10 Novembro 2024
O então presidente da Assembleia Constituinte deixou significativas palavras que nunca foram tão atuais: “a Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. Vencerá o carcomido Direito colonial que sempre protegeu os grandes proprietários de terra ou sob a égide de um Direito descolonial os Povos Indígenas finalmente poderão ver reconhecidos seus territórios ancestrais?
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos-IHU.
Passados mais de 36 anos da promulgação da Constituição Cidadã há um sentimento generalizado de frustração das “maiorias populares oprimidas”, como classificava o filósofo jesuíta Ignacio Ellacuría. Inegável avanço do processo de libertação do povo brasileiro, após os duros e violentos anos de ditadura civil-militar, o Texto Constitucional em vigor representou os anseios da redemocratização do país. Apesar de nunca ter enfrentado como deveria seu passado ditatorial, sob a ótica de uma necessária justiça de transição, defender a Carta Fundamental significa defender um Estado Democrático e Social de Direito, que tem como princípio a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I).
Entretanto, direitos importantes conquistados a duras penas pelas lutas sociais, tais como a necessidade de se atender a função social da propriedade (art. 5º, XXIII) e a obrigação do Estado em promover a reforma agrária (arts. 184 a 191), bem como o fim da destruição de biomas declarados patrimônio nacional, como a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica e o Pantanal (art. 225, § 4º) para que se observe o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput), foram sistematicamente descumpridos desde o primeiro dia da vigência da nova ordem constitucional.
Dentre as parcelas marginalizadas que se fizeram presentes na Assembleia Constituinte e lutaram bravamente para que os seus direitos fossem assegurados estavam os Povos Indígenas. Infelizmente, o passivo do Estado para com as comunidades originárias permanece enormemente escandaloso e os arts. 231 e 232 da Constituição Federal continuam a ser violados de forma estrutural.
Segundo o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “em 2023, foram registrados 276 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio em pelo menos 202 territórios indígenas em 22 estados do Brasil”[1]. Mesmo com a importante criação do Ministério dos Povos Indígenas e a eleição de parlamentares indígenas, os povos originários não deixaram de estar subrepresentados nos espaços de efetiva tomada de decisão, como bem aponta Marcelo Neves:
“É a relação entre sobreintegração e subintegração nos subsistemas de uma sociedade moderna e complexa, aqui especificamente no sistema constitucional ou jurídico, que impede a generalização social e material das declarações constitucionais de direitos fundamentais na experiência brasileira, isso quando elas não são simplesmente revogadas mediante normatização constitucional autoritária”.[2]
Evidentemente, o Estado brasileiro sempre esteve capturado pelas elites nacionais e transnacionais, servindo a interesses outros que não a busca do bem comum e aos princípios estabelecidos pela Carta Fundamental. Depois de anos difíceis diante de um governo declaradamente anti-indígena, os inimigos dos primeiros habitantes dessa terra não descansaram enquanto não aprovaram a Lei 14.701/23, impondo a hipócrita tese do Marco Temporal.
Conseguiram ainda o silêncio cúmplice da Suprema Corte, por meio de uma jogada do Ministro Gilmar Mendes, que segue forçando uma ilógica e incabível transação de direitos fundamentais. Apesar das organizações indígenas terem se retirado da estapafúrdia “mesa de negociação”, o relator da ação direta de inconstitucionalidade conseguiu que o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) indicasse novos “representantes” para preencherem um inaceitável vazio e dar prosseguimento a afrontosa encenação.
Sem qualquer legitimidade para substituir o movimento indígena, há uma clara tentativa de se utilizar da estrutura do MPI para dar um verniz de legalidade às negociações espúrias que transcorrem na sede do Judiciário. A arremetida contra as garantias constitucionais dos povos originários revela-se surpreendentemente perigosa. Enquanto as demarcações das terras indígenas continuam emperradas nessas tortuosas amarras jurídicas, o Congresso prepara-se para ferir mortalmente a Constituição da República com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 48.
Abandonará o Supremo Tribunal Federal seu papel de guardião da Constituição, sacrificando o futuro das comunidades ancestrais para diminuir as tensões com os setores retrógados do Parlamento? Quais ideologias dominantes estão profundamente arraigadas nesses jogos de poder que querem suplantar uma vez por todas o direito dos indígenas aos seus territórios tradicionais?
Como preleciona Leonel Severo Rocha, existem mais interesses entre o Direito e as classes dominantes do que a nossa vã Constituição parece sonhar:
“Diríamos, então com Guilhon Albuquerque, ‘nenhuma ordem social é intrinsicamente legítima, sua legitimidade só pode advir do reconhecimento do corpo social, do consentimento ativo da população’. Evidentemente, todos esses problemas não podem ser adequadamente estabelecidos, na medida que o exercício da autoridade do Estado seja ideologicamente camuflado por noções como a de soberania e pelo senso comum teórico dos juristas, que impedem uma crítica fundamentada nos fatores históricos, políticos e ideológicos, constitutivos do direito”.[3]
Sucumbirá a Constituição aos velhos conchavos entre os palácios do poder? Que há muito existe uma maioria perversa e contrária aos Povos Indígenas no controle do Legislativo não é nenhuma surpresa. Soa, entretanto, escandalosa a participação da mais alta instância do Judiciário nesse ignóbil acordão com o sempre atrasado latifúndio autoritário. E o palácio do Planalto como agirá? Irá se dobrar à ardilosa e definitiva desconstitucionalização dos direitos indígenas em nome da esfarrapada governabilidade, entregando os povos originários a sua própria sorte?
Como dizia o grande jurista Roberto Lyra Filho, “a legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido”[4]. Sob a tinta do Direito escorrem séculos de exploração e dominação de uma elite que nunca esteve acostumada a ver seus interesses limitados, nem mesmo pela força da lei.
Nesse sentido, se a Corte Suprema ainda quiser que a Constituição prevaleça e as comunidades indígenas tenham suas terras devidamente garantidas, é preciso descolonizar suas complexas teorias jurídicas e os seus mais refinados métodos interpretativos. Julgar segundo os parâmetros do art. 231 da CF implica ter presente séculos de extermínio, violência e apagamento cultural a que foram submetidos os povos originários. Vale conferir a lição de Enzo Bello no trecho abaixo colacionado:
“Descolonizar, como hoje bem sabemos, não implica qualquer tipo de pretensão de apagamento da história ou retorno a um tempo que não mais existe (ou existiu), inclusive diante da necessidade de amplo conhecimento fático do que ocorreu no passado e deve ser cessado, e do que não deve se repetido no futuro. Descolonizar significa (re)conhecer a história do ponto de vista dos grupos sociais vencidos, dominados, subjulgados, oprimidos, não apenas a partir do prisma de quem espraiou seus ideários particulares como se universais fossem. Descolonizar é interagir, trocar, aprender como postura horizontal na interculturalidade das práticas pedagógicas de diferentes povos, como alerta Catherine Walsh”.[5]
Os olhos estão voltados para o Supremo Tribunal Federal e sua decisão pode ser um marco contra preconceituosas visões ultrapassadas e estereotipadas, que ainda abundam nas instâncias inferiores do Judiciário. Deve-se reconhecer que gerações de magistrados, servidores públicos e advogados foram formadas distantes não só do universo cultural dos Povos Indígenas, mas também de ferramentas jurídicas adequadas para bem enfrentar as especificidades de tais lides.
Tristemente, nas faculdades de Direito há um exíguo ou mesmo inexistente espaço para uma visão crítica de direito agrário, de direito indígena ou até do cada vez mais imprescindível pensamento descolonial. Na quase totalidade dos cursos jurídicos uma abordagem questionadora do Direito fica relegada a esparsas e insuficientes disciplinas optativas, espremidas nos anos finais da graduação. O ensino ainda está voltado para atender a demanda negocial dos escritórios e empresas, bem como para assegurar a continuidade das estruturas estatais.
Além de uma ampla revisão nos currículos das carreiras jurídicas, muito contribuiria que os ministros do STF se recordassem das palavras proferidas em 5 de outubro de 1988, por Ulysses Guimarães, sob efusivos aplausos, parecendo definitivamente colocar fim ao espírito autoritário que tanto mal fez ao Brasil: “temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. Os arroubos tirânicos de outrora pareciam ter ficado no passado. Todavia, as forças do retrocesso se fortaleceram nos últimos anos, não só no Brasil de Bolsonaro, mas em todo o mundo, inclusive com Trump recém eleito presidente dos Estados Unidos.
Nos últimos anos, a própria Corte agiu com contundência e firmeza para frear as investidas golpistas do ex-capitão do Exército e seus fiéis asseclas. Todavia, parece não perceber que está enredada em perversas maquinações da bancada ruralista para mutilar a Constituição e enfraquecer mortalmente a já abalada democracia nacional. Capitular às pressões da parte fascista do agro significa ceder ao antidemocrático coronelismo ainda tão vivo na elite agrária brasileira.
O então presidente da Assembleia Constituinte deixou significativas palavras que nunca foram tão atuais: “a Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. Vencerá o carcomido Direito colonial que sempre protegeu os grandes proprietários de terra ou sob a égide de um Direito descolonial os Povos Indígenas finalmente poderão ver reconhecidos seus territórios ancestrais?
Afinal, “a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”, insistiu Ulysses Guimarães. Em jogo não está “somente” o direito cerca de 1 milhão e 700 mil indígenas brasileiros, mas sim o vigor de uma sociedade pluridiversa e inclusiva. Que o Supremo Tribunal Federal não afronte nem deixe afrontar a Constituição e, assim, se fortaleça um pouco mais um descolonial Estado Democrático e Social de Direito!
[1] RELATÓRIO Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil-Dados de 2023. Conselho Indigenista Missionário. 21 ed. Brasília: Conselho Indigenista Missionário, 2024, p. 8.
[2] NEVES, Marcelo. Constituição e direito na modernidade periférica: uma abordagem teórica e uma interpretação do caso brasileiro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, p. 221.
[3] ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 134.
[4] FILHO, Roberto Lyra. O que é o Direito. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 3.
[5] BELLO, Enzo. Prefácio. In: BRAGATO, Fernanda Frizzo. Dignidade humana pluriversal: uma leitura descolonial na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 2.
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Os Povos Indígenas, a Constituição e a Descolonização do Direito. Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU