24 Mai 2025
"As sugestões de Grillo não são apenas preciosas para a teologia 'local', mas também ajudam a destacar a necessidade de articular uma linguagem que favoreça um estilo 'cristão' que ajude cada mulher e cada homem a reconhecer sua própria dignidade e a dos outros. Uma linguagem que pode verdadeiramente fortalecer as culturas na partilha do que nelas não deve morrer e que, pelo contrário, pode dar lugar à luz de Cristo que nos torna 'dignos e santos' em todo o tempo e lugar, para além dos tempos e dos lugares", escreve Umberto Rosario Del Giudice, teólogo canonista, em comentário publicado por Theoremi, 22-05-2025.
Fazer teologia é uma tarefa e um dom. No início deste século, a tarefa da teologia parece delicada: recontar, repensar, reformular. Não se trata apenas de dizer coisas velhas com palavras novas, mas de abrir novos caminhos para que a sabedoria antiga possa brilhar na fé da Igreja de hoje. Andrea Grillo é um dos teólogos mais prolíficos na abertura de caminho para a teologia contemporânea. A jornada é um presente que se torna uma tarefa mesmo além dos nossos contextos culturais (europeu e ocidental). Um caminho não linear?
Uma bela intervenção de Andrea Grillo foi publicada nos últimos dias no YouTube, no canal do Instituto Humanitas Unisinos. que ofereceu alguns elementos fundamentais e úteis para a reflexão teológica contemporânea. Algumas das intuições e reflexões mais conhecidas de Grillo sempre me acompanharam nestes anos em que lentamente deixei de ser seu aluno e passei a lidar com teologia e direito canônico.
Contudo, é justamente no meu ensino que tenho encontrado as dificuldades que muitos estudantes não europeus encontram para aceitar e compreender os passos lentos, mas inexoráveis, do magistério e também da teologia.
Entre as várias indicações de Grillo, duas atitudes podem ser consideradas, absolutamente, dados essenciais (para a teologia entre os séculos XX e XXI), uma eclesial e uma social: a primeira Grillo chama de "dispositivo de bloqueio"; a segunda, retomando Charles Taylor (e seu Modernity and its Discontents), refere-se à "passagem da sociedade da honra para a da dignidade".
Esta última atitude é um fenômeno que revela duas maneiras de conceber e habitar a sociedade: a cultura, a fé e os relacionamentos. Uma atitude que marca também a transição de uma compreensão rígida e estável da sociedade para uma mais “aberta”, em que as relações não são marcadas por status, mas por escolhas e na base da qual há respeito às singularidades e às liberdades. Essa atitude é típica da cultura moderna, contra a qual a Igreja inicialmente se lançou (com a preocupação de ver ruir as estratificações sociais e, com elas, as certezas doutrinárias). Sabe-se que na história a referência a uma ordem “estabelecida” (e “estável”) é uma âncora segura para uma visão mitificada (e apologética) da realidade, bem como da fé.
Por outro lado, o recurso contínuo e imperturbável ao conceito de "causa" que a teologia fez (especialmente com a neoescolástica), demonstra que um certo determinismo "cultural", bem como "natural", joga a favor de uma abordagem apologética (e antimoderna). A visão de que tudo tem uma causa original e tudo tem seu próprio propósito (no desígnio do “Criador”) ajuda a sustentar a ideia de uma ordem hierárquica de coisas e sujeitos. Nessa visão, uma sociedade fechada não é apenas funcional, mas também a única possível.
No que me diz respeito (e não sei se Andrea Grillo aprova), o chamado "dispositivo de bloqueio" (categoria própria de Grillo) também poderia ser lido sob essa luz e com objetivos antimodernistas, ou seja, aquela outra atitude que tem como pano de fundo a ideia de que a Igreja não pode decidir sobre muitas questões, atribuindo toda autoridade apenas ao passado e, de fato, declarando-se "indisponível" para decidir sobre (e ver) aquelas realidades que uma sociedade de dignidade (e abertura) coloca diante dela.
Daí o convite de Grillo (que creio poder ser resumido assim – deixando, obviamente, ao próprio autor a interpretação verdadeira das propostas –): para fazer teologia hoje não se deve deixar influenciar pelo cenário de visões e linguagens de fé antimodernas, burocráticas e institucionais. De fato, devemos continuar, também nos passos do Papa Francisco, com uma visão sinodal para superar essa abordagem de fechar a própria fé em categorias institucionais. Nessa perspectiva, devemos superar o modelo antimoderno e suas rigidezes; abraçar uma teologia da dignidade, capaz de reconhecer a igualdade e a liberdade como fundamentos; renovar a linguagem para uma Igreja verdadeiramente sinodal, aberta ao futuro.
Só posso seguir e concordar com essa abordagem.
Hoje, fazer teologia significa verdadeiramente reiterar a tradição sem medo dos “sinais dos tempos”, isto é, sem ter medo de aprender com o que nos rodeia. Até porque não seria totalmente “tradicional” não aprender com os contextos: o cristianismo sempre o fez e sempre se repensou, buscando e encontrando formas de se expressar e se repensar seguindo os parâmetros da sociedade em que vivia e que eram pressupostos implícitos do seu próprio pensamento (Tomé era mestre nisso). Precisamos, portanto, de uma nova linguagem teológica que seja capaz de redizer a fé, restituindo à teologia uma concretude capaz de dar à fé a dignidade de ser experiência dos modos como Deus fala ao encontrar o homem, sem se reduzir a lógicas ambíguas e irreais que pretendem "dizer um Deus" que está apenas na mente e esquece os contextos. O Deus de Abraão, Isaque e Jacó é assim porque é seguido, mas também porque segue os caminhos dos homens de fé.
Na minha opinião, porém, surge uma questão aqui. Ela não surge de uma sensação, mas de experiências pessoais, de “fenômenos”.
Se a teologia deve ser feita compreendendo a transição epocal da sociedade de honra para a sociedade de dignidade e se a Igreja, como garantidora da sociedade de honra, se traduz em um dispositivo de bloqueio, como podemos falar naqueles contextos sociais em que essa transição não ocorreu (ainda) e em que o verdadeiro "bloqueio" vem das sociedades e não da Igreja?
Em outras palavras, se no contexto "ocidental-europeu" (por ocidental entendemos também a frente "americana" em seu sentido amplo), a passagem observada por Taylor está, poderíamos dizer, consumada, como repensar as linguagens teológicas para aqueles contextos cujas culturas não só não registraram a passagem da honra para a dignidade e do fechamento para a abertura das relações sociais, mas criticam fortemente (fechando-se ainda mais) a abordagem "ocidental"?
Estou pensando em alguns “cristianismos” africanos, asiáticos e do Oriente Médio (se me permitem a expressão). Nesses respectivos continentes, algumas posições das conferências episcopais refletem a visão de uma sociedade ainda ancorada às linguagens das “castas”, das “funções”, das “diferentes dignidades”.
Pense apenas nos países onde a homossexualidade é punível com penas que variam de dois a trinta anos de prisão; ou pensar naqueles contextos em que uma relação conjugal fora do sacramento não só coloca alguém fora da Igreja, mas também fora da família... Contextos em que a possível oração por casais do mesmo sexo é fortemente contestada e o possível acompanhamento de casais não casados parece utópico, uma vez que essas “uniões” são uma “grande desonra” em vez de uma “possibilidade real”. Sem mencionar a percepção que as mulheres têm de si mesmas em culturas onde elas não têm autoridade e não sentem que isso é " imposto a elas " .
Nossos estudantes africanos, assim como os asiáticos, têm grande dificuldade em entender não apenas nosso contexto cultural (e histórico), mas também nossa linguagem teológica, que busca olhar as práticas com uma nova consciência. Até mesmo falar de "domingo" não como um preceito, mas como um tempo de doação vivido com e para a própria liberdade se torna difícil para aqueles que vivem em contextos nos quais ou trabalham ou... usam roupas de domingo (com tudo o que isso significa do ponto de vista social e para a percepção de afiliações religiosas).
Mas há mais: esses contextos culturais talvez não estejam muito distantes da frente mais reacionária aqui. Aqueles que lutam para ver a “dignidade” das pessoas, incapazes de pensar nas pessoas, também se encontram “em casa”. E se no nosso “antigo Ocidente” o caminho da cultura da dignidade é inexorável, naqueles contextos em que o caminho parece ainda não ter começado, a incompreensão é evidente, e com ela o enrijecimento. Somos lembrados disso pelas reações das Conferências Episcopais àquelas poucas indicações do Papa Francisco, que tentou abrir a linguagem e o olhar do magistério (e da teologia) para todas as realidades (nas quais Deus não está escondido e para as quais Deus não pode ser escondido).
Certamente a transição para a dignidade fundamental e a dignidade fundadora de cada pessoa, seja mulher ou homem, não pode ser interrompida. Mas, enquanto isso, temos um problema de linguagem teológica que não parece ser imediatamente compartilhado com e por todos. Por isso, a questão não se detém apenas na teologia “europeia ocidental”, mas ultrapassa os seus limites quando o próprio magistério petrino é chamado a oferecer linguagens e caminhos iluminados e realistas para uma Igreja que deve pensar-se cada vez mais como uma Igreja em caminho, aberta e não num estilo “antimodernista”.
O caminho pode não ser longo, mas certamente é complexo.
As sugestões de Grillo, portanto, não são apenas preciosas para a teologia "local", mas também ajudam a destacar a necessidade de articular uma linguagem que favoreça um estilo "cristão" que ajude cada mulher e cada homem a reconhecer sua própria dignidade e a dos outros. Uma linguagem que pode verdadeiramente fortalecer as culturas na partilha do que nelas não deve morrer e que, pelo contrário, pode dar lugar à luz de Cristo que nos torna “dignos e santos” em todo o tempo e lugar, para além dos tempos e dos lugares. Fazer teologia afastando-se da lógica burocrática e institucional pode ser uma oportunidade para iluminar contextos não “europeus” , tornando-se um ato político de um cristianismo capaz de criar espaços de dignidade. Mas o caminho não parece nem simples nem linear.