As reformas do Papa Francisco para a governança da Igreja diferem de quaisquer outras. Artigo de Thomas Reese

Imagem: Pixabay

16 Julho 2022

 

“A Cúria agora é uma equipe, um staff, não parte da cadeia de comando. É mais como um serviço público do que uma elite governante. Isso é revolucionário. Isso afasta o papado de seu modelo monárquico, no qual o papa é rei com cardeais e bispos como príncipes e nobres, para um modelo colegial apresentado pelo Concílio Vaticano II. Francisco quer aumentar o potencial das conferências episcopais, não diminuí-las, como fizeram João Paulo II e Bento XVI”, escreve o jesuíta estadunidense Thomas Reese, jornalista, em artigo publicado por Religion News Service, 15-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Depois que as reformas estabelecidas pelo Papa Francisco forem totalmente implementadas, a Cúria Romana nunca mais será a mesma. Seus predecessores falaram sobre reformá-la, mas comparados com Francisco eles estavam somente reorganizando as mesas.

 

As mudanças de Francisco, a maior parte estabelecida na constituição apostólica Praedicate Evangelium (“Pregai o Evangelho”), publicada em 19 de março deste ano, são as mais dramáticas feitas para a governança da Igreja desde o Papa Paulo VI, quem, em 1965, estabeleceu o sínodo dos bispos para aconselhar o papa. Essa inovação nunca viveu todo seu potencial porque os bispos sinodais eram forçados a se curvar aos cardeais da cúria. Somente sob Francisco os padres sinodais foram liberados para falar fortemente.

 

Paulo também reformou o processo de eleição papal pelo aumento do número de cardeais eleitores para 120 e barrando cardeais de mais de 80 anos de idade de participarem de conclaves. Ele também obrigou cardeais da cúria a apresentarem suas renúncias quando chegassem aos 75 anos.

 

As reformas de Francisco são igualmente dramáticas.

 

Ele abriu quase todos os escritórios vaticanos para liderança leiga, incluindo chefes de dicastérios (que antes eram chamados de congregações). Isso significa que mesmo o Dicastério para os Bispos, o qual recomenda candidatos para o episcopado em todo o mundo, pode agora ser chefiado por uma religiosa consagrada. A chefia do Dicastério para a Doutrina da Fé pode caber a uma mulher teóloga. Mesmo o secretário de Estado, a mais alta autoridade depois do Papa, poderá ser um leigo.

 

É desnecessário dizer que esses leigos não podem ser simplesmente escolhidos na rua. Eles precisam de formação teológica, diplomática, administrativa, jurídica e experiência para assumir essas posições; não são contratações fáceis, especialmente se o Vaticano não oferecer salários competitivos. Ademais de terem a formação necessária, os clérigos e religiosos são baratos.

 

Francisco vê o papel da Cúria de uma maneira totalmente diferente dos papas anteriores. “A Cúria Romana não se estabelece entre o Papa e os Bispos, mas está a serviço de ambos, segundo as modalidades próprias da natureza de cada um”, segundo a nova Constituição Apostólica.

 

Em outras palavras, a Cúria é uma equipe, um staff, não parte da cadeia de comando. É mais como um serviço público do que uma elite governante.

 

Isso é revolucionário. Isso afasta o papado de seu modelo monárquico, no qual o papa é rei com cardeais e bispos como príncipes e nobres, para um modelo colegial apresentado pelo Concílio Vaticano II. Francisco quer aumentar o potencial das conferências episcopais, não diminuí-las, como fizeram João Paulo II e Bento XVI.

 

No entanto, Praedicate Evangelium reflete a ambiguidade intencional do Vaticano II, que promoveu a colegialidade também procurando preservar o poder absoluto do papado. A constituição de Francisco cita o Vaticano II ao afirmar que o papa, “no exercício de sua autoridade suprema, plena e imediata sobre a Igreja universal, emprega os vários departamentos da Cúria Romana, que atuam em seu nome e por sua autoridade para o bem da Igreja”. Igrejas e ao serviço dos pastores sagrados”.

 

No final, a Cúria será tão colegial quanto os futuros papas quiserem que seja. Já vimos Francisco demonstrar vontade de intervir diretamente nas dioceses onde um bispo não protegeu as crianças ou falhou em seus deveres. O equilíbrio adequado entre autoridade papal e colegialidade é uma arte difícil, se não impossível, de legislar.

 

Grande parte da Praedicate Evangelium simplesmente codifica as reformas que Francisco implementou gradualmente desde sua eleição de 2013. O mais importante é a Secretaria para a Economia, a nova polícia financeira do Vaticano criada em 2014, que “exerce monitoramento e vigilância em questões administrativas, econômicas e financeiras em relação às instituições curiais, escritórios e outras instituições associadas à Santa Sé”.

 

Os escândalos financeiros que assolaram o Vaticano convenceram o papa da necessidade de ter esse escritório, que tem o poder de monitorar o orçamento, os gastos e os investimentos de todos os escritórios do Vaticano, incluindo a Secretaria de Estado. Também elabora o orçamento anual e estabelece diretrizes para compras.

 

O primeiro nomeado como secretário da Economia, o cardeal George Pell, encontrou forte oposição da Cúria e acabou tendo que renunciar para lidar com seus próprios problemas legais na Austrália. O atual secretário, o jesuíta Juan Antonio Guerrero Alves, é um economista formado com experiência administrativa dirigindo as principais instituições de sua ordem em Roma.

 

A Secretaria da Economia funciona sob o Conselho da Economia, composto por oito cardeais ou bispos e sete leigos, escolhidos pelo papa para mandatos de cinco anos e encarregados de seguir “as melhores práticas reconhecidas internacionalmente no campo da administração pública e buscar para uma gestão administrativa e financeira tanto ética quanto eficiente.”

 

As melhores práticas para o Vaticano, como na Itália, não são o que são em outros lugares. É difícil demitir alguém. As comunicações do Vaticano, por exemplo, centradas na mídia impressa e rádio, tiveram dificuldade em se ajustar ao ambiente da mídia digital. Rupert Murdoch, acionista majoritário da Fox, pode demitir funcionários impiedosamente, mas o Vaticano não. O desenvolvimento profissional e a reciclagem precisam ser fortalecidos no Vaticano.

 

Além disso, clérigos e religiosos, ao contrário dos leigos, devem deixar a Cúria após cinco anos, para desencorajar o carreirismo. Mas isso também dificulta a manutenção de uma equipe profissional experiente (felizmente, exceções podem ser feitas).

 

Muito se tem falado na imprensa sobre a suposta igualdade de todos os dicastérios. É inevitável, porém, que alguns dicastérios sejam mais iguais que outros. O principal dos conflitos de competências; a disputa sobre quem decide o que deve ser submetido ao Supremo Tribunal da Signatura Apostólica, mas que, ainda, alguns devem bater cabeças juntos e mediar as disputas sobre as políticas.

 

Sob Paulo VI, o sostituto (substituto) na Secretaria de Estado era o ator-chave na coordenação da política e da ação na Cúria. Sob João Paulo II, a Congregação (agora Dicastério) para a Doutrina da Fé era suprema quando se tratava dos documentos curiais, enquanto a Secretaria de Estado era suprema em diplomacia e política.

 

A nova constituição dá ao sostituto a responsabilidade de “promover a cooperação entre os dicastérios, agências e escritórios sem prejuízo de sua autonomia”, mas dá ao Dicastério da Doutrina da Fé o direito de revisar documentos “por meio de um processo de discussão e entendimento mútuo que ajudará na tomada de decisões apropriadas”.

 

Uma grande falha da nova constituição é que ela não racionaliza as funções disciplinares da Cúria. O Vaticano precisa de um departamento de justiça para investigar e processar crimes eclesiásticos, incluindo heresia, abuso sexual, crimes financeiros, especialmente aqueles cometidos por bispos ou autoridades vaticanas.

 

Tal pasta, idealmente, empregaria advogados para apresentarem provas a tribunais independentes, que passariam a julgá-los. Hoje há uma violação do devido processo, os investigadores são os juízes.

 

Francisco tem feito grandes avanços na reforma da Cúria, como foi pedido pelo Vaticano II e os cardeais que o elegeram. Essas reformas precisam ser implementadas, e isso levará tempo.

 

Ademais, novas circunstâncias exigirão novas estruturas; novos papas terão prioridades diferentes. Novas formas de operar no mundo secular proverão ideias sobre como melhorar a governança da Igreja.

 

Como a Igreja, a Cúria é semper reformanda.

 

 

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