19 Março 2021
“Se hoje, nós, ateus, escutamos o Papa, não é para o glorificar, nem pelo desejo de minimizar ou dissimular as diferenças (ao contrário, nós as buscamos e enfatizamos sem cessar). Hoje, escutamos o Papa porque em seu discurso há muitas coisas que não temos, coisas que nos fazem falta. É conhecida a piada atribuída a Stalin quando, ameaçado pelo chanceler da França com uma censura do Vaticano, respondeu com sarcasmo: quantas divisões tem o Papa? Para quem deseja pensar a transformação do mundo após a pandemia, para quem tem os olhos colocados na articulação do próximo ciclo de lutas para democratizar a globalização, a teologia geopolítica do Papa Francisco tem, hoje, várias divisões para contribuir”, escreve Pablo Bustinduy, professor adjunto no City College of New York e na School of Professional Studies da New York University, em artigo publicado por Ctxt. A tradução é do Cepat.
O mundo se agitava entre 2014 e 2016, quando ocorreram os Encontros Mundiais de Movimentos Populares convocados pelo Papa Francisco, era distinto do que hoje agoniza sob o efeito da pandemia. Então, as ideias progressistas, na falta de um termo melhor, estavam em plena ebulição. Desde a primavera de 2011, vinham se sucedendo levantes e revoltas populares – de Atenas a São Paulo, de Nova York a Istambul – contra uma ordem global que, após uma catástrofe financeira sem precedentes, em quase um século, se rearticulava com dificuldade, tanto no centro como na periferia.
Com exceção da América Latina, que vinha encadeando uma longa década de experiências políticas progressistas, para o resto do mundo a mobilização que seguiu à crise supôs uma novidade. Finalmente, após os longos anos da pós-guerra fria, parecia que se abria uma oportunidade de transformação política e social, em termos essencialmente democráticos. Inclusive, o Partido Democrata estadunidense e o Partido Trabalhista britânico, dois totens do consenso na era neoliberal, foram objeto de assaltos progressistas que seriam impensáveis, há apenas alguns anos.
A própria eleição do Papa Bergoglio, após os anos de rigor teológico de Ratzinger e o papado conservador de Wojtyla, sintonizava-se com essa ascendência de um ciclo progressista, que fazia com que seus efeitos fossem sentidos de Washington à Cidade do Vaticano. Naquela reunião de líderes políticos e movimentos sociais de todo o mundo, parecia se cristalizar essa investida das forças progressistas. O Papa dos pobres abençoava sua tentativa de construir uma alternativa democrática ao projeto falido da globalização neoliberal.
Esse ciclo político logo deu sinais de esgotamento. O referendo do Brexit e a eleição de Donald Trump, ocorrida a apenas 72 horas do último encontro de Francisco com as organizações populares, simbolizaram uma mudança de trajetória, uma flexão conservadora, se não reacionária, do espírito de impugnação surgido dos protestos após a crise financeira. Claro que essa articulação esteve em disputa desde o início: a deflagração do Tea Party, do qual Trump é herdeiro, aconteceu dois anos antes das primeiras marchas do Occupy Wall Street.
Quando o Syriza venceu as eleições de 2014 para o Parlamento Europeu, com Alexis Tsipras como candidato comum da esquerda do continente, seus 6 novos deputados se encontraram, em Estrasburgo, com 23 eleitos da Frente Nacional e 24 do UKIP. Um fio marrom une a refundação do lepenismo, a evolução de Orbán e as vitórias de Trump, Duterte e Bolsonaro: é a continuidade de um ciclo reacionário que também nasceu como resposta à crise da globalização recente.
Para quem assistisse os encontros de Roma e Santa Cruz, para quem escutasse ali as palavras de Francisco sobre o furacão de esperança que estava por vir, a primazia desse nosso sujeito reacionário parecia tudo, menos inevitável. É verdade que, visto com a perspectiva que o tempo nos oferece, naquele momento, o balanço já era pouco promissor.
A América Latina vivia os inícios de uma agressiva recomposição conservadora, cujos efeitos seguem sendo notados, quase uma década depois. As revoluções árabes, com a exceção heroica da Tunísia, sangravam esmagadas pela repressão, a instrumentalização política e uma complexa guerra regional onde, diretamente ou por interposição, pesaram todos os interesses em jogo no Oriente Médio.
O destino do governo grego logo marcaria todas as dificuldades que a esquerda populista iria encontrar no continente europeu, ao passo que Corbyn e Sanders (e depois, sempre por margens exíguas e parecidas, de 1 a 2%, também Podemos, a França Insubmissa de Mélenchon, as Frentes Amplas do Chile e Peru e a Colômbia Humana de Gustavo Petro) ficavam às portas de assumir o poder, apesar de seus notáveis resultados eleitorais.
Quase sem exceção, essas doces derrotas foram seguidas por desdobramentos na mobilização e a força social dos novos atores da esquerda e, antes ou depois, também por notáveis retrocessos nas urnas. Muitas vezes, o que no início pareciam causas de fortalecimento destes movimentos – a novidade, a juventude, a transversalidade ideológica e a criatividade organizativa – se tornaram razões para explicar sua fragilidade ou desconcerto.
Talvez por esse desenvolvimento, ao reler as palavras que Francisco dirige aos movimentos populares no momento crítico daquela mudança de ciclo, no ponto exato de bifurcação entre o impulso progressista e a reação conservadora, não é possível evitar um certo assombro. Sem dúvida, Francisco estava intervindo na conjuntura política concreta. O Papa denuncia a falência moral do sistema econômico, o auge da desigualdade, a crise migratória, ecológica e social. Francisco incentiva o compromisso político, e chama os jovens a se mobilizar, se organizar e dar o salto para a política das “grandes decisões”.
Em Santa Cruz, com Morales, e em Roma, com Mujica, em seus intercâmbios com Sanders e o Podemos, em sua capacidade de convocação e reunião de movimentos populares dos cinco continentes, o Papa reconhece esse sujeito político internacional, o acompanha, orienta e previne.
Mas, com a perspectiva da leitura de suas palavras a partir da crise seguinte, parece claro que nestes discursos Bergoglio estava intervindo também para além daquela conjuntura política. Francisco está pensando o mundo em uma escala diferente, em um ciclo mais longo para trás e também para frente, com um discurso mais amplo e, em vista dos fatos, também mais sólido que o daquela esquerda ascendente para a qual, então, estava dando a sua bênção. Cinco anos depois, em uma hora crítica para o futuro da globalização, a mensagem de Bergoglio continua sendo uma referência inescapável para sua crítica e para a imaginação de uma alternativa melhor. É obrigatório se perguntar o que confere a seu discurso essa capacidade de chegada e sobrevivência.
Ao contrário do que possa parecer, o discurso político do Papa se apoia em uma ontologia conservadora. Francisco não rompe com os pressupostos fundamentais da teologia de Ratzinger, também se dirige a um mundo que perdeu sua relação com o absoluto, assolado por uma mescla de narcisismo e vazio espiritual, pela ausência de enraizamento e de fundamento real para a experiência.
Carlo Invernizzi Accetti (Relativism and religión: why democratic societies do not need moral absolutes, 2015) escreveu uma formidável história da posição da Igreja Católica frente ao relativismo, desde a rejeição frontal ao Iluminismo e a modernidade, que levou Leão XIII e Pio IX a promulgar o boicote dos cristãos à política burguesa por ir contra a ordem natural da sociedade, até a tentativa recente de afirmar o cristianismo como fundamento e limite da democracia, última barreira contra os perigos da tirania ou do colapso moral da sociedade sobre si mesma.
Papa de Roma, Francisco preserva esta ontologia fundamental: seu evangelho é uma resposta à pobreza moral de um mundo desancorado, distanciado do amor de Deus e da busca da verdade, esvaziado pelo relativismo e o presentismo, sedento de transcendência, de alívio e reunificação. A originalidade de Francisco consiste em enquadrar essa teologia da pobreza em uma crítica à economia política contemporânea.
Diferente de Ratzinger, para Francisco a pobreza não é só uma questão moral, mas também econômica e social. Desde sua primeira encíclica, Francisco denuncia um sistema de produção, distribuição e consumo que gera desigualdade, miséria e expropriação, mas também desenraizamento, solidão e indiferença.
É a lógica agressiva do neoliberalismo, a competição desenfreada e a acumulação sem limite do capital que produzem formas cada vez mais insuportáveis de desumanização, de vazio ético e social (“essa economia mata”, disse na Evangelii Gaudium). Na economia idolátrica do capitalismo contemporâneo está a origem da exploração, a subversão de todos os valores do Evangelho e o distanciamento geral dos povos de si mesmos e de Deus.
Pensar a origem da pobreza requer necessariamente entender o funcionamento desse sistema econômico. Por isso, Francisco é um pensador da globalização, que repetidamente a apresenta como um sistema global, mas não universal. A razão é que a ordem econômica em que vivemos conquistou o planeta inteiro, domina todo o seu território, mas só é capaz de funcionar por meio do descarte permanente, da divisão entre ricos e pobres, da separação de centros e periferias. A globalização neoliberal unifica e nivela a terra, mas só a pode governar através da submissão e a exclusão, de relações coloniais em sua essência, carregadas de poder, como fluxos de dominação que voltam sobre si mesmos, em um mundo hiperconectado.
Essa densidade de poder e violência tem para Francisco um nome, Lampedusa [epicentro da crise mediterrânea de refugiados dos últimos anos], onde se expressa a falência moral e o fracasso de nosso presente. Mas Lampedusa não é um acidente ou uma mera calamidade (nem sequer é um lugar concreto: existem Lampedusas em todas as partes). Lampedusa é a condensação de um regime político-econômico global que funciona invisibilizando a si mesmo: um símbolo daquilo que não queremos ver, do que oculta a globalização do dinheiro e a indiferença. Por isso, Francisco diz mais de uma vez: Lampedusa tem causas econômicas e políticas e continuará existindo até que essas causas desapareçam. Seu sacerdócio se torna, assim, um chamado a se organizar para transformar este mundo pobre e interconectado, ou seja, um programa político.
Diante daqueles que o rotulam de marxista ou de peronista, Francisco rebate ironicamente que, na realidade, pelo contrário, são os comunistas que pensam como os cristãos (como afirmou em sua entrevista ao La Repubblica, em 11/11/2026). Não se trata apenas de recuperar a vocação popular da Igreja, nascida como sublevação diante da injustiça na periferia de um grande império. Tampouco de reivindicar na teologia do povo a experiência vivida do colonialismo dos povos da América Latina. Francisco apresenta a essência da mensagem de Cristo como uma práxis política, como um exercício de solidariedade e justiça através da transformação social.
A misericórdia cristã não é mais apenas o suspiro dos explorados, aquele “coração de um mundo sem coração”, que serve para aliviar e silenciar, mas a base de um programa político que, a partir das periferias, chama a uma sublevação geral contra a ordem da globalização. Terra, teto e trabalho é um programa para reorientar a própria base da sociedade, para a enraizar novamente na liberdade, igualdade e fraternidade, apresentadas como valores essencialmente cristãos.
Com extraordinária simplicidade, os discursos de Roma e Santa Cruz traçam uma linha que divide em dois campos o espaço político e social. Na política, é preciso escolher entre estar com os pobres ou com os mercadores, entre Cristo e Barrabás. A mensagem de Francisco se dirige inequivocamente aos pobres, àqueles que sofrem e são excluídos.
Pobres são aqueles que habitam todas as periferias, incluídas as que estão mais perto de nós, incluídas as que estão dentro. Pobres são as vítimas deste sistema econômico, exploradas, descartadas, despossuídas, marginalizadas, aqueles que conhecem de perto a violência e a dominação e lutam para se desfazer dela.
Mas pobres são também aqueles que têm medo e resistem a se refugiar no culto do dinheiro e das nações, que almejam direção e sentido, que rejeitam a atrofia moral e a indiferença geradas pelo neoliberalismo (nessa atrofia, todos somos, em última instância, pobres). Pobres são aqueles que se levantam contra a injustiça e, ao se encontrarem, juntos, almejam comunidade, plenitude e justiça. Um povo não é mais do que o nome desse encontro.
Para Francisco, essa dualidade dos pobres e os povos encarna o sujeito político do cristianismo. São chamados a intervir na política das grandes decisões, nos espaços em que eram invisíveis e vetados, não para afirmar a si mesmos, não para impor interesses, mas para ‘viver bem’, para se fazer guardiões da Terra, de nossa casa comum.
Francisco convoca para defender a Terra na qual encontramos raízes e sentido, fixação e transcendência, contra um sistema que a explora e saqueia, a profana e esvazia (Laudato Si’, 101). Nessa ecologia política, na defesa do planeta, da justiça e da paz, descobrimos uma vocação comum entre diferentes, o chamado a nos encontrar e transformar o mundo. Nesse encontro, adverte o Papa, está o destino da humanidade.
Não é um segredo que aquele sujeito político ascendente que o Papa quis reunir no Vaticano, hoje, enfrenta enormes dificuldades. Algumas delas se explicam por conjunturas nacionais ou locais, outras por desgaste ou por erros próprios, outras talvez só por vicissitudes. Em quase todos os casos, dá a sensação de que para a esquerda segue existindo algo inabordável na globalização, algo que lhe escapa, como se não se soubesse o que fazer exatamente com ela.
Talvez essa dificuldade seja uma herança da Guerra Fria, daquele velho debate de classes e nações e que opunha a fé internacionalista e o culto ao Estado. Talvez seja uma dificuldade meramente programática, fruto do esgotamento de um ciclo que hoje requer ideias novas, ou de uma perda de força social que corresponde a uma queda na imaginação. Seja como for, em uma hora de crise profunda e decisiva da globalização, essa carência se faz notar.
Sobre esse vazio, a sombra do discurso de Francisco se alarga ainda mais. Sua terceira encíclica, Fratelli Tutti, talvez seja o documento político mais completo que se tenha apresentado sobre a pandemia. A encíclica disseca as causas profundas da crise e seus efeitos sobre os sistemas produtivos, ideológicos e culturais do mundo contemporâneo. Francisco completa a crítica à economia política da globalização e enlaça sua ecologia política à análise dos fluxos econômicos e migratórios, dos conflitos bélicos e geopolíticos, até com uma proposta de reforma das instituições de ordem multilateral.
O texto desarma a teoria e a prática neoliberal e ressalta a tarefa de reconstrução política e social, com uma defesa aberta da herança da revolução francesa e das lutas sociais da modernidade. Universal em sua aspiração, o discurso do Papa reúne a crítica ao existente e a imaginação de um horizonte político para sua superação.
Se hoje, nós, ateus, escutamos o Papa, não é para o glorificar, nem pelo desejo de minimizar ou dissimular as diferenças (ao contrário, nós as buscamos e enfatizamos sem cessar). Hoje, escutamos o Papa porque em seu discurso há muitas coisas que não temos, coisas que nos fazem falta. É conhecida a piada atribuída a Stalin quando, ameaçado pelo chanceler da França com uma censura do Vaticano, respondeu com sarcasmo: quantas divisões tem o Papa? Para quem deseja pensar a transformação do mundo após a pandemia, para quem tem os olhos colocados na articulação do próximo ciclo de lutas para democratizar a globalização, a teologia geopolítica do Papa Francisco tem, hoje, várias divisões para contribuir.
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A teologia geopolítica do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU