Por: André | 12 Novembro 2013
O filósofo italiano e eurodeputado da esquerda Gianni Vattimo esteve novamente na Argentina para participar de um ciclo de conversas convidado pela Associação de Docentes da Universidade de Buenos Aires. A poucos dias na cidade, já testemunhou várias coisas: desde a vitória de Sergio Massa nas eleições na Província de Buenos Aires até a sentença da Suprema Corte declarando constitucional a Lei dos Meios de Comunicação, questões sobre as quais pode oferecer seu olhar. “Sem conflito não há liberdade”, opina sobre o panorama de “consenso” geral proposto por todos os aspirantes ao cargo de presidente em 2015. Um dos seus temas de análise é a Igreja católica e, em especial, o papado de Francisco, que avalia como muito positivo. Em meio a uma agenda apertada, a entrevista aconteceu no 23º andar do Hotel Panamericano, que oferece uma visão panorâmica da cidade de Buenos Aires. “É uma pena que já tenho que ir; está lindo vir aqui para ler”, disse, risonho.
A entrevista é de Fernando Cibeira e publicada no jornal Página/12, 10-11-2013. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
O cenário que ficou delineado a partir das eleições legislativas deixou vários possíveis aspirantes presidenciais que têm um discurso muito semelhante. Daniel Scioli, Sergio Massa, Mauricio Macri ou Julio Cobos, por exemplo, colocam que é preciso buscar o consenso, deixar para trás os conflitos, melhorar algumas coisas, mas manter outras. Como você vê esse panorama, talvez mais parecido ao europeu do que ao que tem sido habitual na América Latina durante estes últimos anos?
Eu me interessei pelo processo latino-americano, sobretudo, como um processo de emancipação do imperialismo e do colonialismo e as consequências disso. Quando todos parecem dizer mais ou menos a mesma coisa, imediatamente é bom para a paz social, mas é muito perigoso para a democracia. Isso acontece na Europa e não há diferenças. Na Itália, temos um governo que é formado por ex-comunistas e pelo pessoal do (Silvio) Berlusconi.
Que, no entanto, podem colocar-se de acordo porque as políticas não diferem muito. É isso que está acontecendo?
A política não permite muitas diferenças. Ao governo anterior ao atual na Itália chamavam-no de “técnico”. Ou seja, que era mais ou menos ditado pelos bancos e pelas instituições financeiras. Efetivamente, isto me parece perigoso para a democracia. Eu não sou um cultor do conflito, mas sem conflito não há liberdade. Um bom liberal tem que esperar que haja conflitos na sociedade.
Considera que sem conflitos não há liberdade?
Quando não há diferenças há alguém que governa. Os que têm o poder ganham quando não há conflitos e há estabilidade. Descobrimos isso agora na Europa porque há como uma queda da tensão política em todos os sentidos. De eleitores, de militantes, de dirigentes políticos. Tudo isto pode ser modificado apenas se a situação for inclusive pior, se o conflito social for muito profundo e as pessoas sofrerem. Eu gostaria de ter uma sociedade mais liberal, embora seja de esquerda.
Na linha do que você diz, dar tanta importância aos conflitos significou ao kirchnerismo a adesão de muita militância juvenil, algo que fazia tempo não se via no país.
Efetivamente, eu considero a situação argentina – embora no interior se possam ver ainda muitíssimos problemas – politicamente mais estimulante e mais viva que a situação europeia neste momento. A Europa é um cemitério, do ponto de vista das ideias. Não acontece nada e não parece que possa acontecer alguma coisa. Sempre penso se, por exemplo, as eleições passadas tivessem sido vencidas por um movimento de extrema esquerda ou de extrema direita provavelmente teria feito a mesma política econômica.
A propósito dos conflitos que o kirchnerismo colocou sobre a mesa durante estes anos, a Suprema Corte declarou constitucional a Lei dos Meios de Comunicação, o que disparou uma série de repercussões. Como você vê essa relação conflitiva, que se reproduz em outros países da região, entre os grupos de meios mais poderosos e os governos de sinal progressista e de esquerda?
Posso falar do ponto de vista europeu, mas creio que é bastante compartilhado. Vê-se uma tensão conflitiva com o poder econômico dos grandes grupos. Tivemos problemas análogos com a Fiat na Itália, por exemplo. São grandes empresas às quais os governos não conseguem impor as leis. Independentemente da situação específica da Argentina, o problema da política é a mesma. Se se impõe uma política inspirada pelos economistas, que não são deuses.
A diferença que pode haver entre uma empresa como a Fiat e um grupo como o Clarín aqui, ou a Globo no Brasil ou o El Universal na Venezuela, é que qualquer limite à sua expansão é visto como um risco à liberdade de expressão. Você nota que existe um risco de restringir a liberdade de expressão na Argentina e na região?
Eu sou mais um estatista que um privatista. Obviamente, trato de considerar as situações específicas. Na Itália o problema deste tipo não era com a Fiat, mas com Berlusconi. Se tivéssemos tido há 20 anos uma lei dos meios de comunicação como a da Argentina, provavelmente não teríamos tido Berlusconi, o que a mim, como antiberlusconiano, me parece importante. Pode ser que em um país onde não exista um monopólio tão importante como o do Clarín ninguém se imagine uma lei de meios de comunicação, mas a lei corresponde a um problema atual por uma situação existente há anos.
Já se passaram mais de seis meses do papado de Francisco e há alguns especialistas que opinam que sua gestão marca uma grande mudança que outros acreditam que é acima de tudo gestual e não de fundo. Qual sua posição?
Penso que está mudando bastante. Mas um papa é um papa, não se pode pensar que vai ser outra coisa. Mas melhor Bergoglio do que Ratzinger. Inclusive ligado à imagem que dá, porque não é só uma questão de imagem. O modo como o papa se apresenta, representa como os fiéis o sentem e vivem; assim que não é somente uma aparência exterior. Representa efetivamente algo, porque os outros papas também tinham uma aparência exterior, mas muito diferente. Eu sou um torcedor da América Latina e gosto de ter um papa latino-americano.
Embora em alguns casos seja acima de tudo gestual, lhe parece que é muito para um papa?
Creio que está agindo bem e que está fazendo tudo o que pode.
É outra pergunta, até onde pode chegar um Papa? Pode fazer tudo o que quer ou tudo o que pode dadas as circunstâncias?
Por exemplo, um consenso na Igreja para um sacerdócio feminino Bergoglio poderia permiti-lo. As mulheres inclusive são uma parte importante da Igreja formal. As freiras, as irmãs americanas, sempre lamentaram que todas as decisões fossem tomadas pelos cardeais. São elas as que dirigem as escolas, fazem as assistências, são a força da Igreja. Isto poderia mudar. Se eu fosse papa, o faria (ri).
Um dos gestos fortes do papado de Bergoglio foi quando rezou uma missa na Ilha de Lampedusa. Depois disso aconteceram ali novas tragédias com as embarcações com imigrantes que tentaram chegar à Europa. A situação não mudou nada?
Isto pode suscitar a suspeita de que a visita do Papa a Lampedusa não teve consequências políticas. Isto é verdade. Era um gesto significativo, mas não o suficiente. Os governos não o tiveram em conta para nada. Alguns governantes se precipitaram a visitar Lampedusa, mas sem mudar nada até agora. O problema dos imigrantes não é um problema só da Itália, que está muito próxima da fronteira e tem uma economia bastante fraca frente, por exemplo, à alemã. Nós temos menos imigrantes na Itália do que na Alemanha, mas sofremos mais com isso porque não há estruturas de recepção, não há formas de incorporá-los. Isto deve ser resolvido inventando alguma forma de imigração legal ou temporária, porque na Itália temos problemas em temporadas quando, por exemplo, é a temporada do tomate, que dura alguns meses. Vivemos sob a chantagem da Liga do Norte, que era aliada de Berlusconi, que segue no governo italiano. Há toda uma cultura xenófoba que acredita que a culpa de tudo é dos imigrantes. O que não é verdade. Os imigrantes pagam impostos sociais, inclusive, muitas vezes sem utilizá-los. Porque pagam impostos de segurança social e depois deixam o país.
Inclusive a força de Beppe Grillo, que se mostra como antissistema, fala contra a imigração.
O típico argumento. Grillo tem uma cultura política muito elementar, age como a Liga do Norte no começo. Me parece a parte fraca, no sentido de mau, da política de Grillo. O ponto é que para a Europa, e o mundo ocidental industrializado, a relação com o mundo de “fora” é constitutiva deste momento. É como a luta de classes de outro tempo. Quando os 85% da população mundial se darão conta de que são os outros 15% que consomem a maioria dos recursos? Aí vai acontecer alguma coisa. O problema do capitalismo ocidental é que agora se disfarça nestas questões locais, mas fundamentalmente é saber o que vai acontecer entre este mundo da abundância e o mundo da pobreza.
Voltando ao Papa Francisco, o ranking da Forbes colocou-o como a quarta pessoa mais poderosa do mundo. No entanto, foi para Lampedusa e não conseguiu que ninguém se ocupasse do problema. Esse ranking é confiável?
É como essa frase do Stalin: quantas divisões tem o Papa? Pobre, faz o que pode. É verdade que do interior mesmo da Igreja seria possível ajudar mais os pobres, há muitas estruturas físicas religiosas na Itália que estão vazias. Obviamente, eu o compreendo, assumiu toda a responsabilidade sobre uma Igreja milenar. Inclusive, se pusesse os recursos financeiros para distribuí-los também teria um problema, porque quando esses recursos acabarem e não houver mais dinheiro, o que fazer. Mas, nesse sentido, se poderia fazer algo mais.
Às vezes, inclusive aparecem notícias sobre o Papa repartindo cheques de 200 euros a pessoas que lhe expuseram casos de extrema necessidade, mas isso não parece ser uma solução para a pobreza, não?
Não, essas são questões de políticas públicas, de políticas dos Estados, inclusive de políticas europeias. Obviamente, se tivesse a solução eu já a teria proposto. Mas, por exemplo, deve organizar-se um pouco melhor a recepção dos imigrantes, evitando que sejam obrigados a imigrar clandestinamente. Porque nós, na Itália, temos uma lei antiimigrantes clandestinos que penaliza e castiga também aqueles que os ajudam. É uma das invenções mais perversas da Liga do Norte. Isso teria que acabar imediatamente.
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“Sem conflito não há liberdade”. Entrevista com Gianni Vattimo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU