13 Setembro 2023
O livro de Jean-Marie Guénois analisa as iniciativas do papa jesuíta que mudaram profundamente o funcionamento interno e a política geral do Vaticano.
Os trechos do livro foram selecionados por Jean Sévillia e publicados por revista Le Figaro, 08-09-2023.
A função papal profanada é a de que Francisco “virou a mesa”, se assim posso dizer, na política ou nos negócios. Este é o primeiro ponto desta avaliação. Foi o primeiro emprego dele, ele permanecerá. […] Se isto não é “virar a mesa” no sentido trivial do termo, é subverter as perspectivas. O papa submeteu-se à multidão de fiéis. Isto foi o oposto da postura papal habitual, marcada pela inevitável sobrecarga desta função religiosa mundial. Posteriormente, houve muitos gestos semelhantes.
Recorde-se que o abandono do apartamento pontifício, pouco luxuoso mas demasiado isolado para o seu gosto, a troca de grandes limusines Mercedes por pequenos carros da Fiat, a adoção da familiaridade com as suas fórmulas chocantes, os telefonemas improvisados a particulares em dificuldades, as viagens a destinos com a preocupação de visitar as populações sofredoras, o lava-pés dos presos às Quintas-feiras Santas. Para ele, era uma prioridade sincera, um hábito de pastor. Francisco escolheu seu nome papal em referência a São Francisco de Assis. No estilo de Francisco, permanecerá algo do pobrezinho de Assis, um líder religioso simplificado e acessível, que fala a língua da rua. Um papa próximo.
Ninguém na Igreja terá ousado criticar este caminho pontifício, mais inspirado nos caminhos ladeados de árvores e pássaros de Assis do que nos mármores reluzentes da Santa Sé. As línguas afiadas do Vaticano são muitas, mas nunca foram descobertas. Eles ficaram paralisados porque essa forma de fazer as coisas era evangélica. Alguns, porém, rapidamente perceberam nesta renúncia à pompa vaticana uma forma de dessacralização da função papal. O primeiro não era mais rei, queria ser servo. É um ponto de discussão da sua história: o Papa Francisco enfraqueceu o papado ao “empobrecê-lo” ou será que, paradoxalmente, fortaleceu-o e enriqueceu-o ao despojá-lo? […]
(Foto: Divulgação)
O Papa Francisco queria criar uma Igreja para todos. Ele não aparou o dogma, não tinha o direito de fazê-lo, especialmente como papa, já que é seu guardião e fiador, mas inverteu a perspectiva. Em vez de se basear em livros e dogmas definidos por séculos de pensamento e debate, ele parte das pessoas como elas são. É uma forma de populismo católico. […] Abolir o “posto fronteiriço”, segundo uma expressão de Francisco a respeito do dogma, que exigiria um passaporte de bom católico para entrar na Igreja não é, porém, uma novidade na Igreja. É uma forma histórica de “pastoralismo” praticada durante séculos em toda a Igreja Católica, conservadora ou progressista, de direita ou de esquerda, galicana ou ultramontana. Porque o sacerdote sempre teve a missão de se colocar ao alcance das pessoas, dos seus problemas quotidianos, de se adaptar a cada situação para ajudar a todos material e espiritualmente. […] A novidade de Francisco é que ele instituiu este “estilo pastoral” no próprio nível do papado. Como papa, ele começou a falar como um padre. Como papa, dirigiu-se a todos e a todos usando termos familiares, porque os meios de comunicação lhe permitiram fazê-lo, especialmente as redes sociais. De certa forma, ele permaneceu um padre jesuíta religioso enquanto era o chefe da Igreja Católica. Foi isso que tornou o seu charme, esse jeito de ser, direto, sincero, acessível. […]
Este “contorno” do dogma em benefício da pastoral não é novidade na Igreja: padres e bispos tiveram por vezes de recorrer a ela para evangelizar. A novidade é que este método era praticado ao mais alto nível, levando muitos a pensar que o dogma já não importava tanto. Este é o risco de diluição que Francisco assumiu na sua preocupação de “reconciliar” a Igreja com as pessoas que considerava excluídas, como vimos: os divorciados recasados, os homossexuais ou transexuais, aos quais ele está particularmente atento, os pobres, os refugiados, os migrantes, todas as pessoas que não estão na norma.
Quem criticaria esta preocupação louvável e eminentemente cristã? O problema é que a esperança de unir as pessoas através do polimento das asperezas católicas não existe necessariamente. E que esta abordagem pastoral relevante teve o efeito de criar, no seio da Igreja Católica, uma profunda confusão de espíritos, com pessoas a questionarem-se se aquilo em que depositaram a sua fé, e aquilo em que lhes foi pedido que acreditassem, ainda era válido. […] Por outro lado, para o Papa Francisco nunca se tratou de vender o dogma, sendo a palavra dogma aqui usada no sentido lato e não no sentido técnico. Vimos isto em diversas questões, como o celibato sacerdotal, onde a formação da própria geração de jesuítas colocou freios poderosos em desenvolvimentos potenciais.
Há algo de muito clássico neste pastor, muito apegado à piedade popular, devoto de São José e de Santa Teresinha do Menino Jesus, radical na sua forma de viver o Evangelho e de conduzir a Igreja, mas também muito sensível às mudanças do mundo e mentalidades, e sempre tentando se adaptar a elas. O seu “estilo pastoral” terá marcado definitivamente a forma de exercer o papado e a forma de ensinar ao mais alto nível. […]
O Papa Francisco liderou uma terceira revolução, desta vez moral, em questões que afetam a sexualidade e a família, mas não só. Esta opção foi motivada por uma disputa com o pontificado de João Paulo II. Como jesuíta, Dom Mario Jorge Bergoglio sentiu que o papa polaco tinha falado demasiado sobre questões de moralidade familiar, ao ponto de desencorajar as pessoas. Isto era parcialmente verdade, mas ainda precisa ser provado, porque muitas famílias cristãs encontraram apoio duradouro nos ensinamentos de João Paulo II.
[…] Esta “revolução moral” de Francisco certamente foi além das questões de natureza sexual. Abrangeu a grande luta de Francisco pela imigração e contra a pobreza. Neste sentido, a terceira revolução de Francisco é uma “revolução ética”. Poderíamos expressá-lo através deste paradoxo: por um lado, o papa jesuíta aliviou os católicos dos seus complexos em questões sexuais e matrimoniais, ao mesmo tempo que os sobrecarregou, por outro lado, fazendo-os sentir-se constantemente culpados em questões de imigração, injustiça social e ecologia. Nunca, para dizer a verdade, tivemos um papa tão moralizador como Francisco. Não passava uma semana sem que o ouvisse ou o visse repreender os valentes católicos, as freiras, os padres, os bispos, que nunca foram suficientemente bons aos seus olhos, os fariseus, os clérigos, os hipócritas, as pessoas tristes... lições que consideraram caricaturadas e injustas. Eles tomaram dois lados: indiferença e distanciamento […] de injustiça social e ecologia.
Uma quarta “revolução” aparece no balanço do Papa Francisco, a do seu sentido de ação. É o seu pragmatismo, a sua atenção aos detalhes? Há muito tempo que não víamos um líder da Igreja Católica pôr a mão na massa a tal ponto… A sua reforma das finanças e da governança vaticana, a sua luta contra a pedofilia, a sua reforma do estatuto dos divorciados recasados terá visto Francisco percorrer todo o caminho com uma forte preocupação pela verificação e eficiência e uma desconfiança nos seus colaboradores. Criado cedo, trabalhador, concreto, o Papa, segundo vários testemunhos diretos de personalidades que trabalharam regularmente com ele, não deixa nada ao acaso e vai realmente ao detalhe. Este político, amando o poder ao contrário do seu antecessor, sabe como demitir aqueles que não partilham do seu plano de reforma, às vezes com alguma violência. Ele não se esquiva de estratégias paralelas, confiando o arquivo a terceiros para atingir seus objetivos, sem que o responsável oficial saiba nada sobre isso. Este homem de poder adota os métodos do poder enquanto é um homem de oração familiarizado com os hábitos dos homens de oração. […]
A quinta obra de Francisco, que marcará o seu balanço, é a reforma do exercício do poder papal. […] Francisco trabalhou para limitar o seu próprio poder, mas paradoxalmente liderou o Vaticano como um autocrata, de acordo com muitos testemunhos concordantes e de alto nível, o que não foi necessariamente percebido do exterior. Na sua reforma curial publicada em março de 2022, praticamente aboliu o cargo de seu primeiro-ministro, de quem só restou o nome para dar ao papa o comando de toda a estrutura vaticana. Além disso, assumiu a direção do dicastério maior, o da “Evangelização dos Povos”. Gere quase metade das igrejas do planeta, as dos países de missão, ainda não estabilizadas administrativa e financeiramente como o são as dioceses dos países ocidentais. Mas juntamente com este poder papal total no Vaticano, Francisco redistribuiu o poder eclesial sobre o corpo romano do “sínodo dos bispos”, destinado a injetar uma cultura descentralizada e democrática em todos os níveis da Igreja. Por outro lado, reforçou o poder de decisão local das conferências episcopais. Será necessário observar o próximo pontificado para verificar se esta vontade de Francisco terá sido realista e aplicável.
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Como o Papa Francisco abalou o Vaticano: trechos exclusivos do livro de Jean-Marie Guénois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU