10 Abril 2025
O maior país da América Latina que recebe neste ano a COP30 e pretende exercer uma liderança ecológica mundial precisará escolher com firmeza suas próximas ações. Na luta contra a crise climática o protagonismo indígena é fundamental. E para tanto impõe-se como imprescindível a derrota definitiva do Marco Temporal, a retomada consistente das demarcações das terras indígenas e a desistência da exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Sem mais postergações, sem meias palavras, sem senões intermináveis.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O primeiro papa latino-americano ao se referir sobre a chegada do Evangelho nas Américas pontuou que “infelizmente foi acompanhado também por interesses mundanos”. Sem relativizar a dor provocada em “nome de Deus” aos povos originários, o pontífice desnudou, como já havia feito outras vezes, as mazelas do colonialismo. “Em vez do caminho da inculturação, tomou-se muitas vezes o percurso apressado do transplante e da imposição de modelos pré-constituídos – europeus, por exemplo – sem respeito pelas populações indígenas” [1], asseverou com uma clareza que para alguns pode soar incômoda demais. Por um lado, tal colonialismo se assentou na cristianização violenta das comunidades nativas e, por outro, serviu aos interesses econômicos das coroas e das elites coloniais, baseando-se em um modelo extrativista cruel e destruidor.
No Brasil, se ao longo dos séculos a relação da Igreja com os povos indígenas se transformou, especialmente a partir do Conselho Indigenista Missionário (1972), muito pouco mudou nos aspectos sociopolítico e econômico. As comunidades originárias seguem sofrendo as devastadoras consequências de um capitalismo antinatural e canibal, como qualificam, respectivamente, Silvia Federici e Nancy Fraser. Nesse regime exploratório, além de suas culturas e de seus corpos, também seus territórios são vulnerabilizados e submetidos pelo capital.
Na época do processo constituinte e após a promulgação da Constituição de 1988, havia muita esperança de que aos direitos garantidos no texto constitucional fosse dada plena efetividade pelo Estado ao longo dos anos. Entretanto, ainda restam pendentes de demarcação pelo menos 850 terras indígenas. Não bastassem a morosidade estatal e a falta de vontade política dos responsáveis para resolver o histórico passivo, o cenário vem se deteriorando há quase uma década. E o atual governo pouco tem feito para reverter efetivamente esse processo.
Para limitar os direitos territoriais dessas comunidades, criou-se um subterfúgio jurídico chamado Marco Temporal, com o fim de restringir o direito às terras ancestrais apenas aos grupos que as ocupavam em 05-10-1988. Todavia, o extermínio e a perseguição aos povos indígenas causaram a expulsão e a dispersão de algumas comunidades de seus territórios originários. Negar o reconhecimento por parte do Estado às terras tradicionais significa culpabilizar tais comunidades duplamente. Mesmo tendo rejeitado essa absurda tese em 2023, a Suprema Corte, após a aprovação da Lei 14.701/2023, parece retroceder em níveis sem precedentes na história recente.
As organizações indígenas ajuizaram ações no Supremo Tribunal Federal para que a referida lei fosse declarada inconstitucional, inclusive de forma liminar e urgente, considerando as ameaças e os ataques aos povos indígenas. Em uma reviravolta inaceitável para os direitos humanos, impôs-se uma mesa de conciliação em que as organizações indígenas vêm sendo coagidas a negociar seus direitos fundamentais. Apesar da saída do movimento indígena, o relator da ação, o ministro Gilmar Mendes – que mantém robusta ligação com o agronegócio –, prorrogou a iniciativa e apresentou proposta que autoriza a mineração em terras indígenas.
Trata-se de uma evidente desconstitucionalização dos direitos indígenas que coloca em risco o próprio futuro dos mais de 305 povos originários do Brasil. Estes são os que resistiram e sobreviveram ao genocídio perpetrado até décadas recentes, mas que diante do cenário ameaçador que se desenha no horizonte próximo podem finalmente sucumbir. Retirar-lhes o direito básico à terra ancestral e autorizar a atividade mineradora nos seus territórios será absolutamente catastrófico.
Os impactos da mineração no modo tradicional de vida de milhares de comunidades indígenas são tremendos e fatais. Além das consequências ambientais em suas montanhas e rios sagrados, os territórios estão sujeitos a uma pressão irresistível por parte do grande capital. Para esses povos, a natureza não é formada por meros recursos naturais passíveis de monetização, mas sim por seres detentores de dignidade própria. Ignorar essa dimensão implica em perpetuar um inconcebível etnocentrismo, colonizador e arrogante.
Como se não bastasse, se tais ataques vêm de uma aliança espúria entre a parte neofascista do agronegócio, com forte presença no Congresso e setores retrógados do Judiciário, por parte do Executivo federal também avançam alguns “projetos de morte”. Entre eles a insistência insana na exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, no estado do Amapá. Sem qualquer escuta das comunidades indígenas, ribeirinhas e pesqueiras que serão atingidas, trata-se de uma iniciativa que viola frontalmente o direito à consulta livre, prévia e informada previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Isso sem mencionar o altos impactos e riscos ao frágil e tão rico ecossistema local. É preciso descarbonizar radical e corajosamente a economia, com um arrojado plano de transição energética. Seguir apostando em energias fósseis revela-se no mínimo contraproducente e incoerente para um país que quer influenciar as decisões multilaterais climático-ecológicas. Assim, o governo deverá decidir se é realmente um aliado da Amazônia ou se continuará cedendo aos interesses do capital neoextrativista. Nesse sentido, a escolha do povo equatoriano que rejeitou a exploração de petróleo na região de Yasuní (2023), é um bom exemplo de como as decisões estratégicas de um país devem estar atreladas à proteção de seu meio ambiente.
No mais, deve-se ter em conta que se trata de uma única crise, como alerta o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si'. Uma crise socioambiental. Afinal, na medida em que se arremete contra uma minoria social, ao mesmo tempo se avança contra o equilíbrio ecológico e cultural de seus territórios. Essa antipolítica que avança no Judiciário brasileiro precisa contar com um posicionamento contundente e claro do governo federal, bem como de todas as demais forças políticas democráticas que restam na sociedade civil.
E mais, há que se falar ainda de uma grave crise ética. Como pode a Suprema Corte rasgar a própria decisão, retrocedendo tão fragorosamente em tão curto tempo? Acaso não possuem mais valor jurídico as ordens do próprio pleno da mais alta instância do Judiciário? Qual sinal mandam os ministros para o restante do país quando aceitam negociar os direitos indígenas? Vão corroborar a percepção histórica de que no Brasil a força do poder econômico do agronegócio sempre prevalece sobre os direitos fundamentais das coletividades originárias?
Os mesmos juízes que tão bravamente resistiram aos arroubos golpistas do desgoverno anterior e frearam o esfacelamento do Estado Democrático de Direito sucumbirão à pressão dos descendentes dos senhores de engenho que desde o Brasil colônia seguem mandando na Terra de Santa Cruz? O ministro Gilmar Mendes recuou da proposta de mineração em terras indígenas, mas continua defendendo a mutilação do já vagaroso procedimento de demarcação dos territórios ancestrais. Nessa nova lógica, os processos seguirão indefinidamente travados, para satisfação dos latifundiários anti-indígenas.
Pois então que estejam cientes suas excelências, os ministros do STF, de que ao reescrever e desidratar os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988, contribuirão vergonhosa e covardemente para o enfraquecimento da ordem constitucional vigente. Ademais, enfraquecer a proteção de uma minoria significa atentar contra os Direitos Humanos na sua integralidade e macular o próprio Estado Democrático de Direito.
No mesmo sentido, é chegada a “hora da verdade” e de se compreender quem são os aliados com que se pode contar. Não adianta se dizer apoiador da causa indígena e silenciar sobre a extrema morosidade do governo federal na demarcação dos territórios ancestrais. Ilógico postar fotos nas redes sociais ao lado de lideranças originárias e ser conivente com a exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Ir até o Acampamento Terra Livre para comprar artesanatos e se encantar com a pluridiversidade das culturas tradicionais é muito pouco.
Os militantes das forças progressistas da sociedade precisam escolher se estão inteiramente com as comunidades indígenas ou se se deixam convencer por bravatas superficiais e raciocínios enviesados. Conseguirão manter a consciência crítica diante da realidade injusta ou serão cúmplices das negociatas que trocam os povos originários por algumas dezenas de votos no Congresso, com a poderosa bancada ruralista?
Reconhecer a importância da liderança do Cacique Raoni e ir ao seu encontro para lhe outorgar uma das mais importantes comendas do país, como fez na última semana o presidente Lula, é sem dúvida alguma louvável. Um gesto cheio de simbolismo para alguém que há décadas luta pelos direitos das comunidades originárias. Todavia, diante das ameaças de retrocessos e do passivo histórico com esses povos não basta. É absolutamente pequeno e insuficiente. Os Povos Indígenas não precisam de esmolas!
O senhor sabe, presidente, que o cenário exige coragem e ousadia. Estará disposto a realmente tomar posição, com ações impactantes que vão além de míseras 13 terras indígenas já homologadas? Ou repetirá mais uma vez a velha encenação dos últimos dois anos, dando algumas migalhas neste Abril Indígena, com o parco avanço do processo de demarcação de não mais do que meia dúzia de novos territórios? Os Povos Indígenas esperam de um verdadeiro líder medidas efetivas, robustas e mais do que justas. O tempo de cumprir suas promessas de campanha está passando...
O maior país da América Latina que recebe neste ano a COP30 e pretende exercer uma liderança ecológica mundial terá que escolher com firmeza suas próximas ações. Na luta contra a crise climática o protagonismo indígena é fundamental. E para tanto impõe-se como imprescindível a derrota definitiva do Marco Temporal, a retomada consistente das demarcações das terras indígenas e a desistência da exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas. Sem mais postergações, sem meias palavras, sem senões intermináveis.
Como ensina o Milton Santos, “o território não é um dado neutro nem um ator passivo” [2]. E nem o são os atores políticos que estão nesta disputa. Para ser contado entre os aliados das comunidades indígenas, o governo Lula terá que despertar da sua letargia e mostrar bem mais vontade política do que até agora o fez. Afinal, o reconhecimento dos territórios ancestrais e do direito à autodeterminação dos povos originários são as condições mínimas para que o enfrentamento da emergência climática possa ter algum sucesso. Do contrário, a COP30 não passará de um grande baile de máscaras regado a muita hipocrisia necrocapitalista!
[1] PAPA Francisco. Audiência geral, 23 ago. 2023.
[2] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 80.