10 Março 2025
Àqueles que querem tiranicamente pôr fim à diversidade devem se contrapor as alteridades diversas de todos os lugares em que o autoritarismo não venceu. Os EUA não são Donald Trump e sua tresloucada patota. Que se levantem seus artistas e professores universitários, que as organizações de direitos humanos marchem pelas ruas, que os pacifistas calem a prepotência das armas, que os trabalhadores mostrem aos senhores do capital que o lucro não está acima da dignidade humana! Por um mundo em que haja sempre mais espaço para a alteridade plural!
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Nosso espírito está de volta. Nosso orgulho está de volta. Nossa confiança está de volta”, disse Donald Trump, na última terça-feira (4/03), no seu discurso ao Congresso dos Estados Unidos. “E o sonho americano está surgindo – maior e melhor do que nunca”, continuou em seu tom messiânico-apocalíptico, “o sonho americano é imparável, e nosso país está prestes a um retorno como o mundo nunca testemunhou, e talvez nunca mais testemunhará”. Para além da megalomania desvairada e autorreferencial típica da classe política estadunidense, suas falas são preocupantes e indicam tempos difíceis. “Vivemos, portanto, em meio a uma crise da própria gestão da crise – uma crise de hegemonia e do Estado”[1], advogam Ulrich Brand e Markus Wissen.
Dentre as terríveis promessas vociferadas para uma plateia majoritariamente favorável à sua verborragia, pode-se destacar a de colocar fim à “tirania da diversidade”. Promessa que já está sendo implementada desde o primeiro dia da nova administração. Políticas básicas e mínimas tão duramente conquistadas após décadas de intensa luta dos movimentos sociais estão sendo atacadas de forma implacável. Um presidente que se refugia na ideia de um passado imaginário e distorcido.
Não se pode negar que há tempos os governos estadunidenses têm assumido posturas colonizadoras, antidemocráticas e autoritárias. Sua política externa é feita de uma sucessão de ações indefensáveis como o apoio a inúmeros golpes de Estado mundo afora, como aquele que ocorreu no Brasil em 1964, e a abusiva guerra ao terror que invadiu o Afeganistão e o Iraque, além de manter uma prisão, em Guantánamo, onde se pratica a tortura.
Recentemente inúmeras decisões do governo estão sendo barradas e suspensas pelos tribunais americanos. Resistirá o Judiciário estadunidense com a independência necessária aos ataques do trumpismo? Como assevera Vera Karam Chueiri uma democracia não pode ser aferida apenas como o governo da maioria, mas sim pela observância dos ditames constitucionais e pela sua capacidade de resistir aos abusos:
“A partir da narrativa histórica dos EUA, Dworkin opõe a concepção majoritária de democracia à concepção constitucional, a qual ele prefere, na medida em que aquela trata as pessoas como estatísticas e não como agentes morais que pertencem a uma comunidade política que se autogoverna. Reduzir a democracia a uma questão estatística é mitigar sua dimensão normativa. Neste sentido, a democracia deve ser um tipo de governo sujeito a algumas condições como o igual respeito e consideração, a prioridade dos direitos sobre o bem comum e cabe, portanto, aos juízes proteger os direitos morais mesmo contra o governo. Vale dizer, a democracia é constitucional, isto é, com as restrições institucionais na forma de direitos e por isso o judicial review ganha importância devido ao seu papel na proteção de tais direitos”.[2]
Se Trump quer falar da época de ouro dos Estados Unidos é impossível ignorar que a expansão e o enriquecimento do país se deram à custa de milhões de vidas indígenas. O extermínio dos povos originários foi extremamente violento e impiedoso, como narra o clássico Enterrem meu coração na curva do rio (1970) de Dee Brown. Isso sem mencionar os séculos de escravidão e segregação racial que perduraram na autonomeada maior democracia do mundo.
Expulsas de suas terras, perseguidas e caçadas como animais, enganadas por tratados sempre descumpridos pelos não indígenas, as nações indígenas foram massacradas pelos “grandiosos defensores da liberdade”. Na Marcha para o Oeste milhares de colonos – instigados pelo governo nacional – não só partiram em uma busca desenfreada pelo ouro, como também tomaram à força os territórios dos povos originários. Nesse sentido conta o Chefe Joseph do Povo Nez Percés (1877):
“Ouvi falar e falar, mas não se fez nada. Boas palavras não duram, a não ser que resultem em alguma coisa. Palavras não pagam meu povo morto. Não pagam minha terra, agora tomada por homens brancos e não impedirão que ele morra. Boas palavras não darão um lar para meu povo, onde possa viver em paz e cuidar de si mesmo. Estou cansado de palavras que não levem a nada. Meu coração pesa quando lembro todas as boas palavras e as promessas quebradas. [...] Esperar que qualquer homem que nasceu livre fique contente em se ver confinado e sem liberdade de ir aonde quiser é como esperar que as águas de um rio corram para trás. [...] Perguntei a alguns dos grandes chefes brancos de onde tiraram sua autoridade para dizer ao indígena que ele deve ficar num lugar só, enquanto vê os brancos indo aonde querem. Não sabem me dizer. Deixem-me ser livre – livre para viajar, livre para parar, livre para trabalhar, livre para negociar onde escolher, livre para escolher meus mestres, livre para seguir a religião de meus país, livre para pensar e andar e agir por mim mesmo – e obedecerei a todas as leis ou me submeterei às penalidades”.[3]
É a esse passado idílico e cruel que o mandatário-mor deseja regressar, para terminar o genocídio então iniciado? Apesar do ódio à pluridiversidade dos povos originários, as comunidades indígenas seguem resistindo de múltiplas formas ao apagamento cultural. Tal como seus irmãos latino-americanos persistem na luta contra a colonialidade do poder que trabalha para mantê-los na marginalidade social.
O governo que trava uma batalha contra a diversidade possui como uma das suas principais bandeiras a deportação em massa de milhões de migrantes para seus países de origem. “Poucas horas depois de fazer o juramento de posse, declarei uma emergência nacional em nossa fronteira sul”, guinchou o presidente que já confessou querer ser ditador por um dia, “e mobilizei o exército dos EUA e a Patrulha de Fronteira para repelir a invasão de nosso país”. Com essa retórica do ódio, o (anti)republicano insiste na lógica do inimigo interno e, baseado no medo, segue instigando a perseguição de famílias que vivem há décadas no país.
Uma verdadeira criminalização da migração da qual os Estados Unidos se beneficiam em inúmeros setores de sua economia. Migração que, deve-se frisar, é responsável por manter inúmeros empregos desprezados pelos cidadãos estadunidenses, com importantes contribuições na construção civil, na agricultura e na limpeza, por exemplo. Mas, como geralmente acontece em governos autocráticos, é preciso encontrar um bode expiatório para os complexos problemas do país e os mais vulnerabilizados invariavelmente são culpabilizados de forma covarde e injusta.
Até nas escolas, nas igrejas e nos espaços públicos de lazer os migrantes estão em perigo e correm o risco de serem presos e deportados. Não há mais lugar seguro para aqueles que tão dedicadamente trabalham para os patrões estadunidenses como babás, faxineiras e cuidadores de idosos. As cenas de exaustos migrantes algemados e acorrentados descendo de aviões são humilhantes. São esses os valores que o resto do planeta deve admirar de uma nação tão desenvolvida?
O império estadunidense e o seu padrão de vida estão em evidente decadência, como apontam Brand e Wissen:
“Isso também explica por que o lado violento e repressor do modo de vida imperial – como os conflitos por matérias-primas e a rejeição aos refugiados – se revela tão claramente hoje em dia. Esse modo de vida é baseado na exclusividade e só pode se sustentar enquanto houver um ‘outro lugar’ disponível para arcar com seus altos custos. Ocorre que esse ‘outro lugar’ está se esgotando, porque um número cada vez maior de sociedades ganha acesso a esse modo de vida e porque há cada vez menos povos capazes ou dispostos a pagar o preço da externalização. Consequentemente, o modo de vida imperial está se tornando vítima de seu próprio apelo e de sua própria universalização”.[4]
Para sustentar esse modo de vida imperial é que o magnata-presidente exigiu despudoradamente o estoque ucraniano de terras raras. Em uma cena lamentável e de forma televisionada, o presidente da Ucrânia foi confrontado e destratado pelo mandatário e seu vice daquele que havia sido seu maior aliado na guerra. A reviravolta surpreendente e inexplicável colocou os EUA ao lado de outro autocrata que conduz com mão de ferro seu adversário histórico, a Rússia de Putin.
Isolada por Trump, a União Europeia se encontra em uma encruzilhada que vai redefinir a história. Pode aprofundar a integração regional e reafirmar seus princípios fundadores, arraigados nos Direitos Humanos ou se esfacelar diante do autoritarismo raivoso que cresce no continente. O caminho do rearmamento já começou a ser traçado, com um plano de 800 bilhões de euros em orçamento, com consequências imprevisíveis no horizonte. A França pôs seu arsenal nuclear à disposição de seus parceiros do bloco, não sem alguma desconfiança da rival Alemanha. O que acontecerá se a extrema-direita assumir o poder nas duas maiores economias europeias nos próximos anos? Resistirá o projeto europeu?
“Nas últimas 6 semanas, assinei quase 100 ordens executivas e tomei mais de 400 ações executivas, um recorde para restaurar o bom senso, a segurança, o otimismo e a riqueza em todo o nosso maravilhoso país”, continuou com empáfia um onipotente Trump. Como explica Vera Karam de Chueiri há uma evidente deterioração constitucional nos Estados Unidos, que vem de longe e não pode mais ser ignorada:
“Há deterioração constitucional quando as instituições que estabelecem os freios e contrapesos não funcionam bem, quando há perda da confiança do povo sobre o exercício público do poder e quando normas da disputa política são desprezadas. Ou seja, são processos de decadência naquilo que mantém, procedimental e materialmente, saudáveis as democracias constitucionais. [...] Para Balkin (2018, p. 23), os EUA experimentam hoje esse processo de deterioração constitucional”.[5]
Nesta semana o Departamento de Estado dos EUA anunciou seu mais novo programa, denominado “Detectar e Revogar”. Este consistirá em identificar, por meio de inteligência artificial, os estudantes estrangeiros que se manifestaram em favor da Palestina nas redes sociais. Eles terão seus vistos cancelados e serão enviados de volta aos seus países, tendo seus estudos universitários abrupta e arbitrariamente interrompidos, simplesmente por externar sua opinião político-ideológica.
Tudo isso provavelmente contará com o apoio dócil dos bilionários do Vale do Silício, donos das empresas de tecnologia tão refratárias a quaisquer regulações das mídias sociais pelo risco de censura de sua atividade. Talvez seja a oportunidade ideal para Elon Musk deixar de se preocupar com a legitimidade das decisões da Suprema Corte brasileira – que dentro da Constituição coíbem os discursos criminosos – e passar a se preocupar com o perigoso e autoritário programa apresentado pelos fieis assessores de Trump.
Certamente a “tirania da diversidade” também está relacionada ao direito à autodeterminação dos povos. A solução dos dois Estados, conforme aprovado no âmbito das Nações Unidas que prevê a existência pacífica entre Israel e a Palestina parece ter sido descartada. Afinal, ao lado do primeiro-ministro de extrema-direita Netanyahu, Trump defendeu a criação de um balneário em Gaza, sob a administração dos EUA. No fundo, seria uma verdadeira limpeza étnica, que implicaria o deslocamento forçado de milhões de palestinos para os países vizinhos.
De acordo com o respeitado professor da Universidade de Columbia Khalidi Rashid, “em alguma medida, todo governo americano desde Harry Truman tem tido integrantes que produzem políticas sobre a Palestina cuja visão indica que acreditam que os palestinos, existentes ou não, são menos seres humanos que os israelenses”[6]. Analisar a complexidade do que se passa entre Israel e a Palestina não pode prescindir do contexto histórico e um bom começo para entender a gravidade do que se passa ali é o documentário “Sem Chão” (No Other Land), premiado neste ano pelo Oscar. Nesse sentido vale conferir Rashid:
“Hoje, o conflito que foi produzido por esse clássico empreendimento colonialista europeu em uma terra não europeia, apoiado desde 1917 pelo maior poder imperial do Ocidente à época, raramente é descrito em termos tão crus. Na verdade, aqueles que analisam não apenas os esforços de colonização de Israel em Jerusalém, na Cisjordânia e nas Colinas de Golã ocupadas, mas o empreendimento sionista como um todo a partir da perspectiva de sua origem e sua natureza colonizadoras, são frequentemente vilipendiados. Muitos não podem aceitar a contradição inerente à ideia de que, embora o sionismo tenha, sem dúvida, sido bem-sucedido em criar uma entidade nacional florescente em Israel, suas raízes são as de um projeto colonialista (assim como as de outros países modernos: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia). Nem conseguem aceitar que não teriam tido êxito não fosse o apoio dos grandes poderes imperiais, Grã-Bretanha e depois Estados Unidos. O sionismo, portanto, poderia ser e foi um movimento simultaneamente nacional e colonialista”.[7]
Os séculos de escravidão em que milhões de pessoas foram arrancadas da África, o massacre dos povos originários nas Américas e o bárbaro sofrimento da Shoá promovida pelo nazismo não foram suficientes para ensinar à humanidade a respeitar a inalienável dignidade de cada pessoa e cada povo? Como é possível em pleno século XXI, apenas 80 anos após o fim dos horrores do nazifascismo, se propor um crime contra a humanidade desses com tamanha desfaçatez?
Depois de uma sangrenta guerra ao Hamas que destruiu toda a infraestrutura local, a população civil de Gaza foi severamente atingida. Sucumbindo ao frio, à fome e ao escasso atendimento médico, pouca ajuda humanitária pôde chegar à região, em razão dos rígidos controles impostos pelo governo de ultradireita de Israel. Os números dos mortos pelos intensos e cruéis bombardeios autorizados por Netanyahu variam de quase 50 mil a cerca de 65 mil palestinos, conforme dados do Ministério da Saúde palestino e de instituições independentes de pesquisa. A maioria, mulheres, crianças e idosos e não militantes do Hamas, como alega o exército israelense.
A comunidade internacional aceitará calada esse extermínio, promovido sob condições totalmente desiguais dos lados em confronto? E a sociedade civil israelense, com suas organizações de direitos humanos, escritores e intelectuais públicos, fechará os olhos para os abusos cometidos em seu nome? Alguns líderes religiosos judaicos já se manifestaram contrários à carnificina do atual governo israelense, frisando que o judaísmo não pode ser usado para justificar tais crimes porque é uma tradição que busca a paz. E para encontrar a paz nenhum tipo de terrorismo pode ser tolerado, nem mesmo o terrorismo de Estado. Que mais vozes lúcidas e corajosas possam se juntar a essa fundamental insurgência dos justos!
Mas o apresentador-presidente não está satisfeito em eliminar “apenas” essas facetas da diversidade. “Acabei com o ridículo ‘novo esquema verde’” e “retirei-me do injusto acordo climático de Paris, que estava nos custando trilhões de dólares que outros países não estavam pagando”, contra-atacou no seu discurso do Estado da União. Trump é um negacionista climático que não possui qualquer compromisso com o equilíbrio ecológico. E mais do que demonstrou que a comunidade internacional não deve contar com os EUA para “a construção da Terra como Casa Comum”[8].
“Para desbloquear nossa economia, determinei que para cada nova regulamentação, 10 regulamentações antigas devem ser eliminadas – assim como fiz em meu 1º mandato muito bem-sucedido”. Trump é um servo devoto de um necrocapitalismo selvagem que não admite qualquer controle ou sequer ser questionado nem mesmo pelo Estado. A regra é não ter regras, pois o lucro está acima da moralidade. Se não for detido, o bilionário-presidente tornará mais poderosa ainda a pequena elite capitalista. Nesta esteira ensinam Brand e Wissen:
“Tudo o que resta aos centros do capitalismo é tentar estabilizar seu modo de vida por meio do isolamento e da exclusão. As forças responsáveis pela execução dessa política, que abrangem desde sociais-democratas até liberais e conservadores, reproduzem exatamente aquilo que dizem combater: autoritarismo, racismo e nacionalismo. A ascensão dessas forças reacionárias em muitos lugares também se deve à forma como se apresentam enquanto reais garantidoras da exclusividade do modo de vida imperial – exclusividade ora sob ameaça. Além disso, ao contrário de seus concorrentes do establishment burguês, os grupos autoritários, racistas e nacionalistas conseguem relegar seus apoiadores a uma posição subordinada e, ao mesmo tempo, libertá-los de sua passividade pós-democrática”.[9]
Os EUA caminham para um isolacionismo que parece sem volta ou que pelo menos acelerará a perda da sua hegemonia no mundo. “Eu me retirei da corrupta Organização Mundial da Saúde”, regozijou-se o líder estadunidense, “e também me retirei do antiamericano Conselho de Direitos Humanos da ONU”. Por outro lado, em uma sucessão inacreditável ameaçou retomar o Canal do Panamá, tornar o Canadá o 51º estado do país e assumir o controle da Groenlândia. Demonstrações de um colonialismo arrogante que parecia ter ficado no século XIX.
Em razão da força de sua economia, o país ainda é o maior contribuinte no financiamento do sistema ONU e das organizações multilaterais internacionais. Mas o novo governo trabalha para esvaziar algumas dessas instituições, que desde o 11 de setembro de 2001 têm sido solenemente ignoradas. Agora, contudo, o escárnio deixou de ser dissimulado e o multilateralismo está sendo atacado de modo direto e deliberado.
Por isso, quando se propugna pelo fim da “tirania da diversidade” não se está, na verdade, perante o perturbador aumento da diversidade de tiranias? Arremeter contra a população trans e expulsar estudantes estrangeiros em razão de suas posições ideológicas, perseguir e deportar os migrantes e refugiados, apoiar o extermínio palestino querendo transformar Gaza em um balneário de luxo para os bilionários estadunidenses, humilhar e abandonar a martirizada Ucrânia pressionando pelas suas terras raras são evidentes expressões abjetas de um governo autocrático que só está no seu início.
Em um presente angustiante, a arte recobra a sua força libertadora. A brilhante escritora canadense, Margaret Atwood, na sua icônica obra O conto da Aia (1985) parece ter antecipado o futuro. Em seu romance distópico os EUA caíram e deram lugar a uma teocracia fundamentalista cristã denominada Gilead, em que o patriarcado tudo controla e onde as mulheres não têm voz. Mesmo em meio a um regime atroz e cheio de opressão, a resistência não consegue ser exterminada. As mulheres resistem das mais variadas formas, seja por meio das desobediências cotidianas, seja pela organização do movimento MayDay para derrubar o regime.
Com este cenário caótico, talvez se esteja diante de uma grande oportunidade para redesenhar a unipolar ordem mundial, superando “o mito norte-americano do ‘destino manifesto’, sempre suscitado pelos presidentes”. Como lembra Leonardo Boff, “segundo esse mito, os Estados Unidos seriam o ‘novo povo eleito’ que iria levar ao mundo a democracia, a liberdade, os direitos humanos e o valor supremo do indivíduo”.[10] Mas com o segundo governo Trump a democracia, os direitos humanos e a liberdade dos indivíduos correm grave risco nos próprios EUA.
“A Terra pertence comunitariamente a todos”, recorda o velho teólogo. Inclusive aos seres não humanos e aos ecossistemas, sendo inadiável o reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos. Assim, “o império do direito e a difusão da cidadania planetária, expressa pela hospitalidade, devem criar uma cultura dos direitos e da paz, gerando de fato a ‘comunidade dos povos’[11].
Àqueles que querem tiranicamente pôr fim à diversidade devem se contrapor as alteridades diversas de todos os lugares em que o autoritarismo não venceu. Os EUA não são Donald Trump e sua tresloucada patota. Que se levantem seus artistas e professores universitários, que as organizações de direitos humanos marchem pelas ruas, que os pacifistas calem a prepotência das armas, que os trabalhadores mostrem aos senhores do capital que o lucro não está acima da dignidade humana! Por um mundo em que haja sempre mais espaço para a alteridade plural!
Seja nos pequenos gestos ou nos movimentos de maior envergadura a rebeldia deve resistir à tirania. As mulheres e os jovens, os indígenas e os migrantes, os sindicatos e as igrejas, as organizações sociais e as ONGs, os LGBTs e o movimento negro, os intelectuais e a mídia alternativa... Ainda que queiram convencer que a diversidade é um desvalor, não conseguirão extinguir a pluralidade. E como partigianos de todos os lugares do mundo é preciso gritar tal qual Dolores Ibárruri, com todas as cores e em todas as línguas: Não passarão!
[1] BRAND, Ulrich e WISSEN, Markus. Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global. São Paulo: Elefante, 2021. p. 50.
[2] CHUEIRI, Vera Karam de. Democracia constitucional e(m) crise: questões normativas e a proposta de uma constituição radical. In: NEVES, Marcelo e SANTANA, Carolina R. Direito Constitucional às margens do Estado. Porto Alegre: Zouk, 2021. p. 236-237.
[3] BROWN, Dee. Enterrem meu coração na curva do rio. Porto Alegre: L&PM, 2023. p. 331-332.
[4] BRAND, Ulrich e WISSEN, Markus. Op. cit., p. 48.
[5] CHUEIRI, Vera Karam de. Op. cit., p. 243.
[6] RASHID, Khalidi. Palestina: um século de guerra e resistência (1917-2017). São Paulo: Todavia, 2024, p. 25.
[7] Ibidem, p. 27-28.
[8] BOFF, Leonardo. Cuidar da Casa Comum: pistas para protelar o fim do mundo. Petrópolis: Vozes, 2024. p. 19.
[9] BRAND, Ulrich e WISSEN, Markus. Op. cit., p. 48.
[10] BOFF, Leonardo. Op. cit., p. 22.
[11] Ibidem, p. 21.