27 Junho 2023
"O texto tem a genialidade de Francisco, mas também alguns pontos fracos. Mas é honesto e esperançoso. É uma reelaboração e preparação para o sínodo que surgiu do processo de consulta global, sem dobrá-lo a uma opção teológica particular e sem negar a realidade. É um absurdo acusá-lo de inclinar o processo sinodal em favor de uma agenda, seja a do papa, seja de qualquer outra pessoa", escreve Massimo Faggioli, doutor em História da Religião e professor de teologia e estudos religiosos da Universidade de Villanova, nos EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 27-06-2023.
O escritório sinodal do Vaticano já publicou o documento que orientará os trabalhos do Sínodo dos Bispos que se reunirão em Roma em outubro de 2023 e em outubro de 2024. A cautela de que bispos estão usando ao falar sobre o documento, conhecido como Instrumentum laboris, até agora contrasta com a saraivada de respostas vindas de influentes católicos conservadores. Um exemplo é o último artigo anti-Francisco do colunista do New York Times, Ross Douthat. Douthat lamenta que a Igreja Católica esteja prestes a "diluir ou apenas falar menos sobre seus ensinamentos sobre sexo, casamento e família, em vez de encontrar uma maneira de reafirmá-los ou oferecê-los de novo" e se preocupar em cair na armadilha da "reconciliação com nossa cultura decadente, nosso deprimente mundo pós-dionisíaco".
Não existe isso no texto sinodal, que não é documento do magistério e não é definitivo nem definição de nada. Este texto em particular é descritivo, de maneira cautelosa, mas honesta, das questões sobre a mesa do catolicismo global hoje: o sínodo não apenas ouviu, mas ouviu aqueles que se engajaram no processo sinodal e na preparação para a assembleia de outubro refletiu isso. “Este Instrumentum laboris foi redigido com base em todo o material recolhido durante a fase de auscultação e, em particular, nos documentos finais das Assembleias Continentais”, refere o texto no seu prefácio.
O documento é composto de duas partes. O primeiro é um texto explicativo sobre a sinodalidade: como se desenrolou o processo, a importância da sinodalidade na Igreja de hoje e a intenção profunda deste documento, que vai além de sua função processual na preparação para o sínodo. “O [texto] se esforça para evitar a linguagem divisora na esperança de promover um melhor entendimento entre os membros da assembleia sinodal que vêm de diferentes regiões ou tradições”, lê-se no documento. “A visão do Vaticano II é o ponto de referência compartilhado”.
O problema é que alguns dos comentaristas mais faladores, opinativos sobre os assuntos de Igreja têm uma visão do Vaticano II que tende a ser caricatural, e é exatamente o oposto do Papa Francisco, do escritório do sínodo do Vaticano e da esmagadora maioria dos católicos que participou do processo sinodal.
A segunda parte do documento é composta por 15 fichas de trabalho que revelam uma visão dinâmica do conceito de “sinodalidade” em três seções: comunhão, missão e participação. Esta é uma ordem alterada do vade mecum publicado pela Secretaria Geral do Sínodo em setembro de 2021, que era comunhão, participação e missão. É nesta segunda parte que, sob a forma de “questões para o discernimento”, aparecem os temas polêmicos: a mulher e o ministério, o modelo do sacerdócio e o clericalismo.
Uma importante escolha foi organizar as contribuições do texto de forma temática e não geográfica, ou seja, sem enfatizar as questões que são típicas da Igreja Católica em um continente e enfatizar outras que são típicas de outro continente. Essas diferenças existem, mas nosso catolicismo global plural está em toda parte localmente no mundo de hoje, e não é fácil dividir nitidamente entre diferentes tipos de identidades católicas regionais. O documento sinodal leva em conta o viver em um mundo de “crentes sem fronteiras” – algo que não existia na época do Vaticano II.
Pela primeira vez desde o Vaticano II, e mais do que para a preparação do Vaticano II, houve um diálogo profundo entre as igrejas locais e os bispos sinodais. O texto representa isso e coloca as questões na mesa sem olhar para os tabus. A única questão que explicitamente deixa de fora é a possibilidade da ordenação de mulheres ao sacerdócio, que, se colocada na ordem do dia de hoje, acenderia instantaneamente o pavio dos organizadores antissinodais e cismáticos.
O texto, ao contrário, coloca a questão da promoção da dignidade batismal das mulheres. Está muito consciente da oposição não só contra as mudanças que podem ser decididas no futuro, mas também da oposição e inação contra o que Francisco já decidiu. Por exemplo, a abertura formal dos ministérios de leitor e acólito às mulheres e a criação do novo ministério oficial de catequista.
Mas uma questão de discernimento na Parte B do documento é muito clara: "A maioria das Assembleias Continentais e as sínteses de várias Conferências Episcopais pedem que se considere a questão da inclusão da mulher no diaconato. É possível imaginar isso, e de que maneira?"
O texto mantém o debate aberto, com pequenas dicas sobre o que pode e o que não pode ser feito, mas também sem criar expectativas irrealistas. Menciona a questão da reforma da formação dos futuros sacerdotes, o debate sobre a ordenação ao sacerdócio de homens casados e a renovação do ministério episcopal em uma Igreja sinodal. Deixa claro que este documento preparatório e todo o processo devem ser entendidos como parte de um sínodo de duas sessões, que será realizado em Roma em outubro de 2023 e em outubro de 2024. Também tem uma perspectiva mais longa, considerando o processo sinodal como uma nova fase na recepção do Vaticano II.
Alguns dos comentários mais estridentes têm uma visão do Vaticano II que tende a ser caricatural, e é o oposto do Papa Francisco, do escritório do sínodo do Vaticano e da esmagadora maioria dos católicos que participaram do processo sinodal.
A parte eclesiológica do documento está inacabada, talvez de propósito, pois os redatores claramente querem pisar levemente na jornada sinodal em andamento. Baseia-se fortemente apenas na Lumen Gentium: as referências explícitas do texto ao Vaticano II limitam-se quase exclusivamente à Constituição sobre a Igreja. Isso reflete o fato de que o Vaticano II tem uma teologia do episcopado, mas não uma teologia inequívoca do sacerdócio (por exemplo, o texto sinodal cita apenas Lumen Gentium 28, não Presbyterorum Ordinis, o Decreto Conciliar sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes). O texto ignora a exortação apostólica Amoris Laetitia de Francisco de 2016 e sua eclesiologia da família. A palavra "casamento" é usada apenas uma vez em referência aos desafios pastorais colocados pelo casamento polígamo; "cônjuges" apenas no caso de casamentos interdenominacionais; e as palavras "família" e "famílias" ainda são predominantemente usadas como objetos de atenção, não como sujeitos eclesiais.
Curiosamente, isso contrasta com o que o texto reconhece: “As sínteses das Conferências Episcopais e das Assembleias Continentais apelam reiteradamente a uma 'opção preferencial' pelos jovens e pelas famílias, que os reconhecem como sujeitos e não objetos da pastoral”. Além disso, o texto menciona o papel das igrejas locais no discernimento dos “ministérios”. Isso talvez seja um passo à frente em relação à rejeição parcial das propostas do Sínodo para a Amazônia de 2019 sobre padres casados, conforme feito na exortação de Francisco Querida Amazônia de 2020?
A questão principal é o vasto programa da terceira seção da segunda parte, centrado na reforma da arquitetura eclesiológica geral da Igreja no contexto da sinodalidade. Discutir a primazia papal, a colegialidade episcopal (inclusive no sínodo dos bispos e nas conferências dos bispos) e o ministério sacerdotal.
Na pergunta de discernimento da parte B 3.5, o texto indica claramente o caráter experimental do processo sinodal: "como se deve aperfeiçoar a instituição do Sínodo para que se torne um espaço seguro e garantido para o exercício da sinodalidade que assegure a plena participação de todos - o Povo de Deus, o Colégio dos Bispos e o Bispo de Roma - respeitando suas funções específicas? Ainda mais interessante é que a recente expansão do sínodo de Francisco para incluir membros votantes leigos, incluindo mulheres, pela primeira vez é chamada de "experiência". Parece que as mudanças na estrutura do sínodo podem não ser permanentes.
As questões eclesiológicas abordadas pelo processo sinodal são as mais arriscadas, ainda mais do que as questões sobre mulheres, padres casados e a inclusão de católicos LGBTQ.
Esta pode ser uma das razões pelas quais a questão da "participação" foi movida e agora é a terceira e última na ordem, depois da "missão". É importante que esta assembleia do sínodo ou a próxima seja capaz de abordar esses dilemas projetados muito complexos: o papel do papado, das conferências episcopais, dos patriarcados regionais em uma Igreja sinodal lidando com um alto grau de diversidades globais.
Embora essas questões estejam no radar, o sínodo de Francisco parece melhor preparado para lidar com questões mais básicas sobre reconhecimento e inclusão de todos os membros da Igreja em nível local.
O texto tem a genialidade de Francisco, mas também alguns pontos fracos. Mas é honesto e esperançoso. É uma reelaboração e preparação para o sínodo do material que surgiu do processo de consulta global, sem dobrá-lo a uma opção teológica particular e sem negar a realidade. É um absurdo acusá-lo de inclinar o processo sinodal em favor de uma agenda, seja a do papa ou de qualquer outra pessoa.
Este é um momento muito delicado na vida da Igreja Católica. Este texto reflete as emoções e sensibilidades muito diversas sobre algumas questões (exemplos: sexualidade, mulheres e secularização) entre as diferentes igrejas locais. "Católico global" hoje significa estar em todos os lugares e à vista. E não é culpa do sínodo, de Francisco ou do Vaticano II.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
É um absurdo acusar o novo documento do sínodo de inclinar o processo em favor de uma agenda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU