Poder psiquiátrico e poder judicial, o caso Gianni Vattimo

Gianni Vattimo (Foto: Universitat Pompeu Fabra | Flickr CC)

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14 Junho 2021

 

"Hoje falamos de Vattimo, porque somos pessoalmente tocados pelo seu caso. Mas deveríamos falar também e acima de tudo sobre a penetração dos poderes - judiciais e outros - na vida privada dos cidadãos. Acreditamos que o caso de Vattimo deva desencadear um debate sobre a maneira como uma sociedade, que enche a boca de palavras sobre a liberdade pessoal, trata aqueles que decidem beneficiar outras pessoas de alguma forma, com base em sua exclusiva liberdade de juízo", escrevem Alessandro Dal Lago, sociólogo, e Pier Aldo Rovatti, docente e filósofo italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 12-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Mais de 50 anos se passaram desde o "caso Braibanti", a perseguição de um intelectual antifascista, antigo membro da resistência, justificada por um crime, o plágio, que foi posteriormente cancelado do código penal. Os estudos foucaultianos sobre o poder psiquiátrico e sua conivência com os sistemas punitivo, judicial e prisional datam do início dos anos 1970. Há quarenta anos morria Franco Basaglia, médico e filósofo que atuou para libertar os internos das correntes, metafóricas ou não, de uma psiquiatria opressora e punitiva.

Essa progressiva liberação do sofrimento pessoal, da marginalidade social e da independência existencial da opressão legalizada - seja judicial ou para-científica - parece uma mera memória, esvanecida como está no atual retorno de uma prática psiquiátrica ligada a concepções arcaicas da vida psíquica e baseada em psicofármacos, contenção e segregação. Isso é demonstrado pelos casos de vários centros de saúde mental no norte da Itália aos quais a administração da direita, com a contribuição decisiva da Liga, impôs diretores culturalmente reacionários, em alguns casos denunciados pelos abusos cometidos contra as pessoas das quais deveriam cuidar.

Mas isso também é demonstrado pelo retorno de uma aliança generalizada entre poder psiquiátrico e poder judiciário-inquisitivo, como fica evidente no incrível caso em que o filósofo Gianni Vattimo está envolvido.

Somos informados pelos noticiários que um companheiro de Vattimo, Simone Caminada, foi indiciado por "abuso de incapaz" depois que um psiquiatra de Torino, um tal Franco Freilone, julgou Vattimo, em uma perícia encomendada pela promotora pública Giulia Rizzo, "contornável", ou que significa, essencialmente, incapaz de juízo autônomo. O objeto do "abuso" consistiria, naturalmente, do patrimônio do filósofo, como demonstrado - segundo a promotoria - pelos benefícios econômicos auferidos por Caminada. Conhecemos Gianni Vattimo há cerca de quarenta anos, com quem colaboramos em diversas ocasiões, de "Il pensiero debole" (Feltrinelli 1983) a vários anuários filosóficos e volumes coletivos editados por Vattimo e publicados pela Laterza. Recentemente, participamos de encontros e seminários com ele. Nós o consideramos não apenas uma das mentes mais brilhantes da filosofia italiana, como também o demonstra seu grande reconhecimento internacional, mas um homem livre, bom e generoso. Suas posições a favor dos movimentos sociais de libertação, dos oprimidos e dos excluídos demonstram, além disso, uma abertura política e cultural da qual muitos pensadores, italianos e não italianos, raramente se mostraram capazes.

Recusamo-nos a acreditar que sua militância nos movimentos homossexuais e sua conhecida proximidade com a esquerda radical tenham sido determinantes no indiciamento de seu amigo e companheiro, bem como na avaliação de sua incapacidade de julgar. É realmente desconcertante, aliás, grotesco, que, no exato momento em que a editora Nave di Teseo publica sua obra filosófica completa, alguém, com base em um mandado judicial, contribua a envolvê-lo em um processo. Estamos falando de um senhor de 85 anos, que sofreu várias perdas pessoais, mas que, apesar de tudo, é muito ativo no campo intelectual. Também nos perguntamos como tantos de seus alunos e colegas, filósofos e não, que Vattimo ajudou a se firmar no cenário intelectual e midiático, estejam calados. Seria imperdoável caso se tratasse de uma espécie de realismo político, ou pior, pessoal, aplicado ao pensador e ao amigo.

Mas a questão também é outra. Acreditamos que o crime de “abuso de incapaz”, conforme definido pelo código penal, seja apenas uma variante daquela de plágio. E que principalmente comporte uma desvalorização “a prescindir” da independência pessoal que não deveria ter cidadania em uma sociedade que se apresenta como “liberal”.

Hoje falamos de Vattimo, porque somos pessoalmente tocados pelo seu caso. Mas deveríamos falar também e acima de tudo sobre a penetração dos poderes - judiciais e outros - na vida privada dos cidadãos. Acreditamos que o caso de Vattimo deva desencadear um debate sobre a maneira como uma sociedade, que enche a boca de palavras sobre a liberdade pessoal, trata aqueles que decidem beneficiar outras pessoas de alguma forma, com base em sua exclusiva liberdade de juízo.

 

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