09 Abril 2025
"A impossibilidade de extinguir as CEBs, enraizadas na vida do Povo de Deus, não deixou de encurtar a sua vitalidade e renovação. Mas quem se importa? No Brasil, por exemplo, experimenta-se uma transição terminológica – Comunidade eclesial missionária (CEM) – que, embora sugestiva, não mostrou a que veio e tende a ser deixada de lado em breve. Talvez, carece, na origem, de uma presença eclesial na base social e vida teologal suficiente para inspirar uma renovada reflexão teológico-pastoral. Também não se sabe ao certo se vinha aprimorar, corrigir ou suprimir as CEBs de vez", escreve Vitor Hugo Mendes.
Vitor Hugo Mendes é presbítero da Diocese de Lages. Doutor em Educação (UFRGS), doutor em Teologia (Salamanca/Espanha), pós-doutor em Pensamento Ibérico e Latino-americano e também em Educação. Atua como orientador de retiros, conferencista, assessor e consultor em temas de Teologia, Pastoral, Espiritualidade, Educação e Psicopedagogia. Especialista em Pastoral Urbana. Autor do livro, em dois volumes, Liberación, um balance histórico bajo el influjo de Aparecida y Laudato si’. El aporte latinoamericano de Francisco, 2021 (Appris/Amerindia), que versa sobre a Teologia Latino-americana e o Magistério do Papa Francisco.
Depois de uma década de peregrinagem por meio mundo retornei a Lages, na Serra catarinense. Passados três anos e meio de voltar a viver na terra que me viu nascer, no exercício da sinodalidade, ensaio um breve balanço de caminhada eclesial, pastoral e teológica.
“Posso dizer que sempre me senti Igreja, até quando, para servi-la, tive de caminhar sozinho” (R. Guardini). Peregrin@s de Esperança!
Antes de regressar a Lages, houve um período intenso de trabalhos junto ao Conselho Episcopal Latino-americano, Colômbia (2011-2015). Uma experiência incrível! Oportunidade única de conhecer por dentro o imponente trabalho do CELAM e o gigantesco dinamismo da Igreja viva na América Latina e Caribe.
Depois da Conferência de Aparecida (2007), em alguma medida, sob o pontificado de Bento XVI, havia um clima mais distendido ou menos tenso com relação à Igreja na América Latina. Havia consciência de ser uma Igreja regional que se mantinha ativa e propositiva frente ao quadro eclesial mais amplo. Em linhas gerais, sem maiores alterações, deu-se continuidade ao longo pontificado do Papa João Paulo II. Nova e imprevista foi a renúncia do papa alemão.
Convidado para atuar no setor de Vocações e Ministérios fui designado para o departamento de Cultura e Educação por conta da formação específica na área. Colaborando como professor no ITEPAL, com uma breve passagem na função de reitor acadêmico do CEBITEPAL, o foco de trabalho convergiu nos temas de Cultura e Educação: Indígenas, Afrodescendentes, Culturas Urbanas, Educação Católica, entre outros. Membro da Equipe de Reflexão Teológica do CELAM, também se viabilizou iniciar um doutorado em teologia na instituição, tendo como orientador de tese Juan Carlos Scanonne, SJ. Uma maratona intensa!
Foi nesse tempo e contexto que ocorreu algo inusitado. Confluindo com uma agenda de trabalho densa e cheia de inquietações eclesiais, começamos entre amigos uma roda de conversa, ao início, despretensiosa, mas que foi ganhando corpo como reflexão e itinerário de vida. Revolvendo as entranhas da pastoral e da teologia na América Latina, as discussões concentraram-se na necessidade de se voltar a fazer teologia a partir das comunidades.
Em 2015, depois de um intercâmbio online produtivo com Gustavo Gutierrez, desta vez em modo presencial, o grande teólogo fez ponderações fundamentais nesse debate. Insistia dizendo que “não só é indispensável voltar a fazer teologia com as comunidades, mas também é necessário avançar em uma teologia entendida como ‘sabedoria’, cuja fonte são as comunidades”. Algo que se mostrava óbvio, considerando a vigorosa trajetória da Igreja dos pobres e sua teologia da libertação. Uma vivência que se nutria na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Contudo, naquele momento, já se vislumbrava que pastoral e teologia tendiam seguir por caminhos muito diferentes na América Latina. Por força da intervenção continuada e adversa às CEBs e, na mesma proporção, contrária à teologia e aos teólogos/as da libertação, não foram poucos os que encontraram guarida e sobrevivência no âmbito da universidade. Alguns quantos, cada vez menos, mantiveram os pés no chão da vida das comunidades de base; outros permaneceram com os movimentos sociais; e não faltou quem se restringiu a assessorias das comunidades no estilo EAD. Outros ainda, em definitiva, abandonaram as bases e as comunidades. De toda maneira, teologia e libertação, para bem e para mal, passaram a existir em ‘modo acadêmico’ no ‘mundo universitário’.
Não demorou muito para que até mesmo a teologia da libertação se tornasse apenas uma espécie de (sub)tema da teologia acadêmica e obra comentada, ora por historiadores, ora por teólogos profissionais, desde a universidade. Por fim, uma inversão fatal: muita teologia (até com bons propósitos de libertação) e publicações consideráveis, mas muito menos pastoral e libertação junto ao cotidiano das comunidades e dos movimentos sociais. Basta lembrar o consenso atual: a Igreja perdeu as bases. Hoje vigora uma pastoral de eventos e de multidões que emudeceu a teologia e silenciou a academia; o magistério, não se pronuncia.
A impossibilidade de extinguir as CEBs, enraizadas na vida do Povo de Deus, não deixou de encurtar a sua vitalidade e renovação. Mas quem se importa? No Brasil, por exemplo, experimenta-se uma transição terminológica – Comunidade eclesial missionária (CEM) – que, embora sugestiva, não mostrou a que veio e tende a ser deixada de lado em breve. Talvez, carece, na origem, de uma presença eclesial na base social e vida teologal suficiente para inspirar uma renovada reflexão teológico-pastoral. Também não se sabe ao certo se vinha aprimorar, corrigir ou suprimir as CEBs de vez.
Não por último, em muitos programas de graduação e pós-graduação em teologia vem aumentando enormemente a importância da teologia “prática”. Muito embora sempre há as exceções, na laboração teológica se nota cada vez menos interesse pela implicação filosófica da práxis na teologia e na pastoral. Com a reviravolta linguística, veio também essa revolta teológica que, de um jeito ou de outro, reluta em sair da ‘gramática’ e ir além da ‘pragmática’.
Em 2015, depois daquela incursão pela América Latina Profunda, já estávamos na era Francisco. Finalizado o trabalho no CELAM, beneficiado por uma bolsa de estudos de doutorado em teologia na Espanha, frequentando a histórica Universidade de Salamanca, logo se oportunizou uma experiência missionário-pastoral em Portugal. Uma ocasião extraordinária para interagir com a Península Ibérica, uma das raízes principais da cristandade católica, em franco declínio; a origem dos processos de colonização e de evangelização latino-americana.
Naquele contexto, muito embora os avanços da Igreja e do CELAM no âmbito regional, Francisco, o primeiro latino-americano a ocupar o sólio de Pedro, já se mostrava anos-luz à frente da grande maioria dos bispos da América Latina e Caribe. E muito rapidamente avançou e superou as melhores intuições advindas de Aparecida (2007). Com muita propriedade falava-se aqui de Igreja missionária, conversão pastoral, Missão Continental, etc. Com vistas a levar a termo a necessária reforma da Igreja, o bispo de Roma (Evangelii gaudium, 2013) retomou sem temor a Igreja pobre e para os pobres, dispôs a Igreja em saída missionária, na direção das periferias, e não titubeou em promover uma pastoral em conversão em toda a Igreja.
Com Laudato si’ (2015), pleiteando a reforma da sociedade, Francisco trouxe com precisão o cuidado da casa comum mediante uma primorosa ecologia integral, dando máxima recepção à teologia da libertação latino-americana. E, para colocar tudo isso em movimento, instaurou uma nova dinâmica sinodal que se pôs, imediatamente, a refletir a sinodalidade da Igreja. Deixou claro que caminhar juntos não só é uma nota constitutiva da Igreja, mas, também, uma prerrogativa indispensável à reforma social da casa comum (Fratelli tutti).
Por conta de todos esses insumos, o período de retiro Salmantino foi um tempo privilegiado (Kairós) de refletir aquela vivência anterior de Igreja Latino-americana e avançar.
Assim se iniciou e se concluiu a tese (teologia sistemática): Liberación, un balance histórico bajo el influjo de Aparecida e Laudato si’. El aporte latinoamericano de Francisco (2020).
Era o tempo da pandemia, mas foi a época de novamente partir... era hora de regressar. Embora tentado a investir em uma carreira ‘solo’ e entrar para a academia, a obrigação de conciliar pastoral e teologia e os ensinamentos do Papa Francisco tiveram maior relevância. Era preciso voltar, reencontrar a “periferia”. Revivia aquela inspiração decisiva: “voltar a fazer teologia com as comunidades”, “avançar em uma teologia entendida como ‘sabedoria’”. Por essas trilhas regressei para a Galiléia. Em julho de 2021 cheguei de volta à Serra catarinense.
A Vila de Lages foi fundada em 1766 sob a proteção de Nossa Senhora dos Prazeres. A religiosidade e o catolicismo popular, na região Serrana, é significativamente antiga (mais de dois séculos e meio). A Diocese de Lages, com seu enorme território – ainda hoje é o maior município e a maior diocese em extensão de Santa Catarina –, foi criada apenas em 1927, sendo instalada em 1929. Em breve será celebrado o primeiro centenário de criação da Dioecesis Lagensis.
Retrospectivamente, tem-se a impressão de que a contextura eclesial (religiosa), na Serra Catarinense, parece exceder a arquitetônica jurisdicional (canônica) da diocese. Talvez devêssemos falar da igreja invisível, tratando de buscar a piedade popular e a solidariedade cabocla que está no cerne antropológico do povo serrano que habita os campos de Lages, na Serra catarinense.
Apesar disso, na região de Lages, permanece ainda um nostálgico espírito de ‘nobreza feudal’ inexplicável. Historicamente, Lages ficou conhecida como a Princesa da Serra. Mesmo sem qualquer ânimo de futuro, o título nobiliário parece ainda conservar, em muitos, pretensões de realeza soberana; uma estranha combinação de vassalagem, servos, servas e servidões.
Herdeira da cultura de fazenda, a região continua ainda atravessada pelas relações de compadrio, lógicas político-administrativas tributárias do velho coronelismo e uma invencível desigualdade social. Por conta de uma diminuída autocrítica, tradição, educação, política, religião... tendem a confluir serenamente no mesmo estuário cultural (tradicionalismo, coronelismo, machismo...). As exceções confirmam a regra.
Apesar de estar na origem do turismo rural no Brasil, o desenvolvimento regional constitui um ‘problema’ ainda sem ‘solução’. Lages, sem maior protagonismo, pouco ajuda.
Sobrevive, com dificuldades, aquela cultura cabocla – por vezes esquecida ou mal lembrada – de gente desconfiada, vida simples, conservadora, hospitaleira, boa prosa... gentes da terra, do pinheiro araucária, do pixurum, da piedade popular e da resistência sufocada na Guerra do Contestado. Dada a mistura disso e daquilo, ainda há que se buscar uma “estética do frio” característica da Serra catarinense. (Embora se poderia buscar alguma analogia com a cultura gaúcha, em nada seria a tradição e o CTG rio-grandense).
Com tudo isso no DNA e, agora, de novo, diante dos olhos, a fim de preparar a efeméride centenária da Diocese de Lages, colocamos mãos à obra e já circulam doses homeopáticas de uma pesquisa de caráter histórico, em andamento, intitulada Glosas sobre a Igreja na Serra Catarinense. Em torno a isso, se desvela um tema e um problema de maior grandeza para a Igreja local e a sinodalidade da Igreja – a opção por uma teologia contextual.
Mesmo que não sejam tão numerosos, são alguns quantos a soma de trabalhos que publicamos sobre teologia e outros assuntos nas últimas décadas. Quase nenhum deles encontrou maior ressonância aqui na região serrana. Talvez escritos de cunho acadêmico (teórico), despertem muito pouco interesse em culturas de tradição marcadamente oral. Mais um motivo porque aquelas produções nunca causaram ou tiveram qualquer problema de interpretação. Portanto, por aqui não se fez ‘resenhas’ sobre os artigos e livros, tampouco há o ‘disse que disse’ (disque-disque), uma espécie de história oculta (fofoca) típica das culturas de fazenda.
Não obstante, bastou apenas ensaiar algumas glosas sobre a Igreja local... na linha de uma teologia contextual, para que se instalasse uma espécie de alvoroço eclesial. Semelhante alarido se deu na ‘corte de Herodes’. Desinformada daquela outra ‘teologia’ – contextual, encarnada – que busca pelo messias na periferia da cidade (não mais nos centros de poder ou no poder reinante), sobreveio o insucesso de buscar seduzir, controlar e censurar aqueles que viram a estrela, o menino e seguiram a vida por outro caminho. "O boi conhece o seu dono e o asno o seu berço; mas Israel não conhece, meu povo não entende" (Is 1,3).
F. de Aquino Júnior evidencia algo dessa situação ‘contextual’ no âmbito da reflexão teológica latino-americana. O teólogo observa que quando falamos da categoria Reino de Deus, enquanto questão geral, na teologia clássica – universal e perene –, temas, autores, referências... se mostram intermináveis e se multiplicam fluidamente. Por sua vez, quando se pretende colocar em ação uma determinada teologia contextual – que se põe em averiguar o Reinado de Deus neste mundo –, a razão, o método, o conteúdo e a intencionalidade teológica é bem outra.
Não há como evitar a eco-logia contextual diocesana, isto é, o dinamismo comunitário da fé teologal, as opções pastorais ou mesmo as promessas descumpridas. Enfim, há que se considerar a realidade efetiva, os cenários, os rostos, os interesses, as contradições, as proposições... da Igreja e da sociedade com seus nomes, endereços e adereços. Daí emergem tensões (riscos, desafios, oportunidades...) que realmente ultrapassam até mesmo os imaginários teológicos mais criativos. A realidade será sempre maior que a ‘ideia’ que dela fazemos e a história nunca estará fechada. Então, “a esperança não engana” (Rm 5,5).
Por conta disso, o propósito de caminhar juntos que não tomar a sério a contextura – histórica e atual – da ação pastoral, na Igreja local, torna-se um mero ‘discurso’. Quando muito, será uma preleção teológica ‘ilustrada’ e ‘conservadora’... inalcançável como proposta, insuficiente e inoperante como prática eclesial, indiferente diante da realidade social. Vive-se o ‘novo’ de um jeito ‘velho’ – a vinho novo, odres novos.
Sem amparar as consequências da sinodalidade em sua novidade e inteireza, aqui e ali viceja antigas práticas de Igreja – ora conservadora, ora progressista, ora sem rumo – incapaz de camuflar uma voluntariosa disposição anti-sinodal. As posturas se igualam justamente por ignorar a radicalidade da instalação (recepção) do processo sinodal.
É verdade que a sinodalidade se dá no caminho, mas nunca sem iniciar processos de caminhar juntos. Daí que a pretensa funcionalidade institucional (legalidade, ‘normalidade’) seja insuficiente para garantir a legitimidade sinodal. Conforme o caso, são necessários tantos arranjos (gambiarras) que, na prática, não passam de remendos de pano novo em roupas velhas.
Apesar de que, em geral, ainda se imagina que o bispo é o ‘dono da Igreja’, e os padres, ‘filhos do dono’, a opção, na/da Igreja local, pela via sinodal, quando chegar, fará toda a diferença na superação dessa mentalidade e das estruturas eclesiásticas (clericalismo) que as sustentam.
De toda maneira, a sinodalidade não é uma teoria, mas uma ação eclesial (práxis) com a participação de todos e todas – em favor da Igreja (Povo de Deus). Daí a importância da opção por uma teologia contextual interagindo na dinâmica da Igreja local (eclesiologia). Trata-se de promover uma sabedoria teo-lógica (in)consequente, capaz de advertir, sobretudo, os embaraços que inibem a realização do caminho sinodal na Igreja particular e, antes de tudo, sustentar uma esperança incontida no caminhar juntos.