30 Julho 2024
"A fé cristã terá que repensar exatamente nesses três elementos essenciais (a ceia, a mulher e o amor) a sua abordagem crítica com a modernidade, e não por meio de uma reação iconoclasta, mas com a serenidade de apreciar as pessoas e a cultura humana, para além do trash. Parece que a fé ainda não está capaz de reelaborar a referência dionisíaca de origem nietzschiana própria da sensibilidade contemporânea e ostensiva; encontra seu único remédio na contraposição preconceituosa. Não consegue entender e se torna hostil. Isso foi o que apareceu", escreve Umberto Rosario Del Giudice, teólogo canonista, em comentário publicado por Theoremi, 29-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "se a fé não for capaz de suportar o bom e o belo, também não será capaz de sustentar o verdadeiro, correndo o risco de se tornar um vilipêndio de si mesma; um tanto reacionária, um tanto iconoclasta, um tanto trash".
A missa matinal em uma paróquia cuja moderna abside oferece ao olhar os mosaicos de Ivan Rupnik me dá a oportunidade de refletir sobre a fé que, por si só, coloca tudo sob o olhar de Deus sem recorrer a ações iconoclastas. E isso me leva de volta aos fatos em Paris. Vou explicar o porquê.
Após a realização do espetáculo de inauguração das Olimpíadas de Paris 2024, surgiram opiniões contrastantes.
De um lado, as mídias registraram um grande entusiasmo pela cerimônia de abertura de Thomas Jolly, ator francês e diretor artístico das cerimônias dos Jogos Olímpicos. Do outro lado, a Conferência Episcopal Francesa (CEF) divulgou um comunicado no qual, mesmo apreciando a beleza de algumas passagens das doze cenas em torno dos quais a cerimônia de abertura foi estruturada ("merveilleux moments de beauté, d'allégresse, riches en émotions et universellement salués"), deplora "des scènes de dérision et de moquerie du christianisme" (nenhuma referência à Última Ceia).
A declaração dos bispos, no entanto, foi imediatamente usada também do ponto de vista político: um detalhe de não pouca importância também para entender para quem acerbar os ânimos possa (do ponto de vista eleitoral) ser útil. Mas os cristãos não podem se deixar instrumentalizar pela política nem pelas oposições viciosas ou viciadas.
Foto: Parrocchia Maria SS Immacolata
Os bispos franceses denunciaram certas cenas de escárnio e zombaria do cristianismo ("des scènes de dérision et de moquerie du christianisme").
Mas será que houve escárnio e zombaria? A intenção de uma "moquerie de la religion chrétienne" estava escondida entre as cenas? Para que haja uma ofensa e, em particular, a de vilipêndio ou pelo menos ultraje da fé religiosa ou de objetos de culto, é necessário pelo menos a intenção de ofender uma fé e o uso ofensivo de objetos de culto pela destruição, dispersão ou outra ação destinada a tornar o objeto de culto "inútil". Se não houve intenção (como declarado por várias partes) de ofender o cristianismo diretamente em sua narração (também estética e artística) da Última Ceia, não citada pelos bispos franceses, e se nenhum objeto de culto foi destruído ou vituperado de qualquer forma, o fato não subsiste.
Se eu tivesse sido um bispo francês, e apenas para esclarecer e evitar um confronto iniciado capciosamente nas mídias sociais (especialmente com evidentes reações políticas), eu teria primeiro pedido uma declaração explícita sobre as intenções da narração. Por outro lado, sabe-se, o "povo" vai atrás dos "revolucionários".
Como já foi lembrado por várias partes, a narração daquelas cenas tinha a intenção de retomar a imagem do banquete dos deuses no Monte Olimpo e se referir apenas ao nome da cidade grega de Olímpia, na Ilia, donde se origina o nome os Jogos Olímpicos. O fato desse tipo de representação poder ou não agradar ou incomodar a sensibilidades estética e ética dos espectadores é outra questão.
Se o fato não subsiste como um ultraje, o que resta é a fé da comunidade cristã. Ela é e deve ser capaz de "purificar", "elaborar", "salvar" o que é salvável, ou seja, o que está ligado às pessoas. Por outro lado, os Evangelhos fazem referência à fé como uma experiência que salva (cf. Mc 5,34; 10,52; Lc 7,50; 8,48; 17,19; 18,42).
Se essa fé não for capaz de salvar e de encontrar a salvação, produzirá atitudes iconoclastas como reação a tudo o que não consegue suportar. E se não se compartilha a vida e as escolhas alheias, destrói-se tudo o que o outro fez, pensou, produziu. Assim, algum tempo atrás, tinha surgido a vontade de “remover” todos os mosaicos de Marko Ivan Rupnik por causa das conhecidas acusações de violência sexual.
Ora, os mosaicos de Rupnik, ou seja, da sua escola, podem até não agradar (as feições dos rostos de suas obras já há tempo não encontravam a sensibilidade de muitos), mas isso não quer dizer que não tenham sido considerados por muitos "obras de arte" e, no caso específico, obras de arte sacra em referência aos temas religiosos. Deveríamos agora destruir e remover os mosaicos de Rupnik? Não acredito que uma reação iconoclasta seja útil, necessária, oportuna e, acima de tudo, respeitosa com a própria fé. A fé cristã, na qual a comunidade vive, é capaz de "ver o belo para além do feio": é capaz de esperar, de recolher, de levar a cumprimento.
Nessa fé, a comunidade pode não ter a necessidade de destruir obras nascidas de vidas não "cristãs", e pode também conseguir evidenciar o belo, sustentar o diálogo, realizar o confronto útil (e não instrumentalizado), traçar caminhos comuns, porque a fé, se for fé, não tem medo do que pode ameaçá-la, a menos que tenha que se defender por ser fraca. Com relação aos fatos de Paris, uma fé cristã é capaz de apreciar o belo e não se escandalizar com o que não compartilha, suportando o que pode unir.
Como afirmou um padre francês, a sensibilidade católica se sentiu "atingida" em três elementos: a Ceia, a mulher e o amor. A fé cristã terá que repensar exatamente nesses três elementos essenciais a sua abordagem crítica com a modernidade, e não por meio de uma reação iconoclasta, mas com a serenidade de apreciar as pessoas e a cultura humana, para além do trash. Parece que a fé ainda não seja capaz de reelaborar a referência dionisíaca de origem nietzschiana própria da sensibilidade contemporânea e ostensiva; encontra seu único remédio na contraposição preconceituosa. Não consegue entender e se torna hostil. Isso foi o que apareceu.
Se a fé não for capaz de suportar o bom e o belo, também não será capaz de sustentar o verdadeiro, correndo o risco de se tornar um "vilipêndio" de si mesma; um tanto reacionária, um tanto iconoclasta, um tanto trash.
No entanto, a fé cristã subsiste contra o mau gosto das ideologias hostis alimentadas fora e dentro da comunidade de fé.
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O fato não subsiste: a fé sim. Artigo de Umberto Rosario Del Giudice - Instituto Humanitas Unisinos - IHU