05 Outubro 2007
“A cartografia é mais do que uma metodologia: é uma opção ética por acompanhar os movimentos do desejo, uma opção estética pela invenção e não pela repetição, e uma opção política por aquilo que potencializa os coletivos.” Esta foi a intenção de Bianca Sordi Stock ao desenvolver a pesquisa "Encontros na cidade: a Psicologia e os índios Kaingáng experimentando possibilidades de vida", que lhe rendeu o prêmio Silvia Lane, oferecido pela ABEP - Associação Brasileira de Psicologia. Para entender esse encontro entre a psicologia e a tribo que ocupa esse espaço urbano, a IHU On-Line entrevistou Bianca, por e-mail.
Bianca Sordi Stock é graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Atualmente, atua nas interfaces da Psicologia Social, em Processos Grupais, Arte e Educação.
Eis a entrevista.
IHU On-Line - Como foi a pesquisa "Encontros na cidade: a Psicologia e os índios Kaingáng experimentando possibilidades de vida"?
Bianca Sordi Stock - O trabalho é uma expressão da cartografia deste encontro entre a Psicologia e os índios Kaingáng, os índios no espaço urbano. No decorrer desta cartografia, que iniciou em 1999, houve também pesquisa-intervenção e de forma mais estruturada, por seis meses um grupo dispositivo com crianças e jovens de uma comunidade Kaingáng em Porto Alegre no ano de 2003. Foi preciso longo tempo para que se criasse um vínculo afetivo de confiança com a comunidade Kaingáng. A cartografia é mais do que uma metodologia: é uma opção ética por acompanhar os movimentos do desejo, uma opção estética pela invenção e não pela repetição, e uma opção política por aquilo que potencializa os coletivos.
No trabalho, são contadas essas trajetórias de forma extensiva - com a ordem cronológica dos acontecimentos; os diários de campo; a articulação com as disciplinas do curso de Psicologia - e também pelas intensidades -; as análises de implicações do grupo que participou do projeto; os agenciamentos teóricos com a Psicologia, as Artes, a Filosofia e a Antropologia; e o que se passava a cada encontro que se fazia com o coletivo Kaingáng na cidade.
Penso que não houve conclusões finais, mas sim possibilidade de abertura para outros pensares, outros modos de entender e fazer a Psicologia. Também foi possível perceber outros modos de ser índio na contemporaneidade, outros modos de habitar a cidade e potencializar a vida.
IHU On-Line - Como a psicologia pode contribuir para a preservação da identidade dos índios?
Bianca Sordi Stock – Penso que a Psicologia não deve a priori estar preocupada em preservar a identidade dos índios. Ela deve estar preocupada em produzir encontros, sobretudo com o diferente. Encontros que sejam na perspectiva da produção de outros modos de subjetivação e potencialização da vida. Vejo que hoje para as comunidades indígenas que vivem na cidade se coloca uma questão: elas não querem mais ser os índios de 500 anos atrás, contudo também não querem ser como os “brancos”. A Psicologia pode perguntar e acompanhar: o que então desejam ser? O que pode o corpo-índio?
Não é a preservação romântica de um índio idealizado, tampouco o niilismo pela perda completa de referências. É, sim, abrir possibilidades para a invenção de modos de vida singulares dos grupos indígenas no contemporâneo, a construção do presente. Isto é produção de saúde.
IHU On-Line - O que de mais interessante você viu no fato que de havia muitos índios vivendo nas áreas urbanas?
Bianca Sordi Stock - O desejo de circular na cidade, no espaço urbano. Especificamente a etnia Kaingáng carrega consigo um devir nômade e um devir de antropofagia cultural. Foi muito interessante acompanhar como isso fazia com que eles tivessem uma apropriação especial do espaço urbano e suas culturas, fazendo também que uma “Porto Alegre” completamente diferente se apresentasse aos nossos olhos. A fotografia e os outros dispositivos de arte que utilizamos com as crianças e jovens Kaingáng foram fundamentais para estas produções.
Creio que é uma riqueza cultural imensa e um importante disparador de saúde a convivência entre os mais diferentes grupos na cidade, na medida em que impele o desenvolvimento da alteridade, isto é, trata-se de um antídoto anti-intolerância e violência. Contudo, há que se ter políticas públicas que possam dar conta da dignidade, da circulação e da produção destes encontros com o diferente, para que não se repitam mais e mais formas de exclusão. Se há crianças que falam Kaingáng freqüentando a escola formal, por que não aproveitar o ensejo para que as outras crianças da turma também se aproximem desta língua, desta cultura? Este é apenas um exemplo.
IHU On-Line - Como foi unir prática e teoria nessa inserção que você fez na comunidade Kaingáng?
Bianca Sordi Stock - A proposta curricular a qual vivenciei na graduação me estimulava e exigia a todo o momento a articulação entre a vida e a teoria. O encontro com a comunidade Kaingáng começou em vista de trabalhos acadêmicos para as primeiras disciplinas do curso e teve abertura para ir lentamente se desenvolvendo nas disciplinas seguintes, como as práticas disciplinares e laboratórios grupais, além de Psicologia Social e Clínica Analítica Institucional; já mais para o final do curso, nas cadeiras de Seminário de Pesquisa. Isto também quer dizer de um modo de entender a Psicologia e a importância da supervisão e do “apaixonamento” dos docentes pelos trabalhos de seus alunos.
Na cartografia, a teoria vem logo após o vivido. A bússola do cartógrafo é a ética, e o que se produzirá é invenção. Para mim, sempre foi importante também dialogar com autores das outras áreas do conhecimento, conseguir navegar por outros mares, fazer diálogos inusitados.
IHU On-Line - O que o prêmio Silvia Lane representa para você?
Bianca Sordi Stock - Foi realmente uma surpresa. Bons ventos para a Psicologia que se quer viva, para o pessoal que está ousando fazer pesquisa de outras formas e que também está desejoso de um modo de escrita acadêmica mais literário, onde os procedimentos da escrita já exprimem seu conteúdo. Para isso, é preciso um rigor ético e aprofundamento teórico. Ainda é preciso ter a alegria de ver que a realidade das comunidades indígenas, sobretudo as que vivem nas cidades, ganhou de certa forma visibilidade e valoração através de uma entidade tão importante no cenário da formação em Psicologia como a ABEP - Associação Brasileira de Ensino em Psicologia.
IHU On-Line - Que tipo de assistência esses índios precisam?
Bianca Sordi Stock - Há as demandas básicas de toda ordem, como oportunidades e condições para moradia/terra, renda, escolarização, lazer, cultura, saúde etc. Mas, enquanto Psicologia, vejo que a demanda é pelos encontros, pela disposição de se criar uma Psicologia para cada uma das diversas realidades dos índios no Brasil, visando à promoção da saúde, da alegria, da cooperação, do empoderamento das comunidades que estão sendo engolidas pelos movimentos de homogeinização das subjetividades. Com este trabalho, pude ter contato com redes de profissionais psi e da Saúde Coletiva, articulações dos Povos Indígenas e ONGs que estão pensando a questão indígena e as práticas de saúde que atendam estas populações na rede básica de atenção à saúde e em espaços alternativos. São com estas parcerias que penso em dar continuidade às cartografias com os povos indígenas.
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O encontro entre a psicologia e os índios do espaço urbano. Entrevista especial com Bianca Sordi Stock - Instituto Humanitas Unisinos - IHU