07 Setembro 2015
"Vitor Ramil é justamente o artista que construiu uma estética original, que dá forma à sua arte, que trabalha com a concepção de que estamos no 'centro de uma outra história'" afirma o filósofo.
Imagem: facebook.com |
“Vitor Ramil é justamente o artista que construiu uma estética original, que dá forma à sua arte, que trabalha com a concepção de que estamos no ‘centro de uma outra história’ — concepção que influenciou muitas pessoas e que já tem vários desdobramentos no campo da arte e da cultura”.
A ponderação é do Prof. Dr. Luís Rubira, autor de Vitor Ramil: nascer leva tempo (Identidade, autossuperação e criação de Estrela, Estrela a Longes). Porto Alegre: Editora Publiccatto, 2015, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
De acordo com o pesquisador, ainda em 2004, uma certa incompreensão sobre a trajetória que Ramil “vinha percorrendo enquanto um artista que queria fazer música brasileira a partir do contexto no qual estava inserido levou alguns a não entenderem, por exemplo, o significado do disco Longes quando de seu lançamento”. Rubira analisa o impacto da obra de Ramil na efervescente cena cultural de Pelotas, a Satolep que protagoniza diversas de suas canções e para onde fez questão de voltar a viver e compor, na casa onde passou sua infância.
Luís Rubira (foto abaixo) é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, e na Université de Reims Champagne-Ardenne - URCA, França, realizou um aperfeiçoamento em Filosofia em 2007-2008, bem como um pós-doutorado, recém-concluído, sob orientação de Patrick Wotling. É mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e doutor pela Universidade de São Paulo – USP, com a tese Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores (São Paulo: Discurso Editorial e Editora Barcarolla, 2010). Leciona na UFPEL, no Departamento de Filosofia, e tem um intenso envolvimento com a vida cultural pelotense, tanto que organizou o Almanaque do Bicentenário de Pelotas (Santa Maria: Gráfica e Editora Pallotti), obra em três volumes, publicados em 2012 (volume 1), 2014 (volume 2) e 2015 (volume 3).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como se relacionam identidade, autossuperação e criação de Estrela, estrela a Longes?
Foto: arquivo pessoal
Luís Rubira - Muitos daqueles que acompanharam a trajetória artística de Vitor Ramil sabem que seu primeiro álbum (Estrela, estrela, 1981) era uma obra tão em consonância com a música “brasileira” que Vitor chegou a ser considerado no eixo Rio-São Paulo como o “Milton Nascimento da nova geração”. Reconhecido já aos 19 anos em nível nacional como um artista de talento, o que explica que ele não tenha continuado a assumir esta “identidade” como músico “brasileiro”?
A resposta não é simples, mas um texto recentemente publicado no jornal argentino Página12 (“Milonga ao Sur”, domingo, 28/06/2015) pode nos ajudar a compreender a questão. Nele, Vitor Ramil diz em entrevista que há pouco tempo atrás encontrou algumas anotações que fizera antes de começar a gravar o seu segundo disco (A paixão de V segundo ele próprio, 1984), anotações que versavam sobre uma “estética implosivista”, a qual consistia em reagir aos seus próprios trabalhos, uma “determinação de não facilitar, não acomodar-se aos caminhos que já foram definidos pelos outros”, pois ele queria “encontrar uma linguagem particular” para a suas criações e isto consistia em “reagir a tudo”, inclusive a si próprio, às concepções que adotava.
Pois bem, no livro que acabo de publicar, busco mostrar ao leitor, ao longo de mais de trezentas páginas, como Vitor Ramil, após o lançamento de Estrela, estrela, teve necessidade de ingressar numa espécie de “desconstrução” de si próprio como indivíduo e artista para tentar chegar até esta linguagem original que ele buscava. Esta “desconstrução” envolve um processo de questionamento sobre a própria “identidade”, bem como um percurso interior de “autossuperação”, o qual, por sua vez, materializa-se em suas criações (discos, livros, ensaios).
IHU On-Line - Quais são as peculiaridades desses álbuns no contexto da obra de Vitor Ramil?
Luís Rubira - Cada um dos discos de Vitor Ramil tem sua própria particularidade, sua especificidade e, para muitos, cada um deles é uma obra a ser fruída por si mesma, por excelência. O crítico musical Juarez Fonseca (que cedo detectou o “fenômeno” Vitor Ramil na esfera da música no Rio Grande do Sul e acompanhou criticamente a trajetória do artista publicando diversos artigos e, mais recentemente, um belo texto no Songbook de Vitor Ramil) disse há poucos dias que, para ele, A paixão de V segundo ele próprio (1984) segue sendo o disco ao qual sua audição retorna sucessivamente. O Arthur de Faria foi também um dos primeiros a compreender A paixão de V como a obra-matriz de Vitor.
De fato, é uma obra que continua a nos entregar sempre um pouco mais do Vitor Ramil que viria nos discos seguintes. Do ponto de vista da canção, por sua vez, tudo já estava prefigurado em Estrela, estrela, mas ali Vitor ainda não tinha uma linguagem própria, algo que ele irá obter somente com o desenvolvimento (permanente) de sua concepção da “estética do frio” — o que lhe permitirá retomar o trabalho sobre a canção em A Beça (1995) e Tambong (2000), por exemplo.
De minha parte, penso que Longes (2004) é um disco não somente com uma alta densidade existencial, mas também aquele que fecha um percurso na trajetória do artista, um momento no qual a “estética do frio” já comparece nas canções de forma natural, entranhada na musicalidade de Vitor Ramil. Acho que é dispensável falar sobre Tango (1987) e Ramilonga (1997), pois foram discos que penetraram profundamente no nosso imaginário e muitas pessoas, inclusive, conhecem de memória muitas das canções ali presentes.
IHU On-Line - É adequado compreender Longes como uma espécie de aperfeiçoamento e aprofundamento da linguagem em relação aos trabalhos anteriores como Estrela, Estrela, seu primeiro álbum? Por quê?
Luís Rubira - Na época de lançamento de Longes (2004), eu escrevi um texto em que dizia o seguinte: “Horizonte. Eis uma palavra que está na letra da música que abre o sétimo disco de Vitor Ramil. No encarte do CD, ao lado da primeira letra, está a foto da fachada de uma casa em ‘Satolep’ refletida no retrovisor externo de um automóvel (...). Se atentarmos para o conjunto de fotografias, o conteúdo das letras e a sonoridade da obra, veremos que se trata do disco com maior substância íntima e artística de Vitor Ramil. Apenas para se ter uma ideia: a casa em ‘Satolep’ é aquela em que Vitor morou durante a infância, e onde vive há muitos anos com sua esposa, nascida em Rosário do Sul; os títulos da primeira e da última letras são sugestivos (O primeiro dia e Adiós, goodbye); a concepção da estética do frio está entranhada na musicalidade de Longes. (...). Quanto à sonoridade do disco, a milonga não aparece nele de forma isolada como em A paixão de V segundo ele próprio (1984), mas entranha-se no violão de Vitor, que explora o lado mântrico e hipnótico destilado deste estilo em várias faixas. O rock presente em Tango (1987) surge, agora, de forma mais refinada. (...) tudo se funde numa só massa. Se a multiplicidade de referências contida em A Paixão de V parecia ganhar unidade em Tambong (2000), em Longes ela realmente é atingida. Nascer leva tempo (...)”. Claro que tudo isso são impressões que depois eu desenvolvo em um capítulo inteiro dedicado ao tema, mas certamente pode-se dizer que ele representa um aperfeiçoamento e aprofundamento da linguagem em relação aos trabalhos anteriores do artista.
IHU On-Line - Em que sentido a obra Vitor Ramil: nascer leva tempo procura compreender o processo artístico, o percurso interior e uma “identidade” que considera o Sul do Brasil não como à margem do centro do país, mas como “centro de uma outra história”?
Luís Rubira - É este exatamente o foco do livro. Como eu disse no início, Vitor Ramil já aos 19 anos era considerado como alguém de destaque no cenário da música brasileira, mas abriu mão disso por uma necessidade interna de resolver um dilema que se impunha a ele como artista e que, no fundo, era um dilema que estava no núcleo do “complexo cultural rio-grandense” (para aqui me valer de uma expressão que o crítico literário Guilhermino César já utilizava no RS na década de 1950). A saber: o problema da “identidade” que nos constitui enquanto uma cultura que está “à margem” do centro do país, de uma cultura que, como Vitor bem designou na Conferência de Genebra (o ensaio sobre a “Estética do Frio”, publicado em 2004) é um lugar de cruzamentos entre a “brasilidade” e a “platinidade”. A incompreensão sobre a trajetória que ele vinha percorrendo enquanto um artista que queria fazer música brasileira a partir do contexto no qual estava inserido levou alguns a não entenderem, por exemplo, o significado do disco Longes quando de seu lançamento. É o caso do crítico Pedro Sanchez que em 2000 tinha apreciado muito o disco Tambong e que ao fazer uma resenha do Longes escreveu que era “um disco denso, difícil, às vezes quase chato (...), às vezes quase pop (...). Não irá às paradas de sucesso, não mudará o mundo” (Folha de São Paulo, 19/11/2004).
Estética original
Como eu dizia, é compreensível que o Sanchez, naquele momento, tenha dito isto, pois muito poucos perceberam o significado que o Longes tinha numa espécie de fechamento de percurso, o qual abriria o caminho, em seguida, para o Satolep Sambatown. Posso dizer, com todas as letras, que lá em 2004 eram raros os que acompanhavam milímetro por milímetro os movimentos do Vitor Ramil. Os que acompanhavam conseguiram entender o Longes imediatamente. De outra parte, em 2014, uma pergunta (que havia sido formulada com muita inteligência há alguns anos) foi colocada em destaque num cartaz que anunciava um concerto de Vitor Ramil em Barcelona: “Por que este gênio não domina, todavia, o mundo da música?” (Hamaques, concerts Casa América de Catalunya, Domingo 23 de Noviembre).
Talvez um modo de responder a esta pergunta seja aquilo que eu observo ao final do livro que busquei fazer para tentar entender o músico, compositor, ensaísta e escritor: “se Estrela, estrela havia trazido ao mundo um artista, este por sua vez levaria muitos anos para dar nascimento ao seu próprio universo artístico”. Ora, se Vitor Ramil somente encontrou sua linguagem original ao chegar a casa dos quarenta anos, minha hipótese é que este é o motivo que retarda que seu nome surja nos cartazes das boas salas de concerto do mundo.
No Théâtre de la Ville em Paris, por exemplo, existe um programa permanente de “Musique du Monde” e eu tenho certeza de que somente não convidaram o Vitor para se apresentar lá porque ainda não conhecem o trabalho que ele vem desenvolvendo sobretudo a partir do Longes. Mas certamente vão conhecer, tal como conhecem o Yamandu Costa, que recentemente tocou na Philarmonie de Paris. E isto porque o Vitor Ramil é justamente o artista que construiu uma estética original, que dá forma à sua arte, que trabalha com a concepção de que estamos no “centro de uma outra história” — concepção que influenciou muitas pessoas e que já tem vários desdobramentos no campo da arte e da cultura.
“Vitor Ramil é justamente o artista que construiu uma estética original” |
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IHU On-Line - Qual é o contexto de surgimento da “estética do frio” e qual é o seu lugar dentro da obra de Ramil, inclusive atualmente?
Luís Rubira - Ninguém melhor que o próprio Vitor, que é um artista que reflete conceitualmente sobre seu trabalho, para responder à questão (seu ensaio A estética do frio de 2004 está disponível em PDF na internet). De outra parte, a concepção da “estética do frio” (que Vitor jamais defendeu como um “manifesto”, como algo que deveria ser aplicado a outros músicos e formas de arte) é algo que continua dando forma ao trabalho atual que ele faz e que aprofunda e sutiliza cada vez mais. Dou um exemplo: a audição do álbum duplo Foi no mês que vem (2013) tem uma unidade sonora entre as canções que é algo muito, mas muito interessante mesmo. Algo novo. Em parte pelo fato de que o violão de Vitor surge muito em primeiro plano, em parte pelo modo como ele canta as músicas. Não é, portanto, um disco em que ele vem apenas para fazer um “cover” de suas canções de discos anteriores, mas no qual elas são recriadas, revestidas sob um único ponto de vista: o ponto de vista da estética que ele concebeu para a sua arte.
IHU On-Line - Na fértil cena cultural pelotense, qual é a importância e o impacto da obra artística de Ramil?
Luís Rubira - Em 2014, pouco antes de Vitor Ramil viajar para a Espanha, a Universidade Federal de Pelotas o convidou para uma apresentação no Teatro Guarany, que é um teatro com mais de dois mil lugares. Estava completamente lotado, e por um público que conhecia a maior parte das canções do Vitor. Do mesmo modo é quase certo que ele será o convidado homenageado da próxima Feira do Livro de Pelotas, que irá ocorrer em novembro de 2015. Estes dois exemplos são representativos acerca da influência de Vitor em Pelotas, mas esta influência é algo que não tem exatamente como medir. Posso garantir, no entanto, que entre aqueles que lutam pela preservação do patrimônio arquitetônico de Pelotas estão muitos dos que foram influenciados diretamente pelas concepções do Vitor sobre Pelotas, a começar pela canção “Satolep”, feita em 1984, e pelo livro Satolep, publicado em 2007. Eu mesmo jamais teria organizado os três volumes do Almanaque do Bicentenário de Pelotas, entre 2012 e 2014, se não tivesse sido, antes, influenciado pelo Vitor.
IHU On-Line - Que diálogos e parcerias se estabelecem entre Ramil e artistas como Jorge Drexler, Carlos Moscardini e outros representantes da cultura platina?
Luís Rubira - Recomendo dois documentários para o leitor: o primeiro é o que acompanha o processo de criação do disco Délibab (2010) e mostra a parceria com Moscardini; o segundo, que veio a público este ano, é o documentário de 110 minutos intitulado Na linha fria do horizonte, dirigido pelo curitibano Luciano Coelho, que faz um percurso temático sobre a concepção da “estética do frio” e apresenta a interlocução com vários artistas, tal como Drexler e tantos outros músicos da Argentina, do Uruguai e do sul do Brasil.
IHU On-Line - Por outro lado, Ramil se aproxima de vertentes musicais bem diversas daquela da estética do frio, como, por exemplo, quando canta com Ney Matogrosso e Milton Nascimento. Quais são os enriquecimentos que surgem desse diálogo?
Luís Rubira - Na verdade é o contrário. É a “estética do frio” que permite a Vitor Ramil dialogar com a música brasileira de forma natural (já no ano de 2000, quando do lançamento de Tambong, o crítico Pedro Alexandre Sanchez publicou na Folha de São Paulo um texto significativamente intitulado “Vitor Ramil filia ‘estética do frio’ a Brasil”).
Vitor Ramil, é importante lembrar, já tivera contato pessoal com o Milton Nascimento na época de Estrela, estrela, bem como com toda uma geração de importantes músicos brasileiros que vinham da década de 1970. Da parte do Vitor é certo, portanto, que ele sempre acompanhou a trajetória de muitos músicos que neste momento dialogam com ele, mas é provável que de uns anos para cá muitos são os enriquecimentos, sobretudo por parte daqueles que tomam um contato com o modo original como Vitor Ramil desenvolve sua arte.
IHU On-Line - Qual é a importância da milonga e do referencial platino nas suas composições?
Luís Rubira - Tanto no primeiro esboço sobre a “estética do frio”, publicado em 1992 na coleção Nós, os Gaúchos, organizada pelo Luis Augusto Fischer, quanto na Conferência de Genebra, de 2004, o Vitor se detém sobre este ponto. No meu livro eu trato do tema em pelo menos quatro capítulos. Embora seja um assunto que precisa ser bastante explorado, trago aqui para o leitor o trecho de uma entrevista recente que o Vitor concedeu ao Juarez Fonseca e que está publicada em seu Songbook: “É natural para mim compor milongas. Nada a ver com pesquisas ou resgates culturais, tanto que é o único gênero ‘gauchesco’ que me interessa. Por outro lado, tudo a ver com a lucidez poética e o pensamento profundo de Atahualpa Yupanqui; ou com os temas viajantes e extensos da fase elétrica de Miles Davis, no fim dos anos 60, em que baixos-contínuos mais acordes e ritmos recorrentes abrem caminho para mil estranhezas; ou com os cromatismos e encadeamentos harmônicos do prelúdio de Tristão e Isolda, de Wagner, aquele arrebatamento em espiral, aquele fluxo em que os acordes parecem se diluir e reaparecer uns nos outros. É a forma da milonga, ou antes, a forma como a vejo, que me interessa. Gosto de ritmos hipnóticos, de músicas que evoluem tanto para a frente como para o fundo, que criam simetrias e me permitem escrever de forma lírica e reflexiva”.
“A bossa nova, então, é o fenômeno que irá produzir o 'tropicalismo' e este, por sua vez, abrirá um vácuo para o qual Vitor cria a 'estética do frio'” |
IHU On-Line - Em entrevista concedida à IHU On-Line em dezembro de 2012, Ramil disse que o tropicalismo foi o principal desdobramento da bossa nova, e que preparou terreno para ideias como a “estética do frio”. O que essa estética sulista revela e tensiona acerca do imaginário do gaúcho e da “brasilidade” por essas paragens?
Luís Rubira - No livro intitulado João Gilberto (2001), o Zuza de Mello afirma que João é “um dos artistas brasileiros mais admirados do mundo (...) a referência mais marcante de músicos, cantores e compositores brasileiros dos últimos 40 anos”.
O Vitor tem razão no que diz sobre o tropicalismo, sobretudo porque Caetano Veloso reconheceu em Verdade Tropical (1997) que “A vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto”. A bossa nova, então, é o fenômeno que irá produzir o “tropicalismo” e este, por sua vez, abrirá um vácuo para o qual Vitor cria a “estética do frio”, voltando, ao seu modo, à matriz (João Gilberto, que inclusive muito admirava o Armando Albuquerque em Porto Alegre...).
Aliás, em outra entrevista para o jornal Folha de São Paulo na época do lançamento de Tambong, Vitor observou o seguinte: “No Ramilonga, fiz de propósito esse viés do Caetano, que na verdade é o da bossa nova. O canto regional do sul, grosseiro e gritado, de gaúcho macho, me incomodava muito. Por que não posso cantar de forma leve, delicada? Forcei a barra de cantar ‘joãogilbertianamente’ e mantenho isso em Tambong”.
Por fim, a questão da “brasilidade por essas paragens” é um tema bem amplo (nossa matriz portuguesa é o elo cultural com a “brasilidade”), mas arrisco uma hipótese, embora eu não seja da área da música: do ponto de vista da sonoridade, esta “brasilidade” já não estava entre nós antes de ser soterrada pela “indústria da música gauchesca”, tal como no caso da antiga canção popular rio-grandense “Prenda minha”, que teria sido registrada inicialmente por Teodomiro Tostes na década de 1920 e mais tarde objeto de reflexão por Mário de Andrade? (É preciso pensar por que justamente esta canção foi eleita no ano de 2000 como a música mais votada pelos rio-grandenses no contexto da promoção “A música do Rio Grande” — conforme interessante matéria no jornal Zero Hora, de 17/08/2000).
IHU On-Line - “Joquim” e “Loucos de cara” são dois clássicos do músico pelotense. Em que medida essas canções falam, também, de identidade e autossuperação?
Luís Rubira - “Joquim” é uma recriação de Vitor Ramil a partir da canção “Joey”, de Bob Dylan. Mas o que a tornou rapidamente assimilável por muitos que conheceram a letra da canção na década de 1980, quando então Vitor lançou Tango (1987), é que era a música de um artista sulino que falava aos seus conterrâneos por meio de signos conhecidos por eles (Vitor, por exemplo, já no começo da canção abre na mente do ouvinte a existência de uma ‘Satolep’ que para muitos será a própria cidade de Pelotas, de uma Pelotas profunda: ‘Satolep/Noite/no meio de uma guerra civil). Ele então não somente elege um músico absolutamente singular norte-americano, mas adapta a letra da canção inglesa para falar de alguém que estaria entre nós, que “sobrevoa o Laranjal”, que é levado preso “para a capital”.
A questão da “identidade” para mim passa por aqui: muitos de nós nos reconhecemos na canção “Joquim”, não apenas pela canção falar de um sujeito incompreendido e injustiçado, mas por este sujeito ser alguém incompreendido e injustiçado próximo de nós... Já “Loucos de cara” expressa a crise de identidade de toda uma geração no Rio Grande do Sul, em particular em Porto Alegre, tão bem explorada por Juremir Machado em seu livro seminal A miséria do cotidiano (Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1991). Espero, vivamente, ter contribuído em algo para a reflexão em torno deste artista em deslocamento chamado Vitor Ramil.
Por Márcia Junges
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Vitor Ramil, um artista em deslocamento. Entrevista especial com Luís Rubira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU