02 Dezembro 2008
“Direitos humanos, justiça social e democratização são preocupações da Psicologia Social da Libertação, que assume um compromisso ético e político com as maiorias oprimidas e com os movimentos de libertação da América Latina”, considera a professora Stela Meneghel, que participou recentemente do IX Congresso de Psicologia Social da Libertação que aconteceu em Chiapas, no México. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora contou as lições que trouxe dessa experiência que viveu no evento, mas também nesse espaço tão importante na história das lutas vividas na América Latina. Durante a conversa, ela também fala sobre a Psicologia Social e seu compromisso ético, além do papel da mulher no atual cenário latino-americano. “Em Chiapas, tomamos contato com um povo e uma luta de 500 anos. Uma luta que só se tornou viável pelo caráter coletivo e comunitário que representa”, contou Stela.
Stela Meneghel é formada em Medicina, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com aperfeiçoamento em epidemiologia e especialização em Saúde Pública e Terapia Familiar. Pela UFRGS, obteve os títulos de mestre e doutora em Ciências Médicas. Realizou o pós-doutorado pela Universidade Autônoma de Barcelona. Atualmente, é professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e da Unisinos. À IHU On-Line, a professora concedeu as seguintes entrevistas: Saúde pública e Violência intrafamiliar e de gênero.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Professora Stela, que lições acerca de Psicologia Social e saúde pública o congresso em Chiapas proporcionou?
Stela Meneghel – O IX Congresso de Psicologia Social da Libertação foi realizado em San Cristóbal de las Casas de Chiapas, no mês de novembro de 2008. O objetivo do encontro foi construir um espaço de troca de experiências, reflexão e práxis acerca dos desafios e possibilidades de liberação dos povos. O congresso possibilitou a reunião de uma grande diversidade de sujeitos interessados e comprometidos com o trabalho social e comunitário: participantes de movimentos sociais, indígenas, camponeses, intelectuais, estudantes, trabalhadores, ativistas, religiosos, promotores de saúde, de saúde mental, de educação, de meios alternativos de comunicação, artistas, artesãos e, segundo o Comitê de Organização do Congresso, “até psicólog@s”.
Congressos são oportunidades de repartir êxitos e fracassos, articular teoria e prática, propiciam encontros e discussões. Esse congresso possibilitou a identificação com um grupo de iguais, atores das mais diversas instituições e formações preocupados em fazer ciência para mudar a sociedade. É preciso realizar periódica e mesmo ritualmente esse tipo de encontro para recuperar as energias, para manter acesa a esperança, para lavar a alma.
O congresso aconteceu nas dependências da Universidade da Terra, onde ocorreu o entrelaçamento de experiências, pesquisas e investigações fecundadas por uma espiritualidade expressa em rituais ecumênicos maias-cristãos. “Entretejemos nuevas visiones y sus caminos resaltando las flores y los colores proprios de cada pueblo para que la vida florezca” [Novas visões e seus caminhos entrelaçados destacando flores e cores de cada próprio povo, para que a vida pode florescer] foi uma das chamadas do congresso.
O encontro foi aberto e finalizado pelo Bispo Emérito de Chiapas, D. Samuel Ruiz, que reafirmou o compromisso com a Teologia da Libertação e o respeito às culturas indígenas. D. Samuel [1] fez uma comparação entre a teologia e a Psicologia Social e disse que, retomando a idéia da Teologia e da Psicologia Social da Libertação, pensava que toda a ciência, toda a reflexão científica e toda manifestação cultural, quando é real e genuína, deve ser uma contribuição libertadora para toda a humanidade. D. Samuel tem afirmado que a Teologia ou é libertadora ou não é Teologia e afirmou, na abertura do evento, que essa lógica poderia ser aplicada também neste Congresso, pois a Psicologia Social trabalha para a libertação integral da humanidade ou não é Psicologia Social. E concluiu sua fala dizendo que o psicólogo social que não tem em seu horizonte a libertação total do ser humano, em sua individualidade ou sua coletividade, errou o seu caminho e, portanto, é melhor que busque outra profissão menos “arriscada”.
IHU On-Line – O que seria a psicologia da libertação? Que tipo de ética surge nessa nova forma de praticar a psicologia?
Stela Meneghel – A psicologia da libertação foi um termo cunhado pelo psicólogo social jesuíta Ignácio Martin-Baró [2], em 1986. Acreditava que a Psicologia Social da Libertação deveria atuar como instrumento de transformação social para servir ao grande contingente da população latino-americana em situação de miséria, abandono e desigualdade. A coragem e o posicionamento político de Martin-Baró tornou-o alvo de grupos de extrema direita, que na madrugada de 16 de novembro de 1989 invadiram a residência dos jesuítas no campus da Universidade Jose Simeón Cañas (UCA) em El Salvador e assassinaram seis professores, dentre eles Ignácio Martín-Baró. Direitos humanos, justiça social e democratização, são preocupações da Psicologia Social da Libertação, que assume um compromisso ético e político com as maiorias oprimidas e com os movimentos de libertação da América Latina.
IHU On-Line – Que respostas a psicologia da libertação pode trazer para a sociedade latino-americana contemporânea?
Stela Meneghel – A Psicologia Social da Libertação compreende um conjunto de perspectivas que têm em comum a noção de que a ciência e a psicologia não são neutras e aposta na ação política do trabalhador social quer seja o psicólogo, o sanitarista, o religioso, o militante de movimentos sociais. Essa psicologia busca entender as causas sociais dos problemas individuais, já que eles se dão dentro de um contexto histórico e social concreto. Caso contrário, reduzimos os problemas sociais a problemas individuais, medicalizando-os muitas vezes culpabilizando o doente ou a vítima pela situação em que se encontra e reforçando estruturas sociais produtoras de opressão, miséria e desumanização.
Esta concepção é de extrema importância para a América Latina, na medida em que retoma as concepções de ciência socialmente comprometida e traz para o bojo da academia os movimentos sociais, a militância política, a espiritualidade, ou seja, abre a possibilidade de atuar com outros paradigmas.
IHU On-Line – A senhora diz que uma das principais coisas que aprendeu em Chiapas é que a resistência é coletiva. De que forma esse aprendizado é importante para o Brasil de hoje?
Stela Meneghel – Eu diria que, na sociedade atual, estamos muito voltados para nós mesmos, buscando egoísta e solitariamente a realização pessoal. Em Chiapas, tomamos contato com um povo e uma luta de 500 anos. Uma luta que só se tornou viável pelo caráter coletivo e comunitário que representa. As comunidades zapatistas funcionam como uma unidade e foram gestadas em anos de silêncio, lealdade e compromisso com o grupo. Se não tivessem agido desta forma, teriam sido desbaratados. Atualmente, a região está fortemente militarizada e o governo mexicano atua em um processo de intimidação e cooptação, para dividir as comunidades.
Assim, as famílias não zapatistas recebem benesses, auxílio para reconstrução de moradias, escolas equipadas, postos de saúde. O governo aposta na defecção daqueles que não resistem ou que querem obter alguns benefícios, capturados pelas pretensas saídas individuais. O projeto utópico zapatista aposta na comunidade como espaço para compartilhar um mesmo projeto de vida. Essa intensa experiência me levou a entender o quanto os modelos de intervenção social que adotamos ainda possuem uma dimensão individual, do “salve-se quem puder”, e não percebemos o quanto estes caminhos significam despotencialização, homogeneização e empobrecimento. “A los desafíos actuales, respuestas colectivas, hasta la liberación.”
IHU On-Line – A senhora esteve num cenário muito importante para a América Latina e, embora estivesse num congresso de psicólogos, viu que além dos profissionais da área, havia representantes de outros movimentos. Podemos dizer que uma nova América Latina está se formando? Que América Latina é essa?
Stela Meneghel – Os psicólogos que adotam a perspectiva da Psicologia da Libertação têm ampliado cada vez mais os temas e as análises das realidades sociais de seus países. Eles têm trabalhado com situações novas tais como os efeitos na vida e na subjetividade das pessoas pelo uso do terror e da tortura, por situações de extrema violência e genocídio.
Há uma série de acontecimentos novos acontecendo na América Latina, como a diminuição da impunidade em vários países, a eleição de governos populares ao mesmo tempo em que ocorre intensificação da intervenção econômica e militar dos Estados Unidos em vários pontos, como no México (o Plano Puebla-Panamá), que representa um cerco militar e paramilitar às comunidades zapatistas organizadas.
Acredito que sim; vivemos um momento ímpar de organização social e democratização e acredito também que ao nos acercarmos destes movimentos podemos viver momentos de trocas e aprendizagens muito intensas. Aliás, estes foram alguns dos questionamentos que emergiram do Congresso: como acompanhar os movimentos populares, quais as tarefas prioritárias no campo dos direitos humanos, como fazer investigação social com ética e espírito de mudança, como trabalhar com as lutas de resistência.
IHU On-Line – E qual o papel da mulher nesse cenário latino-americano? Que desafios são propostos para a mulher na nossa sociedade?
Stela Meneghel – É impossível compreender o movimento zapatista e a luta dos índios de Chiapas sem falarmos da luta das mulheres. O movimento zapatista que iniciou há 25 anos se estruturou em grande parte na ação das mulheres, a partir de sua organização em cooperativas. Essas mulheres vinham de uma situação de desigualdade e iniqüidades avassaladoras. A sociedade mexicana é extremamente hierarquizada e machista. As mulheres indígenas, situadas na base desta pirâmide, viviam uma situação insustentável. Expostas a toda a sorte de violências, exploradas, roubadas, não tinham nem mesmo em suas casas uma situação de apoio: sobrecarregadas pelos trabalhos domésticos, prestando obediência ao pai e depois ao marido, que nem tinham chance de escolher, já que muitas eram forçadas a casamentos ou mesmo trocadas por algumas garrafas de aguardente, por uma vaca, por alguns presentes.
Pesquisadores consideram que a organização e a participação crescente das mulheres índias no movimento Zapatista tende a transformar as práticas no seio das comunidades. As mulheres tomam consciência dos seus direitos e reivindicam o espaço público. A sua luta é radical, pois põe em causa o sistema patriarcal assim como o capitalismo, as relações Norte-Sul e o racismo contra os índios.
Dentre as estratégias de organização que observamos em um caracol zapatista que visitamos (o caracol é sede de governo de várias comunidades, onde atua a Junta do Bom Governo, em contraposição ao mau governo central), uma das mais impressionantes é a organização da atenção à saúde. O governo mexicano não respeitou os acordos realizados em 1994 e não disponibilizou serviços de saúde aos zapatistas que vivem isolados na selva Lacandona, em regiões de difícil acesso. Assim, eles organizaram os seus próprios serviços, resgatando práticas ancestrais de usos de fitoterápicos e atenção ao parto. Na casa de saúde que conhecemos, há um ambulatório para consultas realizadas por agentes de saúde, uma ampla farmácia fitoterápica com cremes, poções, tinturas, ungüentos elaborados por estes mesmos agentes.
Uma das agentes de saúde, uma moça indígena na faixa dos 20 anos, trabalha no hospital zapatista, onde também não há médicos. Opera com ultrasom e se diz capaz de diagnosticar doenças comuns (pedras na vesícula, nos rins) e problemas na gestação, situação em que a parturiente é levada a serviços mais especializados. A maior parte dos partos é realizada por parteiras em casas de parto localizadas na comunidade. Eles contam apenas com médicos voluntários que os atendem em períodos curtos de tempo. O impressionante é que eles conseguem operar tecnologias complexas de modo eficiente e resolutivo (muitas doenças estão reduzidas e a mortalidade materna e infantil diminuíram), contando com recursos exíguos, e dando lições de integralidade e equidade: “Para todos todo”.
Notas:
[1] Samuel Ruiz García é sacerdote propagador da Teologia da libertação. Em 1959, foi designado Bispo de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas. Esta diocese se caracteriza pela pobreza e pela população majoritariamente indígena e durante anos Dom Samuel ofereceu ajuda para esse povo. Foi mediador de vários conflitos latino-americanos, em especial entre o Exército Zapatista de Libertação Nacional e o governo federal mexicano.
[2] Ignácio Martin-Baró foi psicólogo e sacerdote jesuíta espanhol, que dedicou a maioria de seus trabalhos à investigação da difícil realidade social e política de El Salvador. Foi seguidor da Teologia da Libertação e é considerado o pai da Psicologia Social da Libertação. Foi assassinado no dia 16 de novembro de 1989, juntamente com mais cinco jesuítas da Universidade Centro-Americana de San Salvador, e duas senhoras que trabalhavam na residência dos mesmos.
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Psicologia Social da Libertação. Entrevista especial com Stela Meneghel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU