como negar a hegemonia da psicanálise dentro do campo da nossa psicologia na América do Sul. Ainda, nossa intelectualidade olha mais para França, que para qualquer outro país da região. A psicanálise fez um grande aporte ao pensamento ocidental, enquanto convidou o mundo pensar na nossa relação com a linguagem. Mas não só a psicanálise fez isso. Lev Vigotsky, na Rússia, publicou em 1934 Pensamento e linguagem. Livro que todo mundo deveria ler, assim como Psicologia das massas e análise do eu, de Sigmund Freud. Não há como negar que somos 70% água, que pelo nosso corpo percorre eletricidade, que os estímulos produzem corrente elétrica, que temos um núcleo que processa essa informação, assim como que esse núcleo está formatado pela linguagem.

 

Em 1845, Simón Rodríguez, pedagogo de Simón Bolívar, deu conselhos para a construção de uma escola, na qual já colocou o problema colonial na constituição da nossa psicologia. "Ler é o último ato no trabalho do ensino. A ordem deve ser… Calcular-Pensar-Falar-Escrever e Ler. Não… ler- escrever e contar, e deixar a Lógica (como se faz em todas as partes) para os poucos que a sorte leva aos Colégios: dali saem empachados de silogismos, a vomitar, no trato comum, paralogismos e sofismas às dezenas. Se tivessem aprendido a raciocinar quando crianças, tomando proposições familiares como premissas, não seriam, ou seriam menos embrulhões. Não diriam (apesar do seu talento): 1º Este índio não é o que eu sou; 2º Eu sou homem; Conclusão: Logo ele é bruto; Consequência: Façam-no trabalhar a pauladas".

 

Enquanto aprendemos falar, incorporamos a organização social e o jeito de dar sentido às coisas, do lugar onde somos criados. Geralmente, a primeira palavra que a gente diz é mãe, o que representa que a nossa sociedade está organizada hierarquicamente. Com a incorporação dos pronomes possessivos, incorporamos uma sociedade ordenada a partir da propriedade privada. Nem toda língua tem pronomes possessivos. Incorporamos os valores da nossa cultura. Na nossa região, há séculos imperam os valores ocidentais como na maioria dos países, ainda que resistidos pelas culturas originárias e afrodescendentes.

 

 

Outra das coisas que ensinam as guerras é sobre o alcance das palavras. Jaques Lacan disse que o assunto da psicanálise era o alcance das palavras. Napoleão escreveu que "o destino de uma batalha depende de um instante, de um pensamento", mas também compartilhou que "em toda batalha chega um momento em que os soldados mais corajosos, aqueles que fizeram os maiores esforços, se sentem prontos para correr. Esse medo decorre da falta de confiança em seu valor; apenas a ocasião mais insignificante é necessária, um pretexto para devolver-lhes essa confiança; grande arte consiste em fazê-la renascer". Para devolver-lhes essa confiança, a palavra é fundamental.

 

Guerra psicológica

 

Em A Arte da Guerra, Sun Tzu já falou da importância de desmoralizar a força inimiga. Quem vai para a guerra, seguindo um general em que não confia? Gerar medo na população do inimigo, possibilita vencer sem necessidade de ir para o confronto aberto. Após os vazamentos do ex-agente de inteligência da NSA (Agência de Segurança Nacional) dos Estados Unidos, Edward Snowden, tivemos acesso aos manuais de guerra psicológica, hoje chamada "operações psicológicas", dos Estados Unidos e da OTAN. Soubemos que para fazer guerra psicológica, fazem o mesmo tipo de pesquisas que para desenvolver uma campanha de marketing: estudar a cultura local, conhecer os valores da população, suas ideias, como estão seus sentimentos, que tipo de escolhas fazem. Para que? Para operar sobre isso.

 

Assim como as diversas teorias psicológicas, psiquiátricas, psicanalíticas conseguem fazer diagnósticos a partir do que as pessoas dizem, é possível estabelecer perfis psicológicos a partir do que as pessoas escrevem. Quando falamos, quando escrevemos, deixamos à vista a forma em que está organizado nosso pensamento. Estados Unidos e Inglaterra financiaram pesquisas psicológicas para construir perfis a partir da coleta e análise de informação das redes sociais. A expressão máxima disso foi o caso do Cambridge Analytica, projeto que estudou perfis das pessoas e as respostas a determinados estímulos. Conseguiram personalizar o envio massivo de mensagens, para condicionar o resultado eleitoral nos Estados Unidos, no Brasil, no Brexit, na Argentina. Não há como negar que a mídia pode condicionar as nossas condutas, o que não significa que determina. Como já disse Lula: bateram na corrupção no PT desde 2003, mas o PT ganhou as eleições de 2006, 2010 e 2014. Foi preciso o povo perder poder aquisitivo e emprego, a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff, que o mal-estar social cresceu. A mídia condiciona, mas não determina.

 

A guerra psicológica contra as forças nacionais e populares da região, que defendem e propõem o Estado de Bem-estar social, está baseada no liberalismo extremo. Os interesses liberais ingleses, franceses, holandeses, promoveram guerras e divisões entre os nossos países há mais de dois séculos. Interesses estrangeiros não querem impedimento nenhum para explorar nossos recursos naturais à vontade. Consideram que eles não pagam direitos de exportação, estão sendo roubados. Quantas guerras teve esse continente pelas alfândegas? A mesma narrativa repete-se na região toda, mas as corporações transnacionais que tiram lucro da especulação financeira, ganharam um poder que antes não tinham. Hoje o presidente dos Estados Unidos não consegue impor sua vontade sobre Wall Street.

 

O problema dos liberais é até onde o Estado pode chegar nas suas vidas. Eles podem mexer com o público, mas o público não pode mexer com o deles. "O Estado é um perigo porque pode tirar o que é teu", dizem. Questionam: "O que eles têm que se envolver, sobre quanto você paga para um peão, isso é um assunto privado"? Os liberais são contra os sindicatos. Após o golpe no Brasil, os direitos trabalhistas foram eliminados. Ninguém mais tem direito de se envolver no acordo de patrão e empregado. "A pessoa escolhe livremente", repetem. Toda a narrativa liberal está estruturada nessa base: não mexa com o meu, o privado deve ser respeitado, cada um escolhe livremente. "Vocês são um perigo para o público", dizem aos projetos nacionais e populares que defendem os direitos da maioria.

 

A guerra jurídica contra as lideranças da região, o chamado lawfare (condensação de law, lei, + warfare, guerra) que a defesa do Lula, Valeska Teixeira e Cristiano Zanin, junto com Rafael Valim, popularizaram na região, não pode ser pensada sem levar em consideração a guerra psicológica. As lideranças são acusadas de ter desrespeitado a república, de ter cometido crimes contra o Bem superior da república, o bem comum, e financiam ataques na mídia para desprestigiar as referências políticas nacionais. Cristina Fernández de Kirchner e Lula foram acusados de chefiar uma organização criminosa, que começou, há mais de trinta anos, a desenvolver um plano para chegar ao governo para roubar. A narrativa da supremacia moral, "nós somos melhores do que eles", "eles são um perigo para a sociedade", levou a que em 2018 atirassem contra a caravana do Lula, em 2019 dessem um golpe contra Evo Morales, que teve que se exilar para garantir a vida, e que em 2022 tentassem atirar contra Cristina, felizmente a bala não saiu. O mesmo dia em que atacaram Cristina, espancaram Simón Boric, irmão do presidente chileno. Uma semana antes atiraram contra a caravana do presidente colombiano, Gustavo Petro.

 

As condições sociais nas quais o nosso povo vive são caldo de cultivo para os discursos do ódio. A maioria das pessoas está passando muito mal, e a mídia dá nome para "os responsáveis". Os Estados Unidos estão considerando o extremismo da supremacia branca como a maior ameaça à segurança interna. As faculdades de psicologia da América Latina estão formando profissionais para prevenir e combater aquilo que faz sofrer a população? As forças nacionais e populares da região entendem a importância de financiar pesquisas em psicologia, que trabalhem junto com as faculdades de ciências da computação, das ciências da comunicação, das ciências da linguagem? Se há coisa que não falta na América Latina são profissionais de ótima qualidade. É preciso que a América Latina faça um estudo aprofundado das nossas psicologias, porque nos Estados Unidos estão estudando a gente, e operando contra nós mesmos.

 

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