29 Julho 2024
"A 'blasfema' última ceia é talvez, para além de qualquer intenção, uma oração para que o Deus cristão venha e nos ajude a todos na nossa miséria e orgulho", escreve Francesco Sisci, sinólogo, autor e colunista italiano que vive e trabalha em Pequim, pesquisador sênior da Universidade Renmin e contribui para vários periódicos e grupos de reflexão sobre questões geopolíticas, em artigo publicado por Settimana News, 29-07-2024.
A representação queer da Última Ceia na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris abriu uma questão extremamente delicada no cerne da relação da modernidade no Ocidente com a religião e da sua relação com o Islã.
Diretor artístico da cerimônia nega referência à "Última Ceia". "Não foi inspiração. Acho que tinha ficado claro, lá está Dionísio. Está lá porque é deus da festa, do vinho, e pai de Sequana, deusa ligada ao rio. A ideia era um grande festival pagão ligado aos deuses do Olimpo" https://t.co/b6mU23Ke2k
— Jean-Philip Struck (@jeanstruck) July 28, 2024
Os bispos franceses “sublinham o quão importante é hoje promover a fraternidade em todo o mundo através dos valores desportivos e olímpicos – como não lembrar também as outras duas dimensões: liberdade e igualdade – com respeito por todos. Este elevado ideal foi manchado por uma zombaria blasfema de um dos momentos mais sagrados do cristianismo. E os bispos franceses salientam que muitos membros de outras religiões enviaram a sua solidariedade”.
A acusação é que o cristianismo foi ridicularizado e que ninguém ousaria fazer tal coisa com o Islã por medo de uma reação irada. Até um bilionário envolvido na vida pública como Elon Musk interveio declarando que o cristianismo é “desdentado”, incapaz de morder, fraco, fraco e, portanto, um perdedor, porque insulta a si mesmo, mas não aos valores do Islã.
Thomas Jolly, criador da representação, tentou suavizar o tom: “Acho que ficou bem claro que era Dionísio chegando à mesa”. E os organizadores acrescentaram: “Se alguém se sentiu ofendido, pedimos desculpas”.
Cerimônia enfurece extrema direita, que pede boicote e fala em 'sacrilégio' https://t.co/JkbcKrRm9I
— Jamil Chade (@JamilChade) July 27, 2024
É quase como ver a Igreja num canto. Se criticarmos a representação do jantar, a Igreja é retrógrada e reacionária; se você não criticar, o catolicismo não é uma religião verdadeira que seja respeitada como o Islã. Mas talvez haja algo mais por trás da polêmica. O show foi realmente blasfemo? E se fosse?
O fato de a Igreja estar sendo atacada demonstra a força da sua mensagem, prova de que a Eucaristia, celebrada na Última Ceia, é um elemento reconhecido e reconhecível por todos, crentes e não crentes. Talvez nada demonstre fé em Deus como a blasfêmia. Todos sentem que podem recorrer à Igreja sem medo.
Pois é. Não era a Última Ceia. Até porque este quadro foi pintado por Da Vinci, um italiano, e está na Itália. O tal banquete "atualizava" um quadro de acervo de museu francês, que retrata uma comedoria de deuses gregos. Divindades "pagãs", portanto. Não cristãs. Mas a histeria… https://t.co/w1tqmVnLie
— Christian Lynch (@CECLynch) July 28, 2024
A sacralidade hierática do Islã, da qual ninguém se atreve a zombar, prova que se tornou uma fé distante do mundo moderno e das complexidades. Este Islã hierático estaria certo se o mundo retrocedesse, rumo a uma religião onde Deus é inatingível para o homem. Mas o mundo está andando ao contrário.
E ainda temos um plot twist. Nem era a Última Ceia de Leonardo da Vinci, mas o Festim dos Deuses que está no museu Magnin em Dijon [o que faz todo sentido, fiquei com uma pulga atrás da orelha, o que teria ver esse quadro de da Vinci com a França, até porque ele está na Itália]. https://t.co/k64LK5joEC
— Hugo Albuquerque (@hugoalbuquerque) July 28, 2024
Os seres humanos são mais numerosos do que nunca, vivendo mais e melhor do que nunca na sua história de um milhão de anos. Sentem-se quase imortais, invencíveis e querem um Deus próximo deles, que fale com eles. Precisamente porque os homens estão mais ricos e mais poderosos do que nunca, estão a descobrir os seus novos e diferentes limites de finitude.
Galera, o Comitê Olímpico e o diretor da cerimônia de abertura das olimpíadas negaram que tenham feita alusão ao quadro a Última Ceia. Como já disse no post anterior, a referência para aquela cena foi a Festa dos Deuses que representa o Deus grego Dionísio. O COI afirmou isso. E… pic.twitter.com/WdrbJbb0sX
— GugaNoblat (@GugaNoblat) July 28, 2024
A “blasfema” última ceia é talvez, para além de qualquer intenção, uma oração para que o Deus cristão venha e nos ajude a todos na nossa miséria e orgulho.
Talvez alguns imãs muçulmanos também devessem olhar para este Deus próximo e misericordioso. O mundo é miserável e será cada vez mais miserável com o avanço imparável da modernidade. É por isso que precisamos de um Deus que saiba rir dos pecados humanos e ouvir as orações distorcidas que chegam.
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A “blasfêmia” olímpica. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU