Atef não hesita em descrever a guerra em Gaza como genocídio. “Até que ponto a guerra deve ser assimétrica para deixar de ser guerra. É apenas um massacre”, escreve ele. Ele acusa Israel, com o seu “exército selvagem e sangrento”, de limpeza étnica e terrorismo de Estado. “O genocídio, como nunca me canso de explicar aos europeus, não significa que se mata todo mundo, mas que se tem a intenção de o fazer. De acordo com o direito internacional, o genocídio impede a entrada de alimentos e medicamentos. Recordemos que no terceiro dia de ocupação, quando o norte de Gaza estava sendo evacuado, um ministro israelense disse que queriam construir ali um parque de diversões, uma espécie de Disneylândia para fazer churrascos. Eles ainda não tiraram essa ideia da cabeça”, sustenta Atef.
A reportagem é de Bernardo Gutiérrez publicada por CTXT e reproduzida por Outras Palavras, 12-11-2024. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Escritor palestino, que se salvou do massacre, narra uma Gaza destroçada: corpos insepultos, fome e sinfonias de bomba. E a tentativa de matar a memória de seu povo, com o bombardeio irracional de bibliotecas, museus e templos milenares.
Em 7 de outubro de 2023, enquanto Atef Abu Saif nadava no Mar Mediterrâneo, ele notou foguetes e explosões soando em todas as direções. Ele havia dormido na casa de sua irmã Halima, em Beit Lahia, na Faixa de Gaza. Ele interpretou os foguetes como manobras de treinamento do exército israelense. Suas companhias – o cunhado, o irmão e o filho Yasser, de 15 anos, que tinha decidido viajar da Cisjordânia para visitar os avós – não demoraram muito para perceber que algo grave estava acontecendo. Saíram da praia de carro em direção à cidade de Gaza. Poucas horas depois de chegar à Casa de Imprensa, Atef já sabe que uma guerra brutal fora desencadeada. Começa a escrever. “Narrava os acontecimentos e fazia crônicas para mim mesmo, pensando que um dia, como romancista, usaria o material. Eu não queria escrever um livro. Mas uma semana depois do início da guerra, percebi que poderia morrer”, assegura o escritor, em entrevista concedida ao CTXT durante a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), no Rio de Janeiro.
Atef Abu Saif – autor de cinco romances, dois livros de contos e dois de ensaios – propôs-se a registar compulsivamente a ferocidade do ataque israelense contra a população civil. Escrevia no computador, no celular. Gravava mensagens em árabe e inglês que enviava aos seus editores. Às vezes, caminhava três quilômetros até conseguir wi-fi num posto da Cruz Vermelha. Outras vezes, arriscava aproximar-se dos tanques israelenses para captar um sinal, “algo perigoso” que tinha de fazer por causa da sua “responsabilidade como escritor”. “Os meios de comunicação ingleses e árabes não me deram muito espaço. Então, resolvi anotar tudo. A cidade de Gaza estava sendo assassinada e com ela a nossa memória. Disse a mim mesmo, se eu morrer, quero ser lembrado. Senti que poderia morrer a qualquer momento”, diz Atef.
Até cruzar a fronteira egípcia com seu filho Yasser para retornar à sua casa na Cisjordânia, Atef escreveu diariamente durante noventa dias. O resultado é Quero estar acordado quando morrer. Diário de um Genocídio, livro de caráter urgente lançado por uma aliança internacional de editoras que o publicou em julho “simultaneamente para denunciar a situação da população palestina e pedir um cessar-fogo”: Blackie Books (espanhol e catalão); Berria (Basco), Comma Press (Reino Unido), Beacon Books (Estados Unidos) e Jacana (África do Sul) em inglês; Angústúra (islandês), Noura Books (indonésio), Chiheisha Publishing (japonês), Società Informazione (italiano), Elefante (português), Second Thesis (coreano) e Pinar Publications (turco). “Através da escrita, podemos manter os lugares vivos, podemos lembrar as ruas que agora estão em escombros, as casas que agora foram destruídas”, escreve Atef no livro.
“Não somos números.” Atef nasceu em 1973 no campo de refugiados de Jabalia, na Faixa de Gaza. Desde a primeira Intifada, ele tem fragmentos de balas no corpo. “Eu tinha quinze anos quando os soldados israelenses atiraram em mim e incrustaram esses fragmentos no meu fígado. O cirurgião britânico acalmou minha mãe e disse: seu filho sobreviverá. Cada vez que encontro a morte diante de mim, no meio da rua, tento reunir coragem e me convencer de que vou sobreviver, assim como o cirurgião inglês disse à minha mãe que eu faria. Mas desta vez é diferente. Eu sei que não posso mentir. Vejo isso em todos os lugares, é a morte, posso sentir isso. Posso tocá-la”, escreve ele. Na guerra de 2014, Atef publicou o artigo We are not numbers, que acabou se tornando o slogan da Autoridade Nacional Palestina e promovendo o projeto wearenotnumbers.org, no qual escritores tornam visíveis as vidas dos palestinos ocultadas pelos números. “Os números escondem nossas vidas. Para os assassinos não somos seres humanos. Nossas memórias e histórias não existem. Somos números. Se você ler que quinze palestinos morreram num ataque israelense, isso significa quinze vidas, quinze histórias de amor. Quinze memórias da juventude. Quinze casas. Quinze sentimentos de perda. Quinze palestinos que esperam na fila da padaria para alimentar a sua família”, afirma Atef com firmeza.
Quero estar acordado quando morrer é uma crônica detalhada. À medida que os dias de guerra passam, a Faixa de Gaza torna-se um cemitério a céu aberto. As crianças escrevem seus nomes na pele de seus corpos para que suas famílias possam encontrar seus corpos caso morram. Os edifícios caem “como colunas de fumaça”. A cidade de Gaza é transformada num “lixão de borracha e escombros”. A comida é escassa. As filas se multiplicam. Uma para água. Outra para pão. Outra para carregar celulares. Os cadáveres estão se acumulando por toda parte. Nas ruas, “crianças confusas, homens irritados, mulheres cansadas”. Ovelhas e cabras famintas vagam pela cidade. As pessoas não andam, elas correm. Um homem usa sapatos femininos porque “são mais confortáveis”. Zumbido de drones. Estrondos constantes de explosões. As bombas destroem hospitais, escolas, campos de refugiados, o Centro Cultural al-Shawa, os Centros de Imprensa. Os mísseis destroem sete padarias, mercados e barracas de vendedores ambulantes. Uma noite, Atef vai dormir sem ter comido nada. Às vezes ele cai na cama depois de trinta e seis horas sem pregar o olho. Tentar salvar vidas é mais importante que dormir.
Ao longo do diário, o leitor toma conhecimento da destruição da Cidade de Gaza. Muitos moradores estão mortos sob os escombros, sem possibilidade de resgate. “Tudo ao nosso redor está morto e silencioso. Há apenas corvos e um ou outro cachorro perdido vasculhando os escombros. Os israelenses querem que toda Gaza tenha esta aparência. Insuportável. Infernal. O objetivo é sempre nos fazer retroceder no tempo, fazer com que a cidade pareça pobre e feia novamente”, escreve Atef. “Quando eu estava escrevendo o livro, Gaza era um ser violado, cortado em pedaços. A partir de hoje, a cidade de Gaza não existe. Não há um único apartamento em Gaza onde você possa ficar. Quero dizer, tem janelas, portas, paredes. Tudo foi total ou parcialmente destruído”, diz Atef. No livro, ele descreve a destruição de seu bairro, dos becos e passagens de Jabalia, como “o fim de um filme de guerra”. “Até os israelenses admitem que a sua ênfase está agora no ‘dano’ e não na ‘precisão’”, escreve ele. Sua cidade natal, onde escreveu sua primeira história sobre um velho que adorava contar histórias, mas havia esquecido todos os finais, está completamente destruída.
A fuga a pé que Atef faz com o filho para sair do norte de Gaza em direção ao sul, atravessando a nova “cortina de ferro” desenhada por Israel, é uma das cenas mais duras do diário: “Espalhados ao acaso, em ambos os lados do caminho, há dezenas e dezenas de cadáveres. Apodrecendo. Derretendo, ao que parece, no chão. O cheiro é horrível. Uma mão se estende em nossa direção da janela de um carro incendiado, como se estivesse me implorando por alguma coisa. Corpos sem cabeça aqui. Cabeças decepadas ali. Membros e partes de corpos jogados fora e abandonados à própria sorte. Não olhe, digo novamente a Yasser. Continue andando, filho.
Destrua a cultura. No dia em que os soldados israelenses invadiram o apartamento histórico de Atef em Gaza, ficaram chocados com a sua coleção de três mil livros. Um dos soldados arrancou da parede uma reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. “Eles não gostam da ideia de que temos educação, que temos uma cultura, que somos cultos. Quando Napoleão Bonaparte ocupou a Palestina, usou o palácio Pasha durante três dias como escritório, mas o exército israelense destruiu-o com tanques”, diz ele num tom desolado. Atef Abu Saif, ministro da Cultura entre 2019 e abril de 2024, denuncia como Israel destruiu intencionalmente qualquer manifestação cultural em Gaza. Numa entrevista em fevereiro de 2024, já alertava sobre a destruição de doze museus e da Biblioteca Municipal de Gaza, uma das maiores coleções de documentação sobre a vida em Gaza e na Palestina antes da criação de Israel em 1948. “Por que bombardearam a igreja mais antiga de Gaza, a terceira mais antiga do mundo? Por que estão destruindo o porto fenício ou os templos de cinco mil anos de antiguidade? Por que ninguém menciona uma palavra sobre tudo isso? Eles não estão apenas assassinando pessoas e um lugar, mas também a história. Israel quer eliminar a nossa história e memória. Além disso, não é a nossa história, é a história da humanidade”, afirma o escritor.
Atef não hesita em descrever a guerra em Gaza como genocídio. “Até que ponto a guerra deve ser assimétrica para deixar de ser guerra. É apenas um massacre”, escreve ele. Ele acusa Israel, com o seu “exército selvagem e sangrento”, de limpeza étnica e terrorismo de Estado. “O genocídio, como nunca me canso de explicar aos europeus, não significa que se mata todo mundo, mas que se tem a intenção de o fazer. De acordo com o direito internacional, o genocídio impede a entrada de alimentos e medicamentos. Recordemos que no terceiro dia de ocupação, quando o norte de Gaza estava sendo evacuado, um ministro israelense disse que queriam construir ali um parque de diversões, uma espécie de Disneylândia para fazer churrascos. Eles ainda não tiraram essa ideia da cabeça”, sustenta Atef.
O escritor não hesita em responsabilizar os Estados Unidos e as potências ocidentais pelo genocídio. “Israel é seu filho mimado. Estamos pagando o preço pelos erros europeus da Segunda Guerra Mundial”, esclarece. No livro, Atef conta como, em 1948, o Estado judeu veio à tona, semeando o caos na Palestina: “800 mil árabes foram expulsos à força de suas casas, homens executados, mulheres estupradas, aldeias queimadas, cidades inteiras massacradas. O terror foi o que destruiu aquela metade da Palestina e o que deu origem ao novo país (…) A minha avó foi obrigada a deixar a sua linda casa em Jaffa, pensando que voltaria dentro de alguns dias. Isso foi há setenta e cinco anos.” A escalada bélica comandada por Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, é na sua opinião uma cortina de fumaça: “A expansão da guerra é uma forma de escapar à pressão de uma guerra civil. Quando iniciam uma guerra no Líbano, ninguém lhes pede que acabem com a guerra em Gaza. O objetivo da guerra é a própria guerra. Com o Irã tudo estará sob controle, o seu verdadeiro objetivo é Gaza.”
O futuro da Palestina. Atef, membro do partido político Fatah, herdeiro da antiga Frente Nacional de Libertação da Palestina, acredita que o futuro da Palestina não pode ser concebido excluindo o Hamas. “Não há futuro sem o Hamas. O povo decidirá se o Hamas geriu kbem o 7 de Outubro e as suas consequências. As pesquisas dizem que os habitantes de Gaza estão descontentes com o Hamas. Eles estão pagando o preço e suas vozes não estão sendo ouvidas. Mas para a maioria dos palestinos em todo o mundo, mesmo que discordem de algumas ações, o 7 de Outubro é um ato heroico. Saberemos mais sobre tudo isso quando houver discussão aberta e eleições, algo que eles não estão permitindo”, afirma Atef.
A certa altura da entrevista, Atef abaixa o tom. O cansaço toma conta de seu rosto. Ele explica que viu sua família morrer nesta guerra. Mais de cem parentes assassinados. Seu pai morreu em abril, por falta de remédios. Ele confessa que poderia estar morto se tivesse aceitado o convite da meia-irmã. “Eu deveria ter passado aquela noite com eles. Ainda guardo o SMS em que ele me disse: Ei, meus sobrinhos estão aqui. Venha passar a noite conosco. Hoje, toda a família está morta”, confessa com resignação. Quando parece que está prestes a sair do prumo, Atef recupera o ânimo, como se estivesse agarrado ao salva-vidas de um trecho de seu próprio livro: “E quando você ouvir que outra pessoa morreu, significa que você, ao contrário, continua vivo”.
O ex-ministro se recompõe. Sorri. Tira forças da fraqueza. Reconhece que tudo contribui para parar o genocídio. Seu livro. Esta entrevista. A iniciativa judicial liderada pela África do Sul. Que a Espanha reconheça o Estado Palestino. As manifestações de apoio. “O mundo tem que romper a narrativa de Israel de que isto é legítima defesa”, escreveu em seu livro. “A questão não é estar com os palestinos ou com os israelenses – afirma com ânimo recobrado – mas consigo mesmo como ser humano. É a favor ou contra o genocídio? A favor ou contra o assassinato de crianças inocentes? Não estou pedindo que você esteja conosco, mas que esteja consigo mesmo, com sua ética.”
A última página de Quero Estar Acordado Quando Morrer é por parte dos editores: “Em 30 de dezembro, Atef e seu filho, que havia completado dezesseis anos apenas dois dias antes, conseguiram cruzar a fronteira egípcia e chegar em segurança. Muitos de seus familiares e amigos permanecem presos na Faixa. A sogra de Atef, Haja, morreu de frio numa loja em Rafah enquanto fechávamos a edição deste diário. O genocídio já dura 235 dias.” Quando o CTXT publica este texto, o genocídio já durava 398 dias.