20 Fevereiro 2025
"É notório que as relações entre China e Brasil possuem um significado estratégico que alcança para além das imprescindíveis trocas comerciais", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
A China é um dos principais parceiros comerciais do Brasil. Com a deriva clara do domínio/dominação ocidental, ela surge como a principal potência do século XXI. O estilo chinês é notavelmente diferente do ocidental. Este não apenas se crê o melhor e o mais forte, tem que também propalá-lo mundialmente. O chinês é contido e valoriza o silêncio, os médios e os longos períodos. Sabe esperar a maturação do tempo. O grande ideal proposto por Xi Jinping é: Uma Comunidade com Futuro Compartilhado para a Humanidade, também traduzido como Comunidade de Destino Comum. Eis um ideal generoso a ser realizado.
Costuma-se dizer entre os analistas da geopolítica mundial que depois de uma guerra econômica, como essa sendo travada por Trump principalmente contra a China, segue-se uma guerra bélica. Ela não é improvável. O eixo anglo-saxão ocidental não renuncia jamais ser o único polo a conduzir o curso do mundo e ter o dólar como única moeda de referência de valor. Bastou a decisão arrogante de Trump destinando 500 bilhões de dólares para a produção de novos chips de IA, os mais potentes possíveis, para a China sair de seu silêncio e anunciar a plataforma DeepSeek, com seus trilhões e trilhões de algoritmos, mais barata e acessível a todos. Pôs de joelhos os orgulhosos donos das grandes plataformas conhecidas que, em razão da imensa superioridade chinesa, perderam, juntas, num só dia, um trilhão de dólares de valor de mercado. Se ocorrer eventualmente uma guerra, a China levará a melhor, só usando a IA ou mesmo armas nucleares táticas, não as estratégicas que significariam o fim da espécie humana.
É notório que as relações entre China e Brasil possuem um significado estratégico que alcança para além das imprescindíveis trocas comerciais. O Brasil só tem a ganhar caso se abrir aos valores culturais milenares e à sabedoria ancestral da China. Esta se caracteriza pela insaciável busca de integração dos opostos e da harmonização das forças cósmicas e psíquicas. Num país tão dividido como o nosso isso seria um remédio.
Nós ocidentais somos herdeiros de um pensamento linear que trabalha constantemente com o princípio de identidade e de contradição, tardiamente enriquecido pelo pensamento dialético. Nossa postura antropológica nos fez imperialistas e dominadores de todos os povos e destruidores de todas as diferenças. Ou elas são incorporadas na mesmidade ocidental ou subalternalizadas e até destruídas. É a tragédia do Ocidente, agora em seu ocaso. Consultada a DeepSeek denunciou a “insustentabilidade humana e a obsolescência histórica do neoliberalismo do modelo econômico ocidental”. Ele está destinado a desaparecer. Isso tira as bases da vigente unipolaridade ocidental.
A sabedoria chinesa procura sempre incluir os opostos. Tal postura vem expressa pelo famoso tai-ki, o círculo dentro do qual se entrelaçam como que duas cabeças de peixe. É a presença das duas forças universais – yng e yang – (céu e terra, luz e sombra, masculino e feminino) que entram na composição de todos os seres. Yng e yang concretizam o Shi, a energia primordial e misteriosa que sustenta tudo, chamada também de Tao. O Tao vem interpretado de mil maneiras. Mas para mim a mais sugestiva, da convencional de caminho. O Tao seria a energia pela qual construímos o caminho e subjaz a toda e qualquer realidade. O Tao se encontra em tudo, como diz Chung-tzu, no esterco do campo até à cabeça do Imperador. O Taoísmo não é uma religião, mas um caminho de sabedoria. As religiões existentes são uma das respostas à percepção do Tao, assim como a culinária, a arte, a política e a ética.
Quando à convite oficial, com outros, visitei à China o que mais me impressionou foi esta visão holística feita cultura geral. Ela penetrou no povo e impregna a vida cotidiana, fazendo com que o chinês comum seja pragmático, laborioso e detalhista como nas pinturas e simultaneamente contemplativo, grave e sereno como na figura dos mestres. Esta convergência dos opostos, introduziu uma cultura do cuidado, fundamental no ethos chinês. O cuidado sempre busca o equilíbrio das energias mesmo opostas. O que daí resulta é uma atitude de respeito, quase sagrado, por cada ser, pois ele é portador da energia do Tao. A medicina chinesa dos chás, da acupuntura e das massagens representa a ativação desta energia. Saúde é estar sintonizado com as energias e com o Tao.
O valor mais importante na tradição chinesa e também na política reside na amizade. Não é tanto um sentimento subjetivo mas a acolhida da diferença de forma reverente. A amizade se mostra pela partilha e pela solidariedade. “Partilhar é justo” diz uma máxima da ética chinesa. Para nós partilhar pertence à ordem da “gratuidade, daquilo que pode ser ou não ser”. Sempre que na China se acolhe um grupo, oferece-se um rico banquete, expressão da amizade. Para os chineses partilhar pertence à ordem objetiva do ser. Partilhar e solidarizar-se é fazer que o yng conviva com o yang. Então o direito de cada um é respeitado e há justiça.
Outro valor importante é o consenso, à diferença de nossa cultura política que procura antes a hegemonia. O consenso não implica a redução de todas as diferenças a uma única posição. É a coexistência aceita da riqueza delas que, juntas, constroem uma convergência mais alta e boa para todas as partes.
Por fim a pátria constitui um altíssimo conceito. Ela é a representação arquetípica do céu e da terra, é a tenda do Tao, a realização social do ying e do yang. Pátria são os ancestrais, cujas cinzas acompanham as famílias por séculos. A China é una, os governos podem estar divididos e passar. Mas a China sempre permanece, comenta-se.
Por último, grandioso é o lema da proclamação da República em 1911 pelo cristão Sun Yat Sen que se encontra nos bótons: “O amor é universal e o céu pertence a todos”. Agora com o da China no cenário mundial, o Brasil teria tanto a aprender de sua sabedoria ancestral para pelo intercâmbio, enriquecer a nossa própria cultura.