Para a enfermeira, “o atendimento evoluiu e se tornou um componente essencial dos sistemas de saúde ao garantir resposta coordenada às situações de urgência e emergência fora do ambiente hospitalar”. Porém, no Brasil das contradições, nem todos têm acesso a esse serviço de excelência
Quem vive nos grandes centros urbanos talvez nem lembre mais como era a vida antes da chegada do SAMU 192. Mas, em muitas localidades, as pessoas nem sequer sabem do que se trata esse Atendimento Móvel de Urgência. É o que constatou a enfermeira Marisa Malvestio em estudos sobre o sistema. “O SAMU é um componente essencial da cobertura em saúde no Brasil, justamente porque garante a assistência às doenças agudas e na agudização de doenças crônicas, desde o local do agravo até a chegada ao atendimento definitivo”, explica na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Isso faz com que ele seja fundamental nos resultados de todo o sistema de saúde. Por essa razão, garantir que o acesso a ele seja universal, equitativo e oportuno é fundamental”, completa.
A equidade no atendimento é justamente o calcanhar de Aquiles desse sistema que chegou ao Brasil há 20 anos e que se mostra extremamente exitoso. Marisa explica que a realidade do serviço nas grandes cidades é muito diferente dos pequenos municípios. “Nos grandes centros urbanos, onde os recursos avançados e básicos são fortemente presentes, os recursos móveis cobrem áreas menores e mais populosas, em que a demanda é o fator de maior pressão. Todavia, no interior os recursos mais capilarizados são de suporte básico, que precisam se deslocar em amplas áreas geográficas, com dificuldades para chegar aos municípios menores, resultando em múltiplos municípios cobertos por um único recurso”, detalha.
Na prática, significa que esses 85% de cobertura de atendimento do SAMU 192 no Brasil ainda acontecem de forma desigual. E a enfermeira alerta: “O SAMU 192 não chegou a 1.820 municípios (32,7%), onde está 15% da população. A região norte tem o maior percentual de municípios descobertos, mas é nas regiões sudeste e nordeste, onde está o maior número de habitantes e de municípios sem cobertura. (...) Ao pensarmos sobre a eficiência na cobertura do SAMU 192 no Brasil, tendemos a acreditar que 85% de população coberta é muito. Mas quando observamos a lenta expansão e a desigualdade entre grandes centros e pequenos centros, na distribuição de recursos e na composição das forças de resposta, percebemos o prejuízo à dimensão de suficiência (ou justiça) na cobertura”, enfatiza.
Ainda assim, é impossível não reconhecer que o SAMU transformou o atendimento em saúde pública no Brasil, inclusive incidindo fortemente num avanço da qualificação de profissionais para trabalhar na área, especialmente enfermeiros e técnicos de enfermagem. Para Marisa, um dos caminhos para a ampliação das equipes passa justamente pelo que considera a necessidade de superar uma visão medicalococêntrica. “Para além do modelo brasileiro, a incorporação do enfermeiro nas equipes assistenciais, com responsabilidade ampliada sobre as decisões e a realização de procedimentos, é uma inovação já vista em outros países como Portugal, Espanha, Inglaterra, Suécia, Polônia, Austrália e EUA, com resultados efetivos em termos de cuidado, estratégia de acesso e custo-eficiência”. Isso, sem considerar que a categoria teve seu piso salarial aprovado e sancionado, mas que ainda não é uma realidade.
Outro problema a ser enfrentado é a cultura de compra por ambulâncias, que gera fotos bonitas e audiência a gestores públicos nas redes sociais, mas que, no fim das contas, os veículos acabam parados nas garagens de prefeituras e outros entes federados. “Nenhum modelo testado mostrou 100% de capacidade operacional, exceto pelo total de enfermeiros, que foi o único profissional que, segundo os modelos, estaria disponível em quantitativo adequado. Sem força de trabalho, a simples distribuição de ambulâncias é inútil”, resume.
Marisa Malvestio (Foto: Arquivo pessoal)
Marisa Malvestio é enfermeira, graduada em 1985, pós-doutoranda na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – USP, onde também realizou mestrado e doutorado. Possui MBA em Gestão em Saúde pelo Centro Universitário São Camilo, onde concluiu a Especialização em Administração Hospitalar. Atuou como enfermeira na Prefeitura de São Paulo, de 1988 a 2021. Foi consultora técnica da Coordenação Geral de Urgência e Emergência do Ministério da Saúde entre 2009 e 2018. Além de professora convidada do Centro Universitário São Camilo, é editora-chefe da recém-lançada Revista Chronos Urgência, também revisora das revistas RLAE, REBEN, REEUSP, Acta Paulista e colunista da Revista Emergência. Entre seus livros publicados, destacamos: Atuação no trauma: uma abordagem para a enfermagem (Atheneu, 2008).
IHU – O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU, foi o primeiro fruto da Política Nacional de Urgências criada em 2003. No que consiste essa política e quais os avanços na saúde pública desde sua implantação?
Marisa Malvestio – A Política Nacional de Urgência – PNAU surgiu da necessidade de organizar a atenção às urgências que era centrada na atenção hospitalar, com longos tempos de espera por atendimento e maus resultados de saúde. Seu objetivo principal foi estruturar uma rede de serviços regionalizada de cuidados às urgências, tendo como marcos:
• a regulação para garantir o adequado referenciamento dos pacientes;
• o financiamento federal como indutor da atenção integral, com modelos de serviços hospitalares e não hospitalares;
• a regionalização com distribuição de recursos assistenciais;
• a qualificação e capacitação dos profissionais.
Podemos dividir a construção dessa política em quatro fases até o período atual:
• o desenvolvimento dos marcos legais até 2003;
• o desenvolvimento do SAMU 192 até 2008;
• a implantação das UPAs a partir de 2009;
• também, como uma nova fase, a implementação da rede de atenção às urgências que, em 2011, veio para vencer a fragmentação que ainda se perpetuava. Com a rede de atenção às urgências, espera-se uma melhor organização da assistência, com diferentes pontos de atenção (por exemplo UPA, SAMU e atenção básica), fluxos e as referências adequados, buscando uma maior articulação.
O componente pré-hospitalar, representado pelo SAMU 192, foi o primeiro componente da política a ser implementado, principalmente pela aposta que foi feita nas centrais de regulação, das quais se esperava um papel de observatório e referenciamento para diferentes componentes... que jamais foi alcançado, justamente porque o volume de demanda de urgências era tão grande que não foi absorvida na velocidade e na quantidade esperada.
Embora os desafios sejam muitos e embora possamos fazer mais e melhor ainda, a Política Nacional e a implementação da rede de urgência fizeram com que o atendimento de urgência chegasse aos cidadãos, levando linhas de cuidado para os principais agravos relacionados à morbimortalidade típica e cuidados em promoção e prevenção. Além disso, as políticas construíram pontes entre os três níveis de gestão e fomentaram o cuidado interdisciplinar em uma gestão mais longitudinal e centrada nas necessidades dos pacientes.
São milhares de ambulâncias do SAMU, milhares de unidades básicas de saúde e centenas de Unidades de Pronto Atendimento – UPAS que hoje atendem emergências dentro de suas competências. Para que isso acontecesse, milhares de profissionais se especializaram no atendimento às urgências e emergências e, hoje, fornecem cuidado seguro e adequado.
IHU – O que compõe uma equipe do SAMU e como funciona o serviço? Para que tipo de atendimento ele se destina?
Marisa Malvestio – No Brasil, com a implementação da Política Nacional de Atenção às Urgências, foi estabelecido um modelo de Atendimento Pré-Hospitalar – APH móvel que segue a estrutura básica de modelos de todo o mundo:
• dígito telefônico nacional para acesso (192);
• central de regulação das urgências;
• modalidades assistenciais em dupla camada representadas pelo Suporte Básico de Vida – SBV e o suporte avançado de vida, para as quais foram definidos a composição de profissionais e os parâmetros de treinamento;
• unidades móveis com equipamentos padronizados, dispostos em bases descentralizadas posicionadas em pontos estratégicos nos territórios cobertos.
No ambiente público, sob esta estrutura, foi criado o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192), com duas atividades assistenciais:
1. Atendimento às urgências e emergências pré-hospitalares, cujo objetivo é chegar precocemente à vítima, realizando o atendimento necessário e o transporte às unidades de saúde, para continuidade da assistência.
2. Transporte entre unidades de saúde para pacientes em situação de urgência que necessitam de assistência de maior complexidade.
Como elemento central do SAMU 192, cabe à Central de Regulação das Urgências – CRU garantir escuta e acolhimento da demanda, recepcionando as solicitações de atendimento que chegam pelo dígito 192, para, em seguida, estimar o grau de prioridade e desencadear a resposta adequada, seja uma orientação ou o envio de Recursos Móveis – RM. À CRU cabe monitorar e apoiar a equipe de atendimento na abordagem do paciente, definindo o encaminhamento à unidade de saúde.
A modalidade de suporte básico é ofertada em unidades móveis terrestres e aquaviárias, onde atuam um condutor e um técnico ou auxiliar de enfermagem. Para o suporte avançado, há recursos terrestres, aquaviários e aeromédicos, que são tripulados por médico, enfermeiro e condutor/piloto. Nessa estrutura, para casos graves, é desencadeada uma resposta dupla com recursos avançados em apoio aos básicos, conforme decisão da regulação.
O atendimento pré-hospitalar evoluiu e se tornou um componente essencial dos sistemas de saúde ao garantir resposta coordenada às situações de urgência e emergência fora do ambiente hospitalar, com acesso 24 horas a cuidados em saúde, incluindo nos desastres, além de transporte para unidades da rede de saúde. Um sistema de atendimento pré-hospitalar consistente pode auxiliar na redução da morbimortalidade por diferentes agravos, principalmente aqueles tempo-dependentes, maximizando os resultados de todo o sistema de saúde.
IHU – Como avalia os serviços do SAMU nesses 20 anos? No que avançamos e no que ainda precisamos avançar?
Marisa Malvestio – O SAMU é um componente essencial da cobertura em saúde no Brasil, justamente porque garante a assistência às doenças agudas e na agudização de doenças crônicas, desde o local do agravo até a chegada ao atendimento definitivo. Isso faz com que ele seja fundamental nos resultados de todo o sistema de saúde. Por esta razão, garantir que o acesso a ele seja universal, equitativo e oportuno é fundamental.
Se o SAMU for bem distribuído, ele terá resultados relevantes e custo-eficientes na abordagem das urgências, principalmente em agravos sensíveis ao tempo, como o trauma, as doenças respiratórias e cardiovasculares, as infecções, as complicações desde a gestação até o período perinatal e, também, nos transtornos em saúde mental. Não podemos esquecer que o SAMU é importante também na resposta a desastres e a diferentes emergências de saúde pública, como foi no caso da pandemia de covid-19. Entretanto, esses resultados podem variar, se as condições de organização, cobertura e distribuição de recursos forem variáveis e é nisso que precisamos avançar.
Veja como os números são impressionantes:
• De 2015 a 2019, o SAMU realizou de 116,8 milhões de procedimentos.
• As centrais de regulação chegaram a atender mais de 20,2 milhões de chamadas telefônicas e realizar mais de 3,4 milhões de orientações em 2017.
• As ambulâncias, motos, embarcações e aeronaves atenderam mais de 4 milhões de pacientes por ano.
Precisamos avançar no dimensionamento, no controle e na avaliação. O SAMU faz muito e pode fazer muito mais. E melhor.
IHU – Segundo seu levantamento, o SAMU assiste 85% da população em 67,3% dos municípios. Qual é o perfil desses municípios e como é o perfil dos que não são assistidos pelo serviço?
Marisa Malvestio – Podemos agrupar algumas informações nesse campo:
• Há cenários diferentes no interior e nas capitais. Nos grandes centros urbanos, onde recursos avançados e básicos são fortemente presentes, os recursos móveis cobrem áreas menores e mais populosas, em que a demanda é o fator de maior pressão. Todavia, no interior os recursos mais capilarizados são de suporte básico, que precisam se deslocar em amplas áreas geográficas, com dificuldades para chegar aos municípios menores, resultando em múltiplos municípios cobertos por um único recurso.
Para um serviço com características singulares, que combinam “incerteza na demanda” e necessidade de “mover-se na direção” e com um “resultado tempo-dependente”, cobrir áreas muito extensas pode ser um caminho para o fiasco, com tempos de espera muito longos, baixa produção e péssimos resultados de sobrevivência para os pacientes.
• O SAMU 192 não chegou a 1.820 municípios (32,7%), onde está 15% da população. A região norte tem o maior percentual de municípios descobertos, mas é nas regiões sudeste e nordeste onde está o maior número de habitantes e de municípios sem cobertura. A região sudeste se destaca por possuir mais de 13,6 milhões de habitantes descobertos, dispostos em 575 municípios. A cobertura na região sudeste exigirá uma política que aborde 30 cidades acima de 100 mil habitantes e, ao mesmo tempo, 288 (50,1%) municípios abaixo de 10 mil habitantes.
IHU – Qual é o perfil dos atendimentos do SAMU? Podemos perceber variações nesses tipos de atendimento de estado para estado?
Marisa Malvestio – Meus estudos não avaliaram perfil de atendimentos, pois esses dados não são centralizados em bancos abertos, fontes em que pesquisei. Há estudos locais e regionais sobre isso. Eu me debrucei sobre a evolução da produção de atendimentos e transportes, para entender o cenário macro da produção do SAMU e seus desafios do futuro.
Nesse sentido, é possível observar que houve uma elevação sustentada e expressiva na demanda e na produção de procedimentos pelo SAMU de 2015 a 2019. As taxas observadas excederam os índices de crescimento de população coberta e recursos distribuídos. Esse é um fenômeno preocupante que vem sendo percebido em países como Itália, Suíça, China, França, Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e Turquia, sendo associado a tempos de resposta mais longos, atrasos no atendimento a pacientes críticos e sobrecarga das unidades hospitalares, afetando negativamente a sobrevivência dos pacientes e os resultados do sistema de emergência como um todo. Essa é a visão macro que precisa ser enfrentada.
Ainda que esses países apresentem condições demográficas e sociais distintas, bem como seus sistemas de saúde possuam diferentes características e estejam em diferentes fases de desenvolvimento, seus modelos de atenção pré-hospitalar possuem a mesma estrutura básica, tornando as comparações valiosas na análise do progresso do modelo brasileiro.
IHU – Por que isso está acontecendo aqui e em todo o mundo?
Marisa Malvestio – Essa é a principal questão para entender os desafios.
Além do impacto óbvio do crescimento populacional e da ampliação da cobertura e acesso ao SAMU 192 no Brasil, estudos avaliam que as possíveis causas para essa elevação na demanda e na produção pré-hospitalar incluem aspectos demográficos, epidemiológicos, socioeconômicos e relacionados à organização do sistema de saúde, como:
• o envelhecimento da população e o decorrente aumento de comorbidades que geram demanda por atendimento;
• o acesso insuficiente ao cuidado médico e/ou à atenção primária, principalmente fora dos centros urbanos;
• a dificuldade de a atenção primária gerenciar os agravos de urgência sensíveis em seu nível, tornando o Atendimento Pré-Hospitalar – APH a principal opção de acesso às portas de urgência, mesmo na baixa complexidade;
• a maior conscientização da população sobre a importância do cuidado à saúde, o que gera expectativa e procura por serviços;
• a prevalência de história de doença mental e/ou abuso de substâncias;
• por fim, desvantagens socioeconômicas e educacionais que resultam em migração da assistência privada para a pública ou que exigem maior suporte social, como as observadas em minorias, idosos que moram sozinhos ou cidadãos com acesso limitado à transporte, além de residentes rurais e outras populações vulneráveis.
De fato, os indicadores populacionais e os benchmarkings avaliados revelaram tendências como as variações de demanda e produtividade entre regiões e estados, alta demanda associada à alta produção em áreas populosas, forte presença das modalidades de Suporte Básico de Vida – SBV e a elevação absurda dos transportes realizados pelo SAMU, principalmente no interior, em virtude do processo de regionalização em saúde. Estas tendências estão relacionadas a diferenças demográficas, geográficas ou de disponibilidade de recursos de saúde em diferentes níveis.
IHU – Na sua pesquisa, foi detectada uma desigualdade nos atendimentos do SAMU. Que desigualdade é essa e como a podemos compreender?
Marisa Malvestio – Em meu estudo sobre a cobertura do SAMU, analisei o conceito de cobertura e seu desempenho em duas dimensões: eficiência (cobertura populacional expressa pelo percentual da população que é considerada coberta) e suficiência ou justiça (igualdade e equidade no acesso ao serviço quando necessário e com qualidade em todo o país). Descobrimos que diferenças demográficas, geográficas ou de disponibilidade de recursos de saúde em diferentes níveis, inclusive do SAMU, estão afetando a cobertura.
Ao pensarmos sobre a eficiência na cobertura do SAMU 192 no Brasil, tendemos a acreditar que 85% de população coberta é muito. Mas quando observamos a lenta expansão e a desigualdade entre grandes centros e pequenos centros, na distribuição de recursos e na composição das forças de resposta, percebemos o prejuízo à dimensão de suficiência (ou justiça) na cobertura. Se cidadãos do interior têm mais dificuldade em ser atendidos oportunamente e mais raramente são atendidos por equipes de suporte avançado, pois há uma concentração dessas equipes em grandes centros, descortina-se o desafio de viabilizar o acesso universal, oportuno, equitativo e seguro para todos.
Se o foco do atendimento pré-hospitalar é chegar oportunamente para enfrentar a morbimortalidade por agravos tempo-dependentes, não vamos conseguir alcançar esse objetivo em todo o país.
IHU – Como superar essa desigualdade?
Marisa Malvestio – No atendimento pré-hospitalar, o “tempo até o cuidado adequado” influencia o resultado de saúde e, assim, “cobertura e acesso” ganham novas dimensões e interagem de maneira pragmática. A “cobertura” de um serviço de APH não envolve apenas a disponibilidade territorial do serviço, mas associa “disponibilidade em tempo adequado”. Já o “acesso oportuno” associa “cuidado adequado em tempo adequado”. Para um ótimo APH, é preciso explorar soluções que garantam acesso oportuno ao cidadão e não apenas cobertura.
Experiências e entidades internacionais apontam estratégias para o planejamento da cobertura do SAMU 192, com eficiência e suficiência:
• Estabelecer critérios específicos de implementação pautados em indicadores (epidemiológicos, demanda e tempo-resposta) associados a critérios verticais, que combinem políticas, necessidades e oferta assistencial, na busca de equilíbrio na distribuição de recursos móveis pelo país.
• Buscar viabilidade operacional e eficiência, reavaliando a distribuição dos recursos já distribuídos, utilizando análise geoespacial associada a um indicador de tempo-resposta, reposicionando ou acrescentando recursos, se indicado.
• Ajustar a polarização existente entre as competências em saúde disponíveis no Suporte Básico de Vida – SBV e no Suporte Avançado de Vida – SAV, aplicando estratégias assistenciais em diferentes camadas, com novos padrões de serviços intermediários para reduzir ineficiências e ampliar a capacidade da primeira equipe que chega no paciente. A implementação de competências em saúde no modelo assistencial pode ampliar a capacidade de resposta e reduzir a necessidade de resposta dupla.
• Introduzir veículos rápidos para deslocamento de médicos a fim de otimizar a atuação desses profissionais, aumentando a rotatividade de viaturas e melhorando o tempo-resposta.
• Buscar integração vertical com outros órgãos, para viabilizar investimentos em infraestrutura, como transportes, comunicação e informação, beneficiando o desenvolvimento de novos polos e a oferta de serviços de saúde.
• Buscar integração horizontal, com agências de mesma vocação, para otimizar a cadeia produtiva, reduzindo custos e ampliando a capacidade de resposta.
• Incentivar e apoiar remotamente o cuidado iniciado por familiares, agentes de saúde, líderes locais e agentes policiais com orientações da central de regulação do SAMU.
• Ampliar a base de dados nacional, incluindo perfil de atendimentos, tempo-resposta e resultado de saúde dos pacientes atendidos, para fortalecer a base de evidências no delineamento de indicadores e padrões assistenciais.
IHU – Hoje, qual a maior fragilidade do SAMU? E como enfrentá-la?
Marisa Malvestio – A maior fragilidade talvez seja a insuficiência de profissionais, que faz com que ambulâncias fiquem paradas e não cumpram sua finalidade. Em meu estudo sobre a força de trabalho do SAMU, analisei modelos de projeção de capacidade operacional, considerando os profissionais disponíveis em todo o país. Os modelos revelaram o seguinte:
• No Suporte básico, com os profissionais disponíveis, seria possível operar até 67,0% dos recursos, portanto falta pessoal para mais de 30% das ambulâncias.
• no SAV, o quantitativo de médicos projeta uma operação de até 36,5% dos recursos apenas.
Essas taxas podem variar em relação à carga horária dos profissionais, mas nenhum modelo testado mostrou 100% de capacidade operacional, exceto pelo total de enfermeiros, que foi o único profissional que, segundo os modelos, estaria disponível em quantitativo adequado. Sem força de trabalho, a simples distribuição de ambulâncias é inútil.
IHU – Em que medida a implantação do SAMU também contribuiu para o desenvolvimento e qualificação de profissionais da área da saúde nos serviços de urgência e emergência?
Marisa Malvestio – Você já percebeu que há enfermagem em 100% das unidades móveis e na produção de 100% dos procedimentos do SAMU? Imagine quanto investimento em formação e qualificação foi necessário para isso.
A escolha da enfermagem como ativo do modelo pré-hospitalar brasileiro, bem como sua alta presença e participação, é um fenômeno que reflete a expansão dessas diferentes categorias na força de trabalho em saúde no Brasil desde a década de 1990. Nessa época, a partir da implementação do SUS, houve um fomento à abertura de serviços e a implementação de políticas de formação de pessoal técnico que, em conjunto com a expansão de cursos de graduação na iniciativa privada, resultaram em alta disponibilidade e capilaridade dos profissionais de enfermagem, gerando um cenário positivo para a expansão do SUS e seus serviços, despertando uma nova tendência no mercado.
Atualmente, o cenário nacional demonstra contínua expansão de técnicos e enfermeiros, com redução de auxiliares de enfermagem, contexto que repercute no SAMU e revela tendências no uso das competências em enfermagem.
Por exemplo, são marcantes a presença e a expansão quantitativas dos enfermeiros no SAMU. Por quê?
Esses profissionais, apoiados em avanços da tecnologia em saúde e na normatização de seu exercício profissional, vivenciam, hoje, uma expansão de seu papel gerencial e assistencial com incorporação de prerrogativas no manejo de vias aéreas e utilização de medicamentos sob protocolos e regulação médica, que caracterizam uma responsabilidade ampliada sobre as decisões e a realização de procedimentos. Isso é uma inovação trazida pelo desenvolvimento das políticas de urgência que já é vista em outros países.
IHU – A senhora é uma profissional da enfermagem. Como analisa as condições de trabalho, incluindo remuneração, desses profissionais no país?
Marisa Malvestio – Temos muito a melhorar. Há locais com condições precárias de trabalho que afligem a segurança assistencial e a segurança profissional. Isso é inaceitável sob inúmeros pontos de vista.
Observo editais de concurso público e oportunidades de emprego em instituições privadas que atentam contra a lógica. Essas situações são inaceitáveis e devem ser enfrentadas pelas entidades de representação com extremo rigor.
IHU – Aprovado pelo Congresso e sancionado pelo Executivo, o piso da enfermagem ainda não é uma realidade. O que isso revela sobre a atenção aos profissionais de saúde do país?
Marisa Malvestio – Descaso e desvalorização demandados por uma cultura medicalocêntrica e de naturalização da desvalorização das profissões da saúde.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Marisa Malvestio – Apesar da belíssima trajetória do SAMU 192 na história do SUS, com reconhecimento pela população e amplo percentual de cobertura informado, o acesso oportuno ao cuidado de urgência permanece fora do alcance para milhões de pessoas. As dificuldades são políticas, econômicas e derivadas do modelo escolhido. Há uma necessidade urgente de ampliar sua cobertura, viabilizando o serviço em cidades menores, mas há também a necessidade de garantir segurança assistencial, ampliando a capacidade resolutiva das equipes disponíveis.
Uma das grandes oportunidades é ampliar a participação do enfermeiro no APH que, hoje, está restrita à composição das equipes de atendimento avançado e da coordenação da equipe de enfermagem. Considerando as competências e prerrogativas profissionais que podem ser incorporadas, a introdução do enfermeiro como 3.º componente nas equipes de suporte básico ajustaria a polarização existente entre as competências em saúde disponíveis no SBV e no SAV, compatibilizando a capacidade da equipe às necessidades dos pacientes.
Nessa composição, já reconhecida pelas resoluções do Conselho Federal de Enfermagem n. 988/2022 e n. 713/2022, alcança-se uma melhor capacidade de avaliação com pouca incorporação tecnológica, viabilizando a realização segura de orientações, manejo de via aérea, procedimentos de acesso circulatório e administração de medicamentos em situações restritas por regulação, telemedicina e protocolos, visando à estabilização de pacientes de maior complexidade e, assim, uma potencial melhoria na atenção a agravos crônico-agudizados e tempo-dependentes.
A maior participação do enfermeiro na assistência pré-hospitalar brasileira pode ser uma grande ferramenta de acesso oportuno, expandindo quali-quantitativamente o modelo de atenção nos grandes centros e nas áreas rurais e remotas e, também, ampliando a satisfação das expectativas e necessidades do usuário, resultando em impacto para o cidadão e para o sistema de saúde.
Para além do modelo brasileiro, a incorporação do enfermeiro nas equipes assistenciais, com responsabilidade ampliada sobre as decisões e a realização de procedimentos, é uma inovação já vista em outros países como Portugal, Espanha, Inglaterra, Suécia, Polônia, Austrália e EUA, com resultados efetivos em termos de cuidado, estratégia de acesso e custo-eficiência.