Livro “Nas entranhas da atenção primária à saúde” transporta leitores a um mundo tão pouco conhecido quanto fascinante, no coração do Brasil. Gastão Wagner, um de seus organizadores, sustenta: o apoio popular a esta rede, e sua capilaridade, derrotarão Bolsonaro.
Um moleque ousado, para usar sua própria caracterização, o médico de saúde pública Gastão Wagner embarcou, em 1991, em uma aventura e tanto – tornando-se, em Campinas, um dos pioneiros na implantação do Sistema Único de Saúde. E seu périplo, três décadas mais tarde, e longe de terminar, continua a esbanjar ousadias. Como demonstra o livro organizado por ele e outros três médicos lançado dia 25/11. Em entrevista a Outra Saúde, ele revela um pouco do universo invisível e fascinante da atenção primária.
Pode-se dizer que a atenção primária, ao somar o trabalho cotidiano de dezenas de milhares de profissionais, enraíza o SUS na sociedade brasileira e é responsável por seus resultados singulares, celebrados mundialmente. O livro, conta Gastão, é resultado de uma intervenção direta da universidade – no caso, a Unicamp – nessa vasta teia de atuação do SUS. Com 44 autores, seus textos são a elaboração do trabalho decorrente de um curso oferecido na Unicamp para profissionais de atenção primária do SUS. “A gente chama de ‘educação permanente dos profissionais do SUS’, e especificamente da atenção primária”, diz Gastão. E “usa uma metodologia heterodoxa: um curso centrado na discussão da prática, na discussão de casos”.
São casos clínicos, casos de saúde pública, problemas comunitários de saúde, e a teoria vai sendo acoplada à discussão da prática. Publicado pela Hucitec, o livro tem três outros organizadores: o psicólogo Felipe Guedes, a médica de família Lilian Terra, e a psicóloga Mônica de Oliveira. Nessa autêntica viagem pela realidade nacional, os professores depararam, relata Gastão, com “o que a gente chamou de problemas emergenciais da atenção primária”. “Por isso o nome de ‘entranhas’, porque a gente foi lá no fundo. E o que emergiu foi uma mistura de violência com situações específicas de saúde."
Cpa do livro "Nas entranhas da atenção primária à saúde: formação e prática" | Felipe Guedes, Gastão Wagner de Sousa Campos, Lilian Terra, Mônica Oliveira Viana (orgs.) (Foto: Hucitec Editora)
O tema da violência emergiu com muita força, na dimensão doméstica, comunitária, educacional. De um ponto de vista leigo, assusta descobrir que seja parte da formulação de políticas públicas de saúde pensar a violência associada ao narcotráfico, ao alcoolismo, a mães grávidas com dependência de drogas, a violência da desigualdade, do racismo e do machismo, da velhofobia, da transfobia, do patriarcalismo. No entanto, a reflexão teórica sobre a relação da atenção primária com essa paisagem inóspita impõe-se. E o mais surpreendente é que daí também surjam transformações inesperadas da realidade nacional.
Isto é, das duras condições em que a política de saúde é imaginada e praticada no Brasil, também se extraem forças para construir um país muito diverso. O SUS introduziu uma tradição incomum de gestão participativa. “Que não resolve tudo”, pondera Gastão. Mas que foi capaz de criar uma forma diferente de entender e executar a política pública, ao menos na área de saúde. “Por exemplo, toda política de saúde tem que ser aprovada de forma tripartite. Tem que ser aprovada pelos secretários estaduais, municipais e pelo governo federal”.
Isso faz toda a diferença, argumenta o especialista, exemplificando por meio das decisões destrutivas do presidente Jair Bolsonaro. “Ele fechou quase tudo na educação, na ciência”, diz ele. “Conseguiu paralisar o ministério da Saúde mas não paralisou o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde). Essa situação paradoxal também se estendeu às diretrizes para a atenção primária. O ministério não é onipotente. Já não era antes e é menos agora. A Damares Alves [ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] pode estar dando curso para gestores. Só que nós também estamos dando, aqui na Unicamp”.
Formado pela Universidade de Brasília, Gastão fez residência em clínica médica e veio fazer saúde pública na Faculdade de Medicina da USP. É professor na Unicamp há 33 anos. Foi secretário da saúde de Campinas, no começo do SUS, em 1990, e novamente, na virada do milênio. Em seguida esteve dois anos no ministério da Saúde, no primeiro governo Lula, como secretário-executivo.
A entrevista é de Flávio Dieguez, publicada por Outra Saúde, 29-11-2021.
Você poderia contar como foi feito o livro que você está lançando, como um dos coordenadores, “Nas entranhas da atenção primária à saúde”?
Esse livro, que tem o título curioso de “Nas entranhas da atenção primária”, é produto de uma intervenção que nós, do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, fizemos no SUS. A gente tem uma tradição grande de parcerias com o SUS, e uma delas é na formação: a gente chama de “educação permanente dos profissionais do SUS”. E, especificamente, da atenção primária. É um curso longo, dura um ano, toda semana, quatro horas. Usa uma metodologia heterodoxa: um curso centrado na discussão da prática, na discussão de casos. Casos clínicos, casos de saúde pública, problemas comunitários de saúde, e a teoria vai sendo acoplada à discussão da prática.
Esse curso é oferecido para as equipes – especificamente para as equipes de atenção primária, de saúde da família. De várias cidades do estado de São Paulo, outras de Minas Gerais. Então a gente teve um número grande de alunos – são 340 alunos e alunas. Nós éramos 20 professores da Unicamp, alguns especializados em saúde da família, atenção primária, médicos, e outros com especialidades duplas, para compensar. Especializados em saúde coletiva, prevenção e saúde mental, que é um problema muito frequente na atenção primária.
O livro, então, reconstitui a prática efetiva dos profissionais da atenção primária e, ao mesmo tempo, o aprendizado que eles têm na universidade?
Sim, e o curso teve uma adesão muito grande, e uma avaliação muito boa das equipes, dos gestores do SUS das várias cidades. Cada cidade indicou um um professor também, uma pessoa com experiência para compor a equipe docente, inicialmente formada por duplas. De modo que na verdade nós acabamos trabalhando com trios – éramos trinta professores. As turmas eram pequenas porque a gente dividiu aqueles 340 alunos em 20 turmas de 16 a 20 vinte alunos cada. Um trabalho muito bem feito. E o livro, de fato, tem 44 autores: médicos, enfermeiras, psicólogas.
O livro tem três partes. A mais importante é um relato analítico, crítico, dos casos que eles trouxeram e nós discutimos. Em geral, são casos complexos, difíceis de serem resolvidos, que envolvem a família inteira, a comunidade. A segunda parte do livro é exatamente sobre isso, um comentário sobre o que a gente chamou de problemas emergenciais da atenção primária. Por isso o nome de “entranhas”, porque a gente foi lá no fundo. E o que emergiu foi uma mistura de violência com situações específicas de saúde – como uma idosa que tem hipertensão e que vive num domicílio que tem violência doméstica contra mulheres.
O tema da violência emergiu com muita força, inclusive violência doméstica, mas também a violência comunitária, na rua, nas escolas. Muitos casos de professoras do ensino médio, do ensino básico, com problemas de violência perpetrada por alunos ligados ao narcotráfico. Não só de comportamento agressivo, mas casos cruzados com alcoolismo, crack, anfetaminas, mães grávidas com dependência de drogas. Esses são os problemas da periferia, no Brasil – as “entranhas”. Quer dizer, para lidar com a saúde você tem um problema muito mais sério, o que a gente chama de problemas interseccionais.
Do ponto de vista prático, pode-se dizer que o livro faz, de alguma maneira, um diagnóstico, tenta compreender e apontar estratégias pra lidar com essa situação complexa que envolve e se mistura com questões propriamente de saúde?
Na terceira parte do livro, menor, se faz uma reflexão teórica sobre o papel da atenção primária no Brasil. Essa relação com a desigualdade, com o racismo e com o machismo, que foi outro problema emergente, dessa violência ligada à velhofobia, transfobia, patriarcalismo. Aí a gente tem uma parte que a gente reflete com outros autores que são convidados – por isso, são 44 escritores. Dois terços são profissionais da rede, que fizeram o curso na universidade, um curso de especialização, pós-graduação. Vários deles têm formação, residência em medicina de família e em saúde mental.
A gente também trabalhou muito o tema da violência com as assistentes sociais do SUAS (Sistema Unificado de Assistência Social), que é quem lida com isso cotidianamente. As assistentes sociais estão na periferia também. A gente foi buscando estratégias na função da Saúde, de fortalecer – os canadenses falam ‘empoderar’ – as vítimas, as pessoas envolvidas no machismo, no racismo, na violência doméstica. Para então poder lidar com esses problemas e fortalecer as pessoas que tem problemas crônicos de difícil controle.
A metade dos que têm diabetes – 40% das pessoas que vivem com diabete, que são 15% dos adultos – tem que usar insulina, tem que mudar a alimentação, tem que aprender a controlar a si mesmo porque o stress agrava diabetes. É uma vida muito difícil. Então a gente trabalha com uma abordagem psicopedagógica, vamos dizer assim. Como é que se vive sendo diabético ou vivendo com tratamento de um câncer difícil? Parte disso, o tratamento, fica nos hospitais, parte fica na atenção primária.
Até que ponto existe na atenção primária o problema de carência material – como disponibilidade de insulina?
Insulina temos bastante. O SUS comprou, e apesar de Bolsonaro ter atrapalhado as compras do ministério da Saúde, a gente continua com uma boa distribuição de insulina. O ministério perdeu agora – conforme uma denúncia importante da Folha de São Paulo – dois milhões de doses de insulina. Mas tem uma dimensão desse nosso curso, desse nosso trabalho, que é política. Política em defesa do SUS, institucional.
Como assim?
A gente tem muito problema de ambiência: a infraestrutura das unidades básicas é muito ruim. A gente tem problema de um rodízio muito grande, uma dificuldade de preenchimento das equipes, particularmente de universitários, de médicos. E não só. Na atenção básica essa dificuldade também é de psicólogo, fisioterapeuta, educador físico. Na estrutura de pessoal a gente tem problema e na estrutura física de equipamentos. E também de alguns medicamentos, às vezes a gente tinha dificuldades. Mas alguns medicamentos foram priorizados pelo SUS há muitos anos e ainda mantém uma boa compra. No caso dos exames complementares – a atenção primária requer muitos exames – e alguns têm fila, como endoscopia, ou biópsia. Mas aí a equipe luta por isso, sabe? Pressiona, modifica a regulação.
Outro ponto interessante é a possibilidade de se criarem medidas de aprimoramento, como por exemplo na área da informação. Em Niterói, para citar um município, se considera que é possível ter bons retornos nesse campo. O que você acha?
Bom, a atenção primária no Brasil já era para ter prontuário eletrônico, né? Já era para estar informatizada. Com os prontuários conectados, ligados com os prontuários do pronto-socorro, dos hospitais, dos serviços especializados, dos CAPs de saúde mental. Isso não custa muito. O Brasil tem dinheiro. O que não tem é competência pra fazer a integração. O SUS é muito fragmentado. Seria preciso juntar o ministério com as secretarias estaduais, municipais, para ter uma política de informatização, a começar pelo prontuário eletrônico. Portugal fez, a Espanha fez, a Inglaterra está fazendo. Os países que têm sistemas nacionais públicos têm essa informatização.
A gente tem muita dificuldade. É tudo de papel ainda. O centro de saúde tem aquelas bibliotecas de prontuários que parecem do século dezenove. Alguns lugares estão fazendo a informatização. Niterói, Florianópolis também, e Campinas. Com celulares com um chip, a equipe de saúde da família pode fazer a gestão do acesso. Não pela fila, pelas salas de espera de quatro horas. O celular rodizia: fala, ‘você vem hoje, você vem outro dia’. Ou ‘não, nós vamos te visitar, não vem não, fica aí’. Então, isso ainda não é uma diretriz, e precisa ser feito.
Agora, existe outra carência – eu falei da de pessoal. E o fato é que o número de equipes é insuficiente para atender as pessoas que usam o SUS regularmente: 75% dos brasileiros usam o SUS regularmente. Ou porque não têm convênio ou porque no SUS tem coisa que convênio nenhum tem. Nem os cinco estrelas, por exemplo, garantem insulina pra diabético, ou antirretrovirais, que custam uma fortuna. Mas então a gente precisaria ter equipes para 80% da população. Cada equipe de família – essa é a norma do ministério – deveria trabalhar com 3.500 pessoas. E no entanto cada equipe trabalha com 5 mil pessoas, na média. Há uma variação de 5 a 10 mil.
Ou seja, as equipes ficam muito sobrecarregadas. Antes da pandemia já estava assim. Ou seja, o Brasil tinha que aumentar o número de equipes. Pela nossa conta teria que ter umas 30 mil equipes de saúde da família a mais, principalmente nos lugares mais vulneráveis, na periferia, população ribeirinha, população indígena, os quilombolas, essas populações que estão mais vulneráveis, que têm uma esperança de vida menor [havia em 2018 cerca de 45 mil equipes: nota da redação]. O acesso menor ao SUS é onde falta equipe. Então isso é um problema emergente. E também trabalhar com baixo financiamento, com a infraestrutura incompleta, com gestores autoritários, com gestores relapsos, com gestores que priorizam a política partidária e grupal em relação a saúde.
Como você vê os programas associados à chamada saúde privada, como o Previne Brasil, de financiamento à atenção primária, o Médicos Brasil e agora a Adaps (Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde)?
Essa foi a política aprovada pelo Bolsonaro para a atenção primária, que é um retrocesso. O Previne Brasil, a Adaps, isso que está sendo aprovado mas não foi implementado, são estratégias de privatização e de redução do papel da atenção primária. Nessa política, por exemplo, o ministério deixa de pagar parte do NASF (Núcleo de Apoio à Saúde da Família): dispensaram a obrigatoriedade de ter visitadores, os agentes de saúde comunitários que são super importantes pra fazer esse trabalho clínico e de prevenção de saúde.
Estão fazendo um ataque mas isso vem sendo implementado de forma muito lenta porque há forte resistência das secretarias estaduais – da maioria das secretarias, só um terço opõe menos resistência – principalmente das equipes locais. Vê-se como o SUS tem uma tradição de mobilização dos trabalhadores, e de parcela dos usuários. De resistir, ou de criar problema para o governo, inclusive para os governos Lula e Dilma. E cria muito problema, sim, porque o povo é a favor do SUS. No caso do Nasf, por exemplo, a esfera federal parou de pagar, mas a maioria das secretarias estaduais e municipais continua pagando.
A gente fez um levantamento quando eles aprovaram o Previne Brasil, que acabou com o financiamento federal para os Nasfs, para essas equipes e de outros profissionais universitários. A gente tinha 6 mil Nasfs implantados no Brasil e agora, a gente verificou, fecharam 400. Ou seja, 5.600 estão resistindo. Então a gente agora precisa acabar com isso. O Bolsonaro precisa ser derrotado. Ele precisa ser tirado de lá porque o que ele desconstrói na educação pública, na ciência e tecnologia, estão tentando fazer no SUS também.
Como se originaram esses núcleos?
Os Núcleos de Apoio a Saúde da Família é uma uma política que foi criada aqui em Campinas, lá atrás, e a gente começou com isso aqui, eu era o secretário de Saúde, na época. Foi uma política para tentar desburocratizar, para diminuir as filas, melhorar a capacidade de resolver problemas, e, além do médico, da enfermeira, dos agentes de saúde, levar outros especialistas para o trabalho no território. Que eram psicólogos, fisioterapeutas, educadores físicos, dentistas. Levou anos para chegar no ministério da Saúde. Virou política oficial em 2012. Começou em Campinas em 1991.
Logo em seguida começou em Belo Horizonte também. A gente foi produzindo pesquisa, provando que é efetivo, que é eficaz, que diminui custo, que melhora a capacidade de resolver problemas. No ministério houve muita discussão, mas acabou sendo aprovado e o ministério passou a financiar. Porque já tinha muitos núcleos atuando. O governo parou de financiar e o Previne Brasil queria proibir, mas não conseguiu aprovar nas secretarias estaduais e municipais.
Os grupos que se alinham ao governo aparentemente não têm defendido a privatização abertamente e também admitem, ao menos em público, que não se pode prescindir do SUS, cuja eficiência saiu fortemente demonstrada no enfrentamento da pandemia. É possível convencê-los dos méritos do tipo de atendimento à saúde nos termos do SUS, em contraposição à visão da saúde privada?
Há muito tempo esses grupos têm o objetivo de ganhar dinheiro com atenção primária. Eles querem terceirizar, privatizar, vender serviço para o SUS a partir dos hospitais privados. Essa agência, a Adaps, é uma tentativa de botar um controle privado na atenção primária. Ela sai do SUS, sai do Ministério da Saúde, e cria-se uma instância privada como se fosse uma organização social federal. Tudo que a gente quiser compreender tem que buscar na história.
No caso do SUS, ele criou, dentro do Estado brasileiro – clientelista, patrimonialista -, uma tradição singular de gestão participativa. Que não resolve tudo, mas criou uma forma diferente de entender a política pública. Por exemplo, toda política de saúde tem que ser aprovada de forma tripartite. Tem que ser aprovada pelos secretários estaduais, municipais e pelo governo federal. O Bolsonaro, então, fechou quase tudo; no SUS ele não conseguiu fechar. Porque está na lei orgânica, está na Constituição.
O SUS, por isso, mantém uma certa institucionalidade. O Bolsonaro conseguiu paralisar o ministério da Saúde mas não paralisou o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde). Essa situação paradoxal também se estendeu às diretrizes para a atenção primária, para a regulação. O ministério não é onipotente. Já não era antes e é menos agora. A Damares [ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves] pode estar dando curso para gestores. Só que nós também estamos dando na Unicamp.
O Einstein, o Sírio e outros hospitais desse projeto de hospitais de excelência (Proadi-SUS) também dão cursos, que são dados na linha da atenção primária internacional da OMS. Em suma, é um conflito mais sutil. Mas a gente não convence os bolsonaristas não, viu? Eleitoralmente há uma chance de se retirar o Bolsonaro. Mas qualquer outra das composições que estão aparecendo até agora é muito parecido com ele. É uma extrema-direita disfarçada, que faz um discurso liberal mas é também autoritário, um messianismo autoritário. É tão ruim quanto ele.