24 Fevereiro 2023
As lideranças da Igreja insistem em enfatizar que o processo sinodal não tem a ver principalmente com a mudança de estruturas. Mas o processo já está fazendo isso, ao permitir que diferentes estilos e tradições católicas continentais se expressem de maneiras sem precedentes.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em La Croix International, 23-02-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não sabemos qual será o resultado final do Sínodo sobre a sinodalidade. Mas já sabemos que o processo sinodal é um momento crucial para tornar real a transição de uma Igreja Católica eurocêntrica para uma Igreja Católica global.
Estamos agora em um momento crucial do processo em várias etapas que culminará em duas assembleias do Sínodo dos Bispos em Roma, em outubro de 2023 e outubro de 2024.
As assembleias continentais para a Europa, o Oriente Médio e a Oceania já foram realizadas. E um grupo de delegados representando 268 dioceses dos Estados Unidos e do Canadá se reuniram em Orlando (Flórida), de 13 a 17 de fevereiro, para redigir a resposta ao Documento de Trabalho para a Etapa Continental.
A assembleia para a América Latina e o Caribe está sendo desenvolvida em quatro diferentes encontros regionais até o fim de março. E a assembleia para a Ásia ocorre no fim de fevereiro em Bangkok (Tailândia), enquanto a assembleia para a África e Madagascar será realizada de 1º a 6 de março em Adis Abeba (Etiópia).
Cada assembleia continental para o processo sinodal está revelando e expondo a complexidade daquilo que a Igreja Católica está vivendo neste momento. As assembleias para o Oriente Médio e a Europa são um bom exemplo disso.
“O sinodalismo é um núcleo da herança de nossas Igrejas orientais”, observou a declaração de encerramento da assembleia continental para o Oriente Médio, realizada em Bethânia, no Líbano, de 13 a 17 de fevereiro. Para além do neologismo “sinodalismo” – que é usado no lugar de sinodalidade, na tradução do árabe para o inglês –, é interessante ver o quanto as Igrejas Católicas do Oriente Médio têm em comum com as de outras partes do mundo.
Também é interessante ver como essa assembleia continental escapou da visão um tanto romântica do Vaticano sobre a tradição sinodal nas Igrejas orientais (católicas e ortodoxas), que Roma às vezes evoca contra demandas mais progressistas que surgem em outras assembleias sinodais.
Ao mesmo tempo, as Igrejas Católicas orientais são singularmente capazes de demonstrar a longa tradição sobre a qual o processo sinodal do Papa Francisco está sendo construído e como a sinodalidade está ajudando o diálogo ecumênico a avançar (em novembro de 2022, a Fundação Pro Oriente na Áustria e a Universidade Angelicum de Roma organizaram dois congressos sobre a escuta às Igrejas ortodoxas e orientais sobre sua teologia e suas experiências com a sinodalidade).
As Igrejas Católicas orientais são essenciais – e isso ficou bem visível já no Concílio Vaticano II (1962-1965) – para oferecer uma visão mais católica do catolicismo: a identidade romana e latina da Igreja tem sido muitas vezes ideologizada (vejam-se as contínuas e exacerbadas controvérsias em torno da “missa em latim” pré-Vaticano II) para torná-la coessencial à fé católica – algo errôneo tanto do ponto de vista histórico quanto teológico.
O segundo exemplo é a Assembleia Continental para a Europa, realizada em Praga (República Tcheca) de 5 a 12 de fevereiro. Além das óbvias e esperadas tentativas de conter as ousadas propostas teológicas provenientes do “Caminho Sinodal” alemão, o que emergiu foi uma série de fissuras dentro do catolicismo no Velho Continente. Há uma divisão entre as partes oriental e ocidental da Europa na recepção e na percepção do Vaticano II.
Para as Igrejas que sobreviveram ao comunismo e à Guerra Fria no lado oriental da Cortina de Ferro, é muito mais difícil ter uma visão otimista sobre a possibilidade de a Igreja conviver pacífica e criativamente com a cultura secular. O teólogo tcheco Tomas Halík tem falado frequentemente sobre o fato de que as Igrejas Católicas do outro lado da Cortina de Ferro durante a Guerra Fria tinham uma relação muito diferente com o Vaticano II em comparação com as Igrejas Católicas na Europa ocidental e sobre como isso criou uma certa mentalidade de negação sobre a crise dos abusos na Igreja.
Há também uma divisão intracontinental entre o sudoeste da Europa e as pequenas, mas militantes, Igrejas ao norte da Alemanha, com um catolicismo na Escandinávia e nos Países Bálticos preocupado com o fato de que a reforma da Igreja deve sempre defender o ensino católico e nunca “capitular ao Zeitgeist” – como escreveram os bispos escandinavos em sua carta aos bispos alemães, de março de 2022.
A lista de sinais e sintomas de rupturas intracontinentais que emergiram a partir das assembleias sinodais poderia continuar indefinidamente. Mas o que é importante notar aqui é que o processo sinodal é mais do que uma batalha entre progressistas e conservadores – embora existam agendas claramente diferentes e opostas em jogo.
A característica definidora desse processo é que ele está redesenhando algumas características importantes da nossa casa comum, a Igreja, porque coincide cronologicamente e faz parte de uma virada histórica no sentido da deseuropeização do catolicismo.
Isso é mais complexo nos Estados Unidos do que na área geográfica que se estende dos Países Bálticos a Portugal – sem falar da questão sobre se o catolicismo contemporâneo no Reino Unido é cultural e teologicamente mais próximo, digamos, da França e da Alemanha ou do Estados Unidos.
As lideranças da Igreja insistem em enfatizar que o processo sinodal não tem a ver principalmente com a mudança de estruturas. Mas o processo já está fazendo isso, ao permitir que diferentes estilos e tradições católicas continentais se expressem de maneiras sem precedentes.
João Paulo II havia “inventado” as “assembleias especiais” do Sínodo dos Bispos dedicadas a cada continente. Mas elas sempre aconteciam em Roma e sob o estrito controle da Cúria Romana. Desta vez é diferente, assim como já foi diferente na assembleia do Sínodo para a Amazônia em 2019.
Veremos como as diferentes assembleias sinodais continentais de fevereiro e março de 2023 inspirarão as assembleias gerais do Sínodo dos Bispos, que ocorrerão em Roma em outubro de 2023 e em outubro de 2024. Aspectos processuais importantes dessas duas assembleias ainda não estão claros. Por exemplo, quem será incluído entre seus membros, como serão escolhidos e quem os escolherá?
As instituições da Igreja Católica – inclusive o Sínodo – ainda se baseiam em grande parte nas instituições do Império Romano. O direito canônico também ainda se baseia amplamente no direito romano. Décadas atrás, o historiador jurídico Stephan Kuttner já dizia que a lei da Igreja Católica deve redefinir sua relação com suas raízes na lei romana. Essa é uma das coisas que o processo sinodal – que enganosamente tem muito pouco a ver com o direito canônico – pode ser capaz de realizar.
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Sínodo: a virada de uma Igreja eurocêntrica para uma Igreja global. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU