O teólogo defende uma teologia contextual, encarnada; ele critica abstrações amorfas e estéreis, que servem “para a vaidade” de quem as produz
“Às vezes, há uns discursos, há umas teologias que são muito gnósticas, inclusive de gente séria e famosa no Brasil, que se aparta tanto da carne que termina negando o que é mais próprio e o que é mais específico da experiência de Deus no cristianismo”. A declaração é do teólogo Francisco de Aquino Júnior, e foi expressa na videoconferência “Desafios e perspectivas para uma teologia contextual”, que integra o “Ciclo de estudos: Mudança de época e o fazer teológico hoje. Desafios e perspectivas”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
No evento, o professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) explica e defende uma teologia contextual, tal qual formulada pelo Papa Francisco na Carta Apostólica publicada em forma de motu proprio, Ad theologiam promovendam [Para promover a teologia], em novembro de 2023. Segundo ele, toda teologia é contextual, mas uma teologia não encarnada tem um duplo problema.
“Por um lado, acaba falando de um deus que, no fim das contas, às vezes, pode beirar ao motor imóvel de Aristóteles ou pode beirar a uma espécie de talismã, seja com uma veia mais filosófica, seja com uma veia mais devocional ou ritual”. Deus, contudo, esclarece o teólogo, “não é uma ideia genérica, abstrata, distante, amorfa. Não é o motor imóvel de Aristóteles. Deus é alguém que assume a história, que intervém na história, que caminha na história. É um Deus conosco, como, de uma forma tão bonita, falam os Evangelhos: Emanuel, Deus conosco, é Deus com a gente, é Deus com cheiro de gente, é Deus com cheiro e catinga de carne, de história, de vida, com os pés na lama”.
O segundo problema de uma teologia desencarnada, acrescenta o entrevistado, é que “termina virando ideia, especulações, abstração amorfa, estéril, que não fede nem cheira, que só serve para a vaidade de quem a produz. Uma espécie de erudicionismo de vaidade”. Esse tipo de reflexão teológica, sublinha, “esquece que a teologia, enquanto um aspecto da fé, é inseparável da missão cristã no mundo, que quer ser boa notícia para o mundo”. E assevera: “A palavra de Deus que se fez carne em Jesus, na força e no poder do Espírito, deve continuar se fazendo carne em nossas vidas, na força e no poder do Espírito. Essa é a grande novidade, essa é a grande boa notícia que nós, cristãos, podemos a dar: encarnar em nossa vida, em nossas comunidades, o amor de Deus, para que possa acolher, para que possa consolar, para que possa ungir ferida, para que possa socorrer, para que possa proteger, para que possa lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. Esse é o nosso desafio”.
A seguir, publicamos, de modo resumido, a conferência de Aquino Júnior, juntamente com as questões formuladas pelos participantes do evento e as respostas do conferencista.
A teologia contextual também foi tema da videoconferência da teóloga alemã Margit Eckholt, da Universität Osnabrück, na terça-feira passada, 15-07-2025. Ela abordou a temática na palestra “Uma teologia fundamentalmente contextual: os contextos e as pessoas importam”. A conferência completa está disponível abaixo e pode ser acessada no YouTube.
Na próxima terça-feira, 22-07-2025, a teóloga indiana Kochurani Abraham, do Indian Theological Association (ITA), participa do “Ciclo de estudos: Mudança de época e o fazer teológico hoje. Desafios e perspectivas”, refletindo sobre as “Reconsiderações do masculino e do feminino na teologia contemporânea. Tarefas e perspectivas”. A videoconferência será transmitida na página eletrônica do IHU, nas redes sociais e no YouTube, às 10h. A atividade é gratuita e aberta ao público.
Francisco de Aquino Júnior (Foto: CNBB)
Francisco de Aquino Júnior é doutor em Teologia pela Westfälischen Wilhelms-Universität Münster, Alemanha. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e no Programa de Pós-graduação em Teologia (PPG-TEO) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). É presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, no Ceará.
IHU – O que significa falar em teologia contextual?
Francisco de Aquino Júnior – Toda teologia é contextual. Enquanto inteligência da fé e serviço intelectual à fé, a teologia tem sempre a marca do contexto sociocultural e eclesial em que a fé é vivida e pensada. O contexto tanto limita (condicionamentos) quanto possibilita (possibilidades) o fazer teológico, já que o exercício intelectual é sempre mediado por formas de apreensão e expressão, por mentalidades ou esquemas mentais e por linguagens.
IHU – O Papa Francisco defendeu uma teologia contextual na carta apostólica sob forma de motu próprio, Ad theologiam promovendam [Para promover a teologia], em novembro de 2023. No ambiente teológico tem-se consciência do que é uma teologia contextual?
Francisco de Aquino Júnior – A consciência dessa contextualidade fundamental da teologia e do fazer teológico é algo relativamente recente na teologia. É fruto da reflexão crítica do fazer teológico, desenvolvida de modo particular na América Latina na segunda metade do século XX.
Chama atenção o fato de a expressão “teologia contextual” ser usada, muitas vezes, sobretudo entre teólogos europeus, para se referir às teologias desenvolvidas na América Latina, na África e na Ásia, bem como às teologias feministas, negras, indígenas etc., como se as demais teologias (todas!) não fossem também e de modo estrito teologias contextuais. Por mais que a consciência dessa contextualidade fundamental de toda teologia tenha se desenvolvido nessas teologias e a partir delas, diz respeito a toda e qualquer teologia. Não existe teologia não contextual.
IHU – Como a contextualidade se expressa no fazer teológico?
Francisco de Aquino Júnior – Essa contextualidade da teologia está intrinsecamente ligada à realidade que ela procura apreender, expressar, compreender, teorizar: ação salvadora de Deus, reinado de Deus, revelação e fé, pouco importa aqui a expressão utilizada. A teologia não trata de Deus sem mais, de modo abstrato e genérico, independentemente de uma experiência, relação ou fé concreta. Trata de Deus, sim, mas sempre a partir de uma fé concreta, encarnada na realidade. No caso específico da teologia cristã, a referência fundamental e permanente é a vida-práxis de Jesus de Nazaré. Ele é o autor e o realizador da fé (Hb 12,2). A partir d’Ele vamos discernindo os sinais da presença e ação salvadora de Deus na história.
Mas a contextualidade da teologia tem a ver também com o exercício intelectual que a caracteriza, enquanto apreensão, expressão, compreensão e teorização da salvação ou do reinado de Deus. Há muitos modos e formas de intelecção. Diferentemente do que se costuma pensar, a intelecção se dá sempre numa cultura concreta que a condiciona (negativamente) e a possibilita (positivamente).
Por mais irredutível que seja, o exercício intelectual é inseparável da vida humana concreta. Tem a ver com o modo humano de se enfrentar com as coisas. É um momento ou dimensão da vida humana. Enquanto tal, é condicionado e possibilitado pelo contexto em que se desenvolve: situações, mentalidades, linguagens etc. Tem um caráter contextual fundamental.
IHU – Como essas dimensões contextual e intelectual da teologia dialogam com a dimensão pastoral da Igreja?
Francisco de Aquino Júnior – Tudo isso tem uma dimensão pastoral-evangelizadora ligada à missão da Igreja no mundo, como tanto insistiu o Papa Francisco. Na mensagem ao Congresso Internacional de Teologia junto da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, ele recorda que “uma das principais contribuições do Concílio Vaticano II” e que “revolucionou, numa certa medida, o estatuto da teologia” foi o esforço por “superar o divórcio entre teologia e pastoral, entre fé e vida”. Adverte os teólogos/as a se precaverem de uma “teologia que esgota na disputa acadêmica ou que contempla a humanidade de um castelo de vidro”, a não se conformarem com uma “teologia de gabinete” nem serem “teólogo de ‘museu’ que acumula dados e informações sobre a revelação, mas que não sabem bem o que fazer com isso”. Diz que eles/as são chamados a “viver em uma fronteira, na qual o Evangelho encontra as necessidades das pessoas” e que “os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram a povo e rua e, com sua reflexão, derramam unguento e vinho nas feridas dos homens”.
IHU – Quais os desafios e perspectivas para o desenvolvimento de uma teologia contextual hoje?
Francisco de Aquino Júnior – Falar de uma teologia contextual hoje é falar de uma teologia que se enfrenta teologicamente com os grandes desafios do nosso tempo; uma teologia que não se reduz a uma espécie de arqueologia teológica nem se encerra em disputas academicistas, mas toma a sério a realidade atual no que ela tem de pecaminoso e de gracioso, constituindo-se como discernimento dos “sinais dos tempos” (GS 4, 11). Na carta Ad Theologiam Promovedam, Francisco insistiu muito na necessidade de uma teologia “capaz de ler e interpretar o Evangelho nas condições em que os homens e mulheres vivem cotidianamente, nos diversos ambientes geográficos, sociais e culturais”.
IHU – Por outro lado, quais os riscos de uma teologia contextual?
Francisco de Aquino Júnior – Talvez esse seja um dos maiores riscos e uma das maiores tentações da teologia em nosso tempo: abandonar o mundo atual, com seus dramas e suas buscas, no que tem de pecaminoso e de gracioso, em função de um passado que já não existe (tradicionalistas) ou em função de modismos e especulações academicistas (progressistas). De uma forma ou de outra, termina “lavando as mãos” diante dos grandes problemas e desafios da humanidade, passando à margem dos caídos à beira do caminho (Lc 10, 25-37), como se tivesse coisas mais “santas”, mais atraentes ou urgentes para tratar.
Já no início dos anos 1980, o padre Arrupe, superior geral dos jesuítas, afirmava ter a impressão de que a teologia da libertação “estava perdendo o push, que estava se tornando demasiado acadêmica” [1]. Em 2000, no congresso continental de teologia, promovido pela Sociedade de Teologia e Ciências da Religião do Brasil, Jon Sobrino expressava sua preocupação com o que denominava “tendência ao docetismo” na teologia atual: “o que mais me preocupa na teologia é sua tendência ao docetismo, isto é, a criar um âmbito próprio de realidade que a distancie e a desentenda da realidade real, ali onde pecado e graça se fazem presente” e “esse docetismo, que normalmente é inconsciente, pode muito bem levar ao aburguesamento, isto é, a prescindir dos pobres e vítimas que são maioria na realidade e são a realidade mais flagrante” [2]. E, recentemente, Joaquim Jocélio, um jovem teólogo cearense, publicou um artigo muito provocativo e instigante, perguntando – para os teólogos e as teólogas mais “progressistas” – se “os pobres ainda têm lugar em nossas teologias” [3].
IHU – Como a teologia contextual se manifesta no magistério de Francisco?
Francisco de Aquino Júnior – As encíclicas sociais de Francisco são muito emblemáticas nesse sentido: Laudato Si’: “sobre o cuidado da casa comum” (2015) e Fratelli Tutti: “sobre a fraternidade e amizade social” (2020). Sua Exortação Apostólica Laudate Deum: “sobre a crise climática” (2023) insiste na gravidade do problema, advertindo que podemos estar nos aproximando de um “ponto de ruptura” (LD 2). Elas abordam a crise socioambiental e político-cultural que vivemos: a) indicam sintomas e causas, b) oferecem aportes ético-espirituais para o discernimento dessa situação e c) exortam a buscar caminhos e formas de enfrentamento e superação dessas crises. E os cinco encontros internacionais com os movimentos populares indicam o caminho para a compreensão e o enfrentamento dos grandes problemas do mundo atual: a partir de baixo, das vítimas do atual sistema, dos movimentos populares.
IHU – Andrea Grillo propõe pensar a teologia como um bem comum. A teologia é desconhecida pela cultura civil, mas, às vezes, a própria teologia se desvincula da responsabilidade de se compreender como bem comum. É uma teologia que, às vezes, fica excessivamente acadêmica e desconectada. É um fazer teológico muito comprometido com autopreservação da Igreja, com autopreservação da fé cristã. Grillo propõe restituir a teologia ao seu destino popular, à multidão. Como, a partir da perspectiva da teologia contextual, é possível alargar essa visão de teologia como bem comum?
Francisco de Aquino Júnior – Estou completamente de acordo com a provocação de Andrea Grillo. Talvez seja importante lembrar que a expressão teologia é uma expressão que vem do mundo grego. Aparece em A República, de Platão e, depois, em Aristóteles como ciência dos princípios primeiros e últimos. Mas essa não era a expressão com que, na Igreja, ao longo do primeiro milênio, se referia ao saber da fé. Ali se falava de doutrina cristã, de sagrada doutrina. Quando essa expressão vai entrando no universo cristão, a partir do século XII, XIII, no contexto das universidades, ela assume um sentido muito específico porque entra no contexto da expansão da obra de Aristóteles, e é assumida com o sentido específico de ciência que procura compreender as coisas a partir de sua essência ou de seus princípios primeiros e últimos. Então, a expressão teologia entrou no mundo cristão com um sentido muito específico, preciso e restrito. Não é qualquer saber da fé, mas é o saber que corresponde às características da ciência à época, no sentido aristotélico da palavra. Tanto que teologia aparece sempre como coisa de especialista, de profissionais, daqueles que estudam, que pesquisam, que escrevem dentro dessa lógica acadêmica.
Agora, é muito importante se dar conta de que essa nunca foi a única forma de saber da fé, nem a forma predominante de saber da fé, nem sequer entre os chamados teólogos profissionais. Existe muita teologia de modo narrativo, simbólico, em forma de poesia, em forma de homilias, de comentários bíblicos, em obras de arte. Ou seja, junto com a teologia, com esse sentido mais específico de um saber racional científico, há outras formas de saber.
Talvez hoje – e muitas vezes, tenho pensado assim –, possamos tomar a teologia em dois sentidos. Teologia num sentido amplo, como saber da fé, que se dá de diferentes formas, em linguagem simbólico-narrativa, em linguagem ritual, em linguagem coloquial. Essa dimensão diz respeito a todos os crentes. Esse sentido amplo recupera a dimensão da teologia como bem público. A fé é vivida de modo inteligente e todo crente, à medida que vive a fé de modo inteligente, tem um saber da fé e tem uma linguagem sobre a fé. Dentre as muitas formas e linguagens, está aí a forma e linguagem de caráter mais científico-acadêmico, que é uma entre outras, e que não é superior a outras. Essas diferentes formas podem se complementar e podem se enriquecer. Ou seja, a teologia narrada, a teologia expressa em ritos, em provérbios, em artes, dá vida e carne a uma teologia de caráter mais acadêmico, mais teórico, mais conceitual. Mas também esse tipo de teologia de caráter mais acadêmico, teórico, conceitual, ajuda a ver ambiguidades e instrumentalizações que podem ser feitas. Se bem que, não se iludam, também a teologia acadêmica é muito instrumentalizada e tem muitas ambiguidades.
Penso que podemos tomar a teologia num sentido amplo como saber da fé, reconhecendo diferentes formas e lógicas e linguagens do saber da fé e, dentre essas formas lógicas e linguagens, uma delas é a forma clássica da teologia como saber racional e científico da fé. Não há oposição entre elas. Elas podem se criticar mutuamente, se enriquecer e se complementar. Mas é um desafio fundamental recuperar o caráter popular da teologia, recuperar, na linguagem de Andrea Grillo, a teologia como um bem público. Assim como a fé é comum a todo o povo de Deus, a inteligência da fé e o saber da fé é um exercício comum a todo o povo de Deus.
IHU – Uma teologia sem a concretude da vida dificulta a percepção de um Deus humano, do crucificado, do ressuscitado que caminha conosco nas dificuldades do mundo de hoje. A teologia precisa poder dizer algo para a vida concreta das pessoas. Uma teologia estéril, sem o experienciar da vida concreta, pouco tem a dizer ao mundo de hoje que necessita de paz, de justiça, de mais igualdade.
Francisco de Aquino Júnior – Compartilho completamente da sua reflexão. De fato, uma teologia não encarnada, uma teologia que não leva a sério o contexto, tem um duplo problema. Esse duplo problema aparece nas duas observações apontadas. Por um lado, acaba falando de um deus que, no fim das contas, às vezes, pode beirar ao motor imóvel de Aristóteles ou pode beirar a uma espécie de talismã, seja com uma veia mais filosófica, seja com uma veia mais devocional ou ritual. Às vezes, há uns discursos, há umas teologias que são muito gnósticas, inclusive de gente séria e famosa no Brasil, que se aparta tanto da carne que termina negando o que é mais próprio e o que é mais específico da experiência de Deus no cristianismo. Aliás, é bom nunca perder de vista isto: se alguém quiser chegar a Deus, não precisa, nem deve tentar sair da terra e da história. Não adianta, não adianta comer da árvore do centro do jardim, nem construir torre de Babel, nem querer se elevar, porque é Ele quem assume a história, assume-a na criação e assume-a na encarnação do Verbo. Isso, para nós, é muito importante. Deus não é uma ideia genérica, abstrata, distante, amorfa. Não é o motor imóvel de Aristóteles. Deus é alguém que assume a história, que intervém na história, que caminha na história. É um Deus conosco, como, de uma forma tão bonita, falam os Evangelhos: Emanuel, Deus conosco, é Deus com a gente, é Deus com cheiro de gente, é Deus com cheiro e catinga de carne, de história, de vida, com os pés na lama.
Por outro lado, uma teologia que não leva a sério esse caráter contextual da encarnação, termina virando ideia, especulações, abstração amorfa, estéril, que não fede nem cheira, que só serve para a vaidade de quem a produz. Uma espécie de erudicionismo de vaidade, e esquece que a teologia, enquanto um aspecto da fé, é inseparável da missão cristã no mundo, que quer ser boa notícia para o mundo.
O Papa Francisco usava imagens muito impactantes. Ele diz que os teólogos e as teólogas, com sua reflexão, devem ungir as feridas da humanidade. Veja a metáfora: a reflexão teológica como unção, como azeite, como unguento que unge, que alivia as dores, que cura as feridas da humanidade. Então, é muito importante que levemos a sério – e estou falando concretamente da fé cristã – que o mistério de Deus é acessível a nós pela criação, pela encarnação. Quem quiser sair do mundo para encontrar Deus, vai encontrar qualquer coisa. Talvez o motor de imóvel de Aristóteles, se é que existe em algum lugar. Mas o Deus de Jesus, nós vamos encontrar na carne e na história.
Uma fé que seja inútil, estéril, que não produza alegria, gozo, bem, paz, saúde, não é a fé cristã, porque a fé cristã tem esse caráter de boa notícia que cura, que restaura, que salva, que produz sentido e alegria.
IHU – Quais as diferenças entre a teologia contextual e a Teologia da Libertação, que há tempos vem sendo alvo de críticas nas igrejas?
Francisco de Aquino Júnior – Como disse no início, a consciência do caráter contextual da teologia nasce, sobretudo, nas teologias da libertação, nas teologias feministas e negras nos anos 1960, 1970. Tanto é que, muitas vezes, essas teologias eram chamadas de teologias contextuais, sobretudo na perspectiva das teologias europeias que se pretendiam não contextuais, mas universais. Mas é a partir dessas teologias e de um modo muito particular de teologia desenvolvida na América Latina, que a consciência do caráter contextual da teologia se desenvolveu, sobretudo porque essa teologia procurou levar muito a sério o contexto em que a fé era vivida e pensada. Então, a teologia da libertação ou as teologias da libertação são teologias contextuais, como qualquer teologia no passado e no presente é contextual. Mas essas teologias ajudaram a tomar consciência da contextualidade de toda a teologia.
Vou dar um exemplo. Quem for ler Karl Rahner, para tomar um dos maiores teólogos católicos do século passado, não entende a problemática que ele aborda, nem o modo como a aborda, nem a linguagem que aborda, se não levar em conta o contexto europeu, ocidental e filosófico da época em que ele escreveu. Tire Rahner do ocidente, da Europa, da filosofia escolástica e moderna, e você não entende patavinas nenhuma. A teologia de Rahner é tão contextual quanto a teologia feita no Brasil.
As teologias da libertação não só são teologias contextuais, mas sempre tornaram isso explícito e afirmaram isso não como limite ou um problema, mas como um traço fundamental cuja consciência é um valor que confere lucidez e faz esse discurso ser mais consequente.
IHU – No horizonte do fazer teológico, percebo que há um vazio no fazer conjunto, tipo uma teologia em sinodalidade, sem deixar de ser contextualizada. Como dar passos concretos aí, saindo da privatização?
Francisco de Aquino Júnior – O saber é um bem comum, produzido, conservado e desenvolvido comunitariamente. Ninguém inventa do nada o saber que tem, nem na compreensão, nem na linguagem, nem na formulação. Embora sendo um bem comum produzido, conservado e mediado socialmente, a tendência moderna, mais centrada no indivíduo, no sujeito que tem uma primazia sobre o comunitário, dá tanta ênfase ao indivíduo, que parece que a produção do saber é coisa de um certo indivíduo. Mas veja, nenhum cientista produz do nada o seu saber científico e nenhuma área da ciência produz conhecimento do nada. Isso também não acontece na teologia. Ninguém produz do nada. Nós produzimos dentro de uma tradição, a partir de um saber que foi produzido, transmitido e compartilhado.
A sinodalidade é uma forma ou um antídoto contra a arrogância, a prepotência e o individualismo na produção do saber. Mesmo quem se dedica de um modo, digamos, mais profissional e sistemático ao saber da fé, não trata de algo privado; trata da fé de uma comunidade. Segundo, trata disso com a linguagem que foi gestada e produzida na própria tradição da Igreja. Então, o saber da fé, a teologia, é um saber eclesial, comunitário. Isso é muito importante para superarmos as arrogâncias do mundo acadêmico de se abrir ao debate, de se abrir à complementaridade.
Francisco insistiu muito na transdisciplinaridade da teologia, não só entre as áreas internas da teologia, mas da teologia com outras ciências, da teologia com outros saberes. Mesmo dentro da comunidade eclesial, o teólogo e a teóloga não podem se achar numa ilha, onde tudo surge da sua cabeça. Levar a sério essa dimensão comunitária implica diálogo, cooperação, crítica e abertura. Me impacta muito aquilo que disse Francisco: um teólogo que se contenta com um pensamento pronto, acabado, fechado, é um medíocre. Porque o saber é sempre algo aberto, processual – ainda mais para um crente que olha a dimensão escatológica, ou seja, é algo aberto ao mais de Deus e da história.
É um desafio muito grande levarmos a sério essa dimensão, digamos, social, comunitária do saber como um todo e, concretamente, do saber da fé formulado aqui com o Papa Francisco em termos de sinodalidade. Ele insiste que a teologia precisa ser feita de modo sinodal, porque trata da fé da Igreja e não se pode fazer teologia prescindo da fé da Igreja, do modo de saber, de pensar e da linguagem da Igreja.
IHU – Como interpretar as tentativas de uma teologia desencarnada e muitas vezes fundamentalista frente à atual realidade do Brasil? Como desenvolver uma teologia com rosto de carne e de povo num contexto de dicotomia entre fé e vida?
Francisco de Aquino Júnior – Primeiro, se observarmos e analisarmos bem, vamos ver que mesmo as teologias que se pretendem não contextuais, são muito mais contextuais do que parecem. Usam linguagens que estão muito presentes, são muito próprias de um contexto, conceitos, ideias, têm uma forma de pensar e isso não é indiferente ao contexto em que essas teologias são feitas. De modo que essas teologias acabam servindo a determinados interesses, a determinadas práticas e a determinados processos.
As teologias fundamentalistas do nosso tempo têm um papel e uma importância no contexto atual para favorecer e justificar processos sociais e políticos, interesses sociais e políticos, como, inclusive, têm sido muito importantes na instrumentalização da fé e do discurso religioso em função de determinados interesses. Observe essa linguagem. Observe a tal da teologia do domínio, observe a tal da teologia da prosperidade ou da retribuição. Observe como isso favorece determinados processos sociais e políticos no Brasil. Observe os defensores desse tipo de teologia, como eles estão muito mais ligados a movimentos sociais e políticos de extrema-direita, avessos aos valores e às exigências evangélicas. É importante nos darmos conta de que mesmo as teologias que se pretendem desencarnadas, estão muito mais encarnadas do que parecem e, nessa realidade, estão a serviço de determinados interesses, de determinados processos, consciente ou inconscientemente. Esse é um primeiro aspecto da questão.
O segundo aspecto diz respeito ao desafio de pensar uma teologia encarnada num contexto de oposição, de dualismo, de dicotomia entre fé e vida. Essa é uma provocação fundamental, diria, inclusive, a provocação mais importante do Concílio Vaticano II. Ou seja, levar a sério o caráter histórico, concreto, real, que não se reduz à doutrina e rito, mas é um modo de viver e de viver num determinado contexto.
A Igreja da América Latina levou isso às últimas consequências e o Papa Francisco retomou a renovação conciliar e sua recepção criativa na América Latina com essa provocação e com imagens impactantes: teologia com cheiro de povo e rua, teologia com gosto de carne e gente, teologia feita nas fronteiras, teologia não de gabinete, teologia que não olha o mundo de um castelo de vidro, teologia que é como um óleo, um unguento que unge as feridas da humanidade, teologia que não é indiferente aos acontecimentos da vida. Essa é a grande provocação, o grande desafio. Isso é condição, inclusive, de fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo. Ou seja, se quisermos levar a sério a fé, o seguimento de Jesus no mundo em que vivemos, temos que nos esforçar para fazer de nossa vida, de nossas comunidades, de nossas teologias, expressão e mediação do amor de Deus, da justiça de Deus, fazer com que o amor de Deus se encarne.
A palavra de Deus que se fez carne em Jesus, na força e no poder do Espírito, deve continuar se fazendo carne em nossas vidas, na força e no poder do Espírito. Essa é a grande novidade, essa é a grande boa notícia que nós, cristãos, podemos a dar: encarnar em nossa vida, em nossas comunidades, o amor de Deus, para que possa acolher, para que possa consolar, para que possa ungir ferida, para que possa socorrer, para que possa proteger, para que possa lutar por uma sociedade mais justa e fraterna. Esse é o nosso desafio.
Não nos iludamos: vamos ser sempre minorias abraâmicas, proféticas. Foi assim também na época de Jesus. Não nos iludamos. Vai ter oposição dentro e fora da Igreja. Vai ter gente que vai gritar aos quatro cantos que temos que salvar almas. Não sei onde vão encontrar essas almas que não sejam encarnadas em vida, em corpos, em territórios concretos. Mas com esse discurso, na verdade, serve a interesses escusos de manter a realidade como está. Quem diz que a Igreja não deve se preocupar com cisterna de placa, com água para o povo beber, porque deve dar a água da vida eterna, cuidado que a água da vida eterna que está dando é a manutenção de um status quo, é manter a indústria da seca, é manter a concentração de renda no país. E pode observar que esse tipo de gente é muito mais aliado àqueles que mantêm, sustentam e reproduzem a dominação do que parece.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Francisco de Aquino Júnior – O desafio para nós todos é desenvolver um saber da fé que seja fiel à boa notícia do evangelho de Jesus no tempo de hoje. Ou seja, é muito importante que não caiamos na tentação de fazer da teologia uma espécie de arqueologia conceitual para aprendermos e guardarmos conceitos e doutrinas, mesmo que os precisemos desenvolver teoricamente. Mas o importante é que teologia seja, sobretudo, um saber que nos ajuda a viver com sabor, um saber que dá sabor à nossa vida e à das pessoas e da sociedade. É por isso que a teologia tem que ter sempre sabor de libertação, sabor de esperança, sabor de alegria. Então, sigamos adiante, fazendo uma teologia encarnada no nosso tempo, com sabor de evangelho, que cure, que alegre, que anime a construir um mundo mais justo e fraterno.
Notas:
[1] ELLACURÍA, “Iglesia en Centroamérica”, p. 779. (Nota do entrevistado).
[2] SOBRINO, “Teología desde la realidade”, p. 168. (Nota do entrevistado).
[3] COSTA, “Os pobres ainda têm lugar nas nossas teologias?”. (Nota do entrevistado).