12 Setembro 2023
A comunhão e a diferenciação não estão em contradição: um Sínodo só não permanece vítima das polarizações quando e apenas na medida em que é capaz de pensar de forma mais profunda e mais polifônica a tradição como vida em Cristo do povo de Deus.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado por Come Se Non, 11-09-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
“…como se não tivessem nada a aprender com a história, que é mestra de vida, e como se, nos tempos dos Concílios anteriores, tudo corresse bem quanto à doutrina cristã, à moral, à justa liberdade da Igreja.” - João XXIII
Em um belo texto, publicado em Re-blog, M. E. Gandolfi sintetiza algumas das principais preocupações em vista da Assembleia do Sínodo dos Bispos que será inaugurada em outubro.
Há “diversas preocupações” que podem ser sintetizadas em duas atitudes polares: de um lado, a preocupação de que a tradição do Sínodo seja modificada e traída; de outro, a preocupação de que a tradição do Sínodo não seja modificada e permaneça apagada.
É possível ser profeta da desgraça de dois modos: ou porque se acredita que tudo será destruído depois do Sínodo ou porque se acredita que nada mudará depois do Sínodo. A questão é: como evitar essas polarizações?
É possível indicar três pequenos remédios contra a crescente desconfiança dos profetas da desventura.
A tradição viva
A tradição da Igreja vive de um delicado equilíbrio: em seu núcleo, ela é “recebida”, não “posta” pela Igreja. Por isso, todos aqueles que “ensinam” – ou seja, que exercem um magistério – devem entendê-lo como um “ministério”, como um serviço a um saber que não dominam.
Por isso, a tradição, que é a presença na história dessa Palavra de Deus, para permanecer verdadeiramente ela mesma, ou seja, uma palavra livre e não controlável, exige que se permaneça equidistante de dois polos: de um lado, o polo da autossuficiência dos testemunhos do passado (isto é, da Escritura e de monumentos escritos ou não escritos nos quais a tradição se expressou); de outro, a autossuficiência das evidências do presente.
Como a Tradição é vida em Cristo, comunhão com Deus, relação fraterna no Espírito, ela pede para ser alimentada pela proposição significativa e pela interpretação astuta da Escritura e dos documentos da história. Esse é o equilíbrio que não permite nem se refugiar nas interpretações do passado nem fugir para as evidências do presente.
São “profetas da desgraça” todos aqueles que pensam mediante essa polarização sobre o passado ou sobre o presente. Ambos fecham a tradição a seu futuro, que lhe pertence por direito e que não pode ser achatado nem pelo passado de autoridade nem pelo presente evidente.
A relação com os sinais dos tempos
Para que a tradição permaneça viva, ela deve se alimentar de uma nova leitura dos ditos e dos fatos atestados na história, à luz das novas evidências que a cultura contemporânea oferece à meditação da Igreja.
Com “sinais dos tempos”, quer-se indicar propriamente essa “região espiritual”, que não chega à experiência eclesial a partir das atestações escritas ou vividas do passado, mas a partir das formas de vida, de relação e de pensamento do presente, não sem vínculos com o passado, mas vínculos que estão longe de ser evidentes e muitas vezes contraditórios.
A Igreja, que é mestra de modo ministerial, pode aprender algo novo sobre si mesma precisamente a partir da consideração atenta desses “sinais”, que a provocam a uma postura nova. Ela só pode “permanecer ela mesma” mudando à luz dessa nova leitura que os sinais sugerem a toda a tradição.
Perder a tradição, neste caso, não deriva da mudança, mas sim da estagnação. Prudente é mudar, não ficar parado. E certamente não será oportuno transformar em “depósito de fé” uma interpretação contingente dela para tentar salvar a Igreja e o Sínodo de novas e perigosas polarizações. Porque o “depositum” é autossuficiente, mas a Igreja permanece “exposta” aos sinais dos tempos e às novas interpretações do depositum que esses sinais puderam e ainda podem induzir.
A função da teologia
A tradição viva e os sinais dos tempos pedem um trabalho teológico específico, que consiste, por um lado, no estudo da Escritura e dos Monumenta mediante novas categorias, que são, ao mesmo tempo, internas e externas ao texto e ao documento.
Por um lado, descobrimos novos significados poderosos no interior dos textos clássicos, que sentimos ressoar com novos timbres e brilhar com novas cores; por outro, abrimos os textos a uma nova inteligência da tradição mediante a referência devida aos “sinais dos tempos”, antes não considerados ou até mesmo inéditos.
Esse “maravilhoso intercâmbio” entre a doutrina cristã e a cultura comum permitiu à Igreja caminhar ao longo da história e “criar cultura”, trabalhando com a interpretação dos dados revelados em relação aos princípios do saber universal. Nesse âmbito, parece totalmente decisivo reconhecer e iniciar um corajoso caminho teológico, necessário para uma verdadeira “escuta sinodal” e para uma eficaz “deliberação sinodal”.
Também pertence a uma tradição viva uma necessária elaboração teológica capaz de sair de evidências consideradas “reveladas”, mas que pertencem antes à ordem contingente das convicções históricas, respeitáveis, mas superáveis.
Uma certa diferenciação das interpretações do depositum fidei, caracterizada pela diversidade histórica e geográfica, não é o início de um cisma, mas sim a resposta ao sinal dos tempos de uma Igreja Católica nos cinco continentes. Nos quais a revelação de Deus passou e ainda passa por uma interpretação parcialmente diferenciada da Escritura e dos monumentos da tradição.
Conservar a universalidade não na uniformidade, mas na diferenciação: eis a tarefa. As diversas línguas nas quais hoje expressamos a fé católica não são apenas revestimentos exteriores, mas sim formas de vida originadas do ato de fé. Precisamente o caminho sinodal, ao descobrir esse grande tesouro que foi aberto à Igreja há apenas 60 anos, assume a tarefa de oferecer, teologicamente, uma síntese mais profunda e mais livre da relação entre a tradição revelada e a interpretação da Escritura e dos Monumentos, que mediam, de forma nunca definitiva, a riqueza da graça que a Igreja tem a tarefa de conservar, sem a fechar em um cofre, mas fazendo-a caminhar pelo mundo, com fiel liberdade.
A comunhão e a diferenciação não estão em contradição: um Sínodo só não permanece vítima das polarizações quando e apenas na medida em que é capaz de pensar de forma mais profunda e mais polifônica a tradição como vida em Cristo do povo de Deus.
Leia mais
- A Igreja de Jesus Cristo não pode não ser sinodal. Entrevista especial com Alzirinha Souza e Dom Joaquim Mol
- Sínodo. O Instrumento de Trabalho lido a partir da América Latina. Artigo de Flávio Lazzarin
- Para onde caminha a Igreja? Evangelização, missão e sinodalidade. Entrevista com Pedro A. Ribeiro de Oliveira, Eduardo Hoornaert e Paulo Suess
- Sinodalidade nos passos de Jesus. Artigo de Félix Wilfred
- Sínodo sobre sinodalidade: questões, tensões e a conversão no Espírito. Impressões, perspectivas e desafios sobre o Instrumentum laboris
- O Sínodo não é um Vaticano III. “Queremos a plenitude da sinodalidade de volta à Igreja”. Entrevista com Jean-Claude Hollerich
- Cardeal Hollerich: “O Sínodo não é o Vaticano III”
- Sínodo, censura e vigilância episcopal. Artigo de Andrea Grillo
- Para uma nova memória eclesial – considerações acerca da sinodalidade. Artigo de Eduardo Hoornaert
- Continuamos esperançosos com o processo sinodal. Editorial de National Catholic Reporter
- O Sínodo como resposta espiritual às fantasias. Artigo de Massimo Faggioli
- Por que o Sínodo sobre a Sinodalidade é confuso aos católicos americanos. Artigo de Thomas Reese
- Sínodo e mulher: o espaço do diaconato entre autoridade feminina e magistério sobre a reserva masculina. Artigo de Andrea Grillo
- O Papa Francisco aposta todo o seu pontificado no Sínodo. Artigo de René Poujol
- Documento de trabalho sinodal está profundamente enraizado no Vaticano II
- Sínodo e sacramentos: entre a sociedade de honra e a sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo
- Especialistas esperam que o Sínodo contribua para prevenir abusos
- Diaconato feminino e o Sínodo: questão de autoridade ou de anatomia?
- Sínodo dos Bispos desafiado a prosseguir com a reforma da Igreja
- Reformadores da Igreja esperançosos com a menção do documento do sínodo à ordenação de mulheres e inclusão LGBTQ
- Sínodo e sacramentos: entre a sociedade de honra e a sociedade da dignidade. Artigo de Andrea Grillo
- É um absurdo acusar o novo documento do sínodo de inclinar o processo em favor de uma agenda
- Papa Francisco, o legado do Sínodo
- Organizadores do Sínodo do Papa insistem que não possuem “nenhuma agenda” além de ouvir
- Reformar o Sínodo dos Bispos: mais liberdade verdadeira, parrésia autêntica e menos autorreferencialidade
- O Sínodo chega ao seu momento principal, no roteiro preparado a Igreja dará espaço para mulheres, leigos, homossexuais
- O papel das mulheres, LGBTQI+, padres casados e abusos: o Sínodo dos Bispos reflete sobre o futuro da Igreja
- Instrumento de Trabalho do Sínodo tem cheiro de uma revolução primaveril nas asas do Espírito
- Documento do Sínodo abre espaço para amplo debate sobre mulheres, ministérios e estruturas da Igreja
- Mais do que um Sínodo, parece o Vaticano III. Mas mais confuso e retórico
- Documento do Sínodo prepara o terreno para cúpula inovadora
- Novo documento do Sínodo busca uma Igreja que “abrace a todos”, incluindo pessoas LGBTQ+
- Instrumentum laboris, “não apenas para ser lido, mas para ser vivido”. Entrevista com Jean-Claude Hollerich
- Sínodo, o Instrumentum Laboris: uma Igreja que acolhe a todos e não anula as diferenças
- Grech: Instrumentum laboris, experiência com a voz de todos
- Instrumentum Laboris Sínodo 2021-24: “Abrir horizontes de esperança para o cumprimento da missão da Igreja”
- Ainda tentando explicar o significado da sinodalidade
- Um Sínodo menos episcopal, mas talvez mais papal? Artigo de Massimo Faggioli
- O papa decide dar o voto às mulheres e aos leigos no Sínodo, brechas no muro do clericalismo
- Uma Igreja sinodal e opção para mudanças
- Papa Francisco e a Igreja sinodal
- É preciso uma “inclusão radical” para mulheres, pessoas LGBT e outros na Igreja Católica. Artigo de Robert W. McElroy
- Especialistas debatem o significado de ‘sinodalidade’ para a Igreja Global
- Caminhar juntos: por uma teologia à prova da sinodalidade. Conferência do cardeal Mario Grech
- Converter-se à sinodalidade. Desafio para clérigos e leigos
- Papa Francisco aos representantes do Caminho Sinodal italiano: a Igreja deve ser aberta e inquieta
- Obstáculos à sinodalidade: entre a preservação e a renovação
- Religiosas expressam gratidão pelo direito de voto no Sínodo
- Pe. Giacomo Costa: neste Sínodo, "não são apenas os bispos, mas o povo de Deus que é o sujeito da Igreja"
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Sínodo e a preocupação com as polarizações: três remédios. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU