07 Março 2025
"Diante de milhares de crianças descalças e famintas, de doentes largados sem tratamento do lado de fora dos hospitais agora destruídos, a imagem de riqueza exibida e desdenhosa parece um insulto e uma provocação", assevera Paolo Naso, sociólogo italiano da Comissão de Estudos da Federação das Igrejas Evangélicas na Itália e professor da Universidade de Roma “La Sapienza”,em artigo publicado por Riforma, 07-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nos últimos dias, todos vimos um vídeo postado pelo presidente Trump mostrando uma Riviera de Gaza virtual: uma longa praia transformada em uma espécie de Formentera do Oriente Médio, uma terra abençoada onde o dinheiro cai do céu e os ricos e poderosos poderão saborear um drink enquanto contemplam o Mediterrâneo. Nesse cenário ergue-se a estátua dourada do presidente, que não teme imitar, em narcisismo e mau gosto, os grandes ditadores que - de Saddam Hussein a Kim Il Sung - impuseram e cultivaram o culto à própria personalidade, erguendo estátuas poderosas que, nas intenções, estavam destinadas a servir como tributo eterno à sua grandeza. A história, no entanto, foi diferente e nos ensinou que todos os impérios têm um tempo limitado e que, mais cedo ou mais tarde, chega o momento em que a pátina dourada dos monumentos perde o brilho, a ferrugem começa a corroer o metal até provocar o desmoronamento das estátuas que deviam celebrar os esplendores e a grandeza de um personagem ou de um momento histórico. No entanto, ousadamente, Trump se retratou como uma estátua dourada que poderia se destacar sobre a futura Faixa de Gaza lotada de turistas ricos prontos a gastar. Nesse cenário virtual, não se dá nenhuma informação sobre o destino dos dois milhões de palestinos que ainda vivem, embora com dificuldades, na Faixa, já que nenhum dos países árabes para os quais sua deportação é pensada disse estar disposto a acolhê-los. Mas no futurista Oriente Médio de Trump, o fator humano, as vidas das pessoas e sua dignidade como criaturas parecem não ter nenhum papel e nenhuma importância.
Trump vision for Gaza Plaza
— The Uri (@uricohenisrael) February 26, 2025
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A mensagem é política, e não são poucos os que pensam que, com esse vídeo, por mais insustentável que seja no plano humanitário e do direito internacional, o presidente estadunidense se candidata a ser o super-herói que, com seus poderes excepcionais, será capaz de pôr fim ao longo conflito israelense-palestino.
Afinal, ao se declarar biblicamente um “pacificador”, Trump já parece se candidatar ao Prêmio Nobel.
Ao comentar sobre esse curto vídeo que obviamente se tornou viral, alguém o definiu como “blasfemo” e, dentre as muitas definições, esta é a que nos parece mais apropriada. Além dos significados políticos, de fato, o vídeo também está carregado de alusões até teológicas totalmente coerentes com a ideia que o Presidente tem de si mesmo: um enviado de Deus - como ele mesmo afirmou repetidamente - que sobreviveu a um atentado para que pudesse cumprir sua missão de redimir os Estados Unidos de seus pecados: secularização, direitos concedidos a casais do mesmo sexo, legislação sobre aborto, toda aquela cultura progressista que, em nome do pluralismo e do “politicamente correto”, teria mortificado a alma cristã dos Estados Unidos.
O ícone leonardesco do Presidente no centro de uma “última ceia” laica, reunindo as bênçãos de padres e, acima de tudo, de pastores que confiam em sua missão redentora, não tem apenas um significado icônico e simbólico. A própria escolha de nomear a pregadora californiana Paula Withe como chefe do Escritório da Fé, aberto na Casa Branca, indica uma clara escolha de campo: ela também está convencida de ser uma enviada de Deus e afirma que o Criador lhe deu o poder de santificar tudo ao seu redor e, em particular, o Salão Oval do Presidente e toda a Casa Branca onde reside.
Acima de tudo, Withe é uma expoente editorialmente prolífica da “teologia da prosperidade”. Vamos citar alguns títulos: Vivendo uma Vida de Abundância; Os Dez Mandamentos da Saúde e da Prosperidade; Realize Seus Sonhos. O plano de Deus para uma vida vitoriosa. A mensagem recorrente é muito clara: Deus te oferece riqueza e prosperidade, e a fé n'Ele abre o caminho para uma vida de conforto e bem-estar. Em contrapartida, a pobreza é uma culpa, um fracasso que resulta da fragilidade da própria fé. Com Paula Withe e outros, essa teologia chegou à Casa Branca e foi adotada com entusiasmo pelo presidente Trump, cuja existência inteira gira em torno do mito do sucesso financeiro e da missão de conquistá-lo.
A estátua de ouro, portanto, não é apenas uma concessão kitsch ao amor próprio, mas uma visão de si mesmo, do mundo e, no nosso caso, da Faixa de Gaza. Nesse canto que é um dos mais populosos do mundo, massacres foram realizados e o cenário está sendo montado para o genocídio do povo palestino que, após sofrer a violência sinistra e brutal do fundamentalismo islâmico do Hamas, viu suas casas e escolas, hospitais e campos agrícolas, estradas e aquedutos serem destruídos. Diante de milhares de crianças descalças e famintas, de doentes largados sem tratamento do lado de fora dos hospitais agora destruídos, a imagem de riqueza exibida e desdenhosa parece um insulto e uma provocação. Para nós, parece tão blasfema quanto o bezerro de ouro que Arão e o povo de Israel queriam construir como ídolo ao qual se prostrar e onde depositar sua fé.