01 Setembro 2020
"O soberanismo agressivo, mesclado ou não com fundamentalismo religioso – nos Estados Unidos os fundamentalistas evangélicos e os ultraconservadores católicos fazem parte da base eleitoral trumpiana – é um aspecto imprescindível da realidade geopolítica de hoje, que transcende a área cristã", escreve Marco Politi, jornalista e ensaísta italiano, em artigo publicado por Viandanti, 24-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Oh baby, baby, it’s a wild world”, cantava Cat Stevens meio século atrás. “É um mundo selvagem e é difícil se sair dessa apenas com um sorriso ...”. O panorama internacional em que se desenvolve o pontificado de Jorge Mario Bergoglio é realmente difícil.
Nos últimos cinquenta anos, dois papas se destacaram com ênfase no cenário internacional: Francisco e João Paulo II, mas, olhando para trás, o Papa Wojtyla estava se movendo em uma dimensão internacional que ainda era substancialmente estável. Antes de 1989, graças ao equilíbrio atômico entre as duas superpotências EUA e URSS, e nas primeiras décadas após a queda do império soviético graças à supremacia estadunidense que aparentemente parecia eterna. O Papa Francisco opera em meio a uma múltipla convulsão causada em grande parte pelo surgimento de um novo sujeito: o populismo soberanista xenófobo e tendencialmente supremacista, com preocupantes acentos nacional-clericais.
A Europa e a Itália de Bergoglio não são mais aquelas de Karol Wojtyla. A irrupção do soberanismo trouxe para a Itália – no que diz respeito às relações entre a política e a Igreja Católica – um fenômeno sem precedentes na história republicana: o surgimento de líderes e grupos políticos em oposição frontal ao pontífice reinante. Salvini, que em Milão – com uma manipulação precisa dos símbolos religiosos – agita o rosário invocando a ajuda de Nossa Senhora para as eleições europeias, é o primeiro antipapa político da história italiana contemporânea. Não é folclore, é um sinal dos tempos: o aparecimento no cenário internacional de movimentos políticos "salvíficos", que agitam a bandeira da identidade étnica e da aparente rebelião contra as elites – movimentos nos quais convergem também fragmentos da guerra civil em curso no catolicismo. Populismo, soberanismo e clericalismo nacionalista.
A Europa Oriental, que João Paulo II após a queda do muro de Yalta sonhava estar firmemente integrada ao desenho europeu, revela o domínio na Hungria e na Polônia de regimes autoritários, ideologicamente agressivos, intolerantes em relação à independência do judiciário e da liberdade de imprensa. No lugar do "retorno à democracia", defendido pelos dissidentes do Leste nas décadas de 1960-70-80, afirmaram-se regimes híbridos orgulhosamente opostos à democracia liberal. Com um ressurgimento inesperado do clericalismo nacionalista.
Em outubro de 2017 – mobilizando um milhão de fiéis do Mar Báltico às Montanhas Tatra – vinte e duas das quarenta e duas dioceses da Polônia organizaram um dia de rosário nacional nas fronteiras polonesas para invocar a defesa de Nossa Senhora contra o espectro do ateísmo e uma alegada invasão islâmica,
O Osservatore Romano glacialmente ignorou o evento. Essa não é a Europa, essa não é a Igreja que o Papa Francisco tem em mente. Nem mesmo os arames farpados antimigrantes correspondem à sua visão, exibidos pelo primeiro-ministro húngaro Viktor Orban e envoltos na retórica de uma Hungria fundada em "valores cristãos".
Por outro lado, movimentos populistas e soberanistas com cunho secular também cresceram no Velho Continente como os apoiadores do Brexit na Grã-Bretanha e os partidários da AfD, a extrema direita alemã, xenófoba e muitas vezes imbuída de nostalgias nazistas, que em 2017 ingressou no parlamento federal em Berlim com mais de 12 por cento dos votos. A onda soberanista é o primeiro dos fatores negativos com que a Santa Sé deve medir-se no novo clima internacional. A integração europeia, que de Paulo VI ao Papa Francisco foi um ponto firme da política do Vaticano (para além das referências às "raízes cristãs"), hoje está sendo questionada. O risco de desintegração não é imaginário. Para Bergoglio, é motivo de grande preocupação. A desintegração do multilateralismo.
Igualmente preocupante é para o Vaticano o curso político seguido pelo presidente estadunidense Donald Trump. Depois da Segunda Guerra Mundial, com situações várias – basta pensar na aliança entre Wojtyla e Reagan para apoiar o Solidariedade na Polônia e depois na dura oposição de Wojtyla à invasão do Iraque realizada em 2003 pelo presidente George W. Bush – sempre Washington representou um ponto de referência para a política do Vaticano, um centro com o qual se podia discordar e colaborar, em qualquer caso no contexto de um diálogo contínuo. Com o governo Trump, essa relação de décadas foi rompida.
Nos últimos anos, Trump tem seguido uma política de desintegração do multilateralismo nos planos social, econômico e político. O exato oposto da linha defendida por Francisco. Trump se recusou a assinar a Convenção dos Migrantes da ONU, retirou os Estados Unidos do Acordo sobre o Clima, da Unesco, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, da Organização Mundial da Saúde. E, como se não bastasse, o presidente dos EUA se lançou em uma corrida para a militarização do espaço, denunciou o acordo Inf (Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário) com a Rússia sobre os mísseis nucleares de médio alcance, denunciou o acordo Open Skies que permite reconhecimento aéreo recíproco entre Washington e Moscou para evitar avaliações errôneas sobre possíveis ataques.
No Oriente Médio, Trump denunciou o acordo nuclear com o Irã e lançou um fantasmagórico plano de paz (rejeitado pela União Europeia, China e Rússia), que incentiva o primeiro-ministro israelense Netanyahu a ocupar até 40 por cento das terras palestinas, contrariamente a toda norma do direito internacional. Dessa forma, está colapsando toda a arquitetura do multilateralismo, na qual o desenvolvimento foi baseado o desenvolvimento das relações internacionais a partir da década de 1970: um processo de desarmamento e a busca de equilíbrios pacíficos que a Santa Sé sempre encorajou.
O soberanismo agressivo, mesclado ou não com fundamentalismo religioso – nos Estados Unidos os fundamentalistas evangélicos e os ultraconservadores católicos fazem parte da base eleitoral trumpiana – é um aspecto imprescindível da realidade geopolítica de hoje, que transcende a área cristã.
Na Turquia, Erdogan força a retransformação de Hagia Sophia em mesquita, na Índia, o fundamentalismo hindu ataca muçulmanos e cristãos, em Mianmar o fundamentalismo budista persegue e expulsa violentamente os Rohingya de fé islâmica.
Combater a cultura do ódio.
É a era do darwinismo nacionalista, a era dos autoritarismos, das lideranças de ferro: Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Netanyahu, Al Sisi, Duterte, Bolsonaro. O Papa Francisco percebeu imediatamente a gravidade do fenômeno. Diante da mistura explosiva de nacionalismo e populismo, o Papa Francisco há alguns anos alerta contra a cultura do ódio evocando expressamente o nome de Hitler.
Ainda em fevereiro, em um encontro com os bispos do Mediterrâneo em Bari, o pontífice alertava que algumas intervenções dos atuais líderes populistas lhe lembram palavras "que se ouviam nos anos 30 do século passado". O pontífice disse ao jornalista Austen Ivereigh que alguns comícios se assemelham aos "discursos de Hitler em 1933". O populismo que semeia o ódio, frisou ele diante de uma audiência de jovens no ano passado, abre espaço para "um caminho de destruição ... (está) se preparando para a terceira guerra mundial". Em uma recente conversa por telefone entre o Papa e a chanceler alemã Merkel, o termo recorrente foi Zusammenhalten: “Manter unidos”. Manter a Europa unida, manter unida a arquitetura do multilateralismo, manter o objetivo da cooperação internacional para o desenvolvimento de todos.
Nessa fase histórica de mudança, Francisco insiste tenazmente no tema da paz, do multilateralismo e do desarmamento, chegando a advertir que a simples posse de armas nucleares já é "imoral e criminosa", como afirmou em Hiroshima em novembro de 2019. Ao mesmo tempo, recusa-se a arrolar o Vaticano na guerra fria desencadeada por Trump contra a China (embora entre Pequim e a Santa Sé, devido à intromissão do governo sobre a atividade das religiões, os problemas não são poucos: a começar pela proibição de ministrar educação religiosa a menores).
Por uma globalização com rosto humano.
Profeta, declarou um de seus colaboradores no Vaticano, não é quem prevê o futuro, mas interpreta os sinais dos tempos. Nesse sentido, Francisco é a única autoridade internacional que não só denuncia sistematicamente a ação desintegradora do soberanismo agressivo, mas aponta ao público internacional os temas essenciais a serem abordados e resolvidos para que se construa uma "globalização com rosto humano". O fenômeno histórico das migrações, a extensão dramática da "desigualdade" de massa, as novas escravidões e a estreita ligação entre a degradação ambiental e a degradação social.
O Papa Bergoglio, especialmente sobre a violenta praga do Covid-19, é o único líder internacional que defende em voz alta que não há retorno ao sistema econômico-financeiro de rapina anterior à pandemia. “De uma crise como esta ninguém sai igual, como antes – observou – sai melhor ou pior.” Esta é sua mensagem, ao mesmo tempo, geopolítica e profética.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Profecia e geopolítica de Francisco. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU