04 Outubro 2024
"A verdade é que, seja qual for o nível de contraposição entre as duas bandeiras, republicanos e democratas, mesmo nos níveis mais altos, ambos devem se ajustar à realidade da sociedade estadunidense", escreve Giuseppe Savagnone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 02-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Muitas pessoas ficaram surpresas e desconcertadas com o que o Papa Francisco disse na coletiva de imprensa em seu voo de volta de Cingapura, àqueles que lhe perguntaram que conselho dar a um eleitor católico às vésperas das eleições presidenciais nos Estados Unidos: “Não se pode decidir. Não sou estadunidense, não irei votar lá, mas que seja claro: ambos são contra a vida, tanto o que expulsa os migrantes quanto o que mata as crianças”.
E acrescentou: “Na moral política, geralmente dizem que não votar é ruim, você tem que votar e escolher o mal menor. E qual é o mal menor? Aquela senhora ou aquele senhor? Não sei... Cada um que pense com sua consciência”.
Palavras que soaram duras, especialmente para os ouvidos de muitos - crentes e não crentes - que veem no confronto entre Trump e Kamala Harris aquele entre um aventureiro inescrupuloso, disposto a qualquer excesso - tanto no plano moral quanto politico (até mesmo a um golpe de Estado), - e uma pessoa que está totalmente dentro do esquema do politicamente correto e promete permanecer fiel à linha “liberal” que foi de Obama e Biden.
É claro que é preciso levar em conta que o juízo do Papa é feito de um ponto de vista rigorosamente ético e não pretende incluir uma série de aspectos - como, por exemplo, o econômico, particularmente debatido nesta campanha eleitoral - que um eleitor estadunidense também deve levar em conta. Mas, mesmo nesses aspectos, a comparação entre o candidato antidemocrático e aquela mais próxima de nossos critérios de civilização não parece necessariamente premiar a segunda.
De acordo com uma recente pesquisa da CNN, 50% dos entrevistados dizem que Trump governaria melhor a economia que Harris: apenas 39% pensa o contrário, os demais não se expressam. Sem mencionar que, ultimamente, até mesmo a candidata democrata tem tido algumas saídas embaraçosas para aqueles que, entre nós, a consideram o emblema da civilização.
Como a severa advertência aos imigrantes: “Não venham para os Estados Unidos, pois continuaremos a aplicar as nossas leis e a defender as nossas fronteiras. Se vierem, serão mandados de volta”. Ou, mais recentemente, a resposta dada durante um programa de televisão àqueles que lhe perguntaram se ela possuía uma arma: “Claro que possuo uma arma. Tenho uma pistola e se alguém entrar em minha casa, estou pronta para atirar”.
É preciso levar em conta que nos Estados Unidos, a Segunda Emenda - uma das dez conhecidas em seu conjunto como a “Declaração de Direitos dos Estados Unidos da América” - é expressamente dedicada ao “direito dos cidadãos de manter e portar armas”. E que, de acordo com uma pesquisa recente, 51% dos adultos estadunidenses afirmam que proteger o direito de portar armas é mais importante do que controlar a sua posse. E que os lobbies que defendem esse direito, como a National Rifle Association of America (NRA), são poderosíssimas. Legado tenaz de uma cultura que foi construída sobre os indivíduos e sua capacidade de defender sua propriedade.
É de se admirar que uma candidata, às vésperas de uma eleição, enfatize sua proximidade à sensibilidade generalizada e aos poderes que a alimentam?
O mesmo vale para as políticas de migração. O eleitorado de Trump não é formado por poucos fanáticos reacionários, mas reúne metade dos estadunidenses descontentes e preocupados com a multiplicação de imigrantes que invadem o mercado de trabalho fazendo cair o nível dos salários. Se quiser ser competitiva nesses círculos, Kamala Harris não pode seguir uma linha política muito distante daquela de seu rival.
A recíproca também é verdadeira. Sobre o tema do aborto, Trump - que, pelo menos publicamente, havia adotado uma postura restritiva, atraindo a simpatia dos católicos e de todos os antiabortistas - agora declarou que não quer uma proibição nacional dessa prática e prefere que cada estado decida. Uma escolha evidentemente ditada pelas preferências de grande parte da opinião pública do país, mas também pela influência da poderosa “Planned Parenthood”, a organização com ramificações em todo o país que apoia as políticas abortistas.
Algo semelhante também pode ser visto em temas de política externa. Na guerra travada pelos israelenses em Gaza, Trump e os republicanos foram decididamente favoráveis ao Estado judeu e minimizaram os terríveis custos humanos que as operações militares comportaram para os palestinos. Aparentemente, muito diferente é a posição dos democratas Biden e Harris, que expressaram várias vezes sua desaprovação pela violação dos direitos humanos pelo exército de Tel Aviv e que, nos últimos meses, se empenharam espasmodicamente por um “cessar-fogo” que pusesse fim aos massacres de civis - com uma porcentagem muito alta de mulheres e crianças - e permitisse lidar com a terrível crise humanitária em curso.
No entanto, se observarmos os fatos, não podemos deixar de nos surpreender com o que aconteceu nos últimos meses. O primeiro-ministro israelense, Netanyahu, pôde se dar ao luxo de ignorar ou contradizer explicitamente os apelos veementes de Biden, fazendo sistematicamente o oposto do que, em determinados momentos cruciais, este lhe pedia para promover negociações de paz.
O primeiro-ministro de um estado com uma população de dez milhões de habitantes zombou, sem sequer se preocupar de esconder isso, da pressão insistente do presidente do estado mais poderoso do mundo. E continua a fazer isso ao estender o conflito, que o via anteriormente envolvido apenas contra o Hamas, também ao Líbano, acentuando enormemente o risco de escalada que Biden havia suplicado para evitar desde o início. Não sabemos como os historiadores julgarão o atual ocupante da Casa Branca. Uma coisa não poderão negar: o fato de que nunca antes, sob sua presidência, os Estados Unidos, que já foram o árbitro da política internacional, pareceram impotentes aos olhos da opinião pública mundial.
O paradoxo, no entanto, é que Israel só conseguiu fazer tudo isso graças ao fornecimento contínuo e maciço de armas e à proteção político-militar do Estado que humilhavam. Não se pode despejar durante dez meses - primeiro apenas na Faixa de Gaza, agora também no Líbano - quase cem mil toneladas de bombas usando apenas seus próprios arsenais.
E, afinal, foram alguns comunicados oficiais e as investigações da CNN e do New York Times que confirmaram que o massacre da população civil em Gaza - e agora no Líbano - foi realizado com o fornecimento de armas a Israel pelos Estados Unidos. Justamente enquanto Biden insistia em suspendê-lo.
Absurdo? Apenas na aparência. Mais uma vez, é preciso levar em conta a realidade da sociedade estadunidense, onde o poder dos lobbies judaicos, firmemente alinhados a favor de Israel, é evidentemente tão grande a ponto de constringir até mesmo o presidente a sofrer uma humilhação sem precedentes. O resultado foi que, no final das contas, o democrata Biden fez exatamente o que o republicano Trump teria feito em seu lugar, com a única diferença de que este último o teria dito claramente.
A verdade é que, seja qual for o nível de contraposição entre as duas bandeiras, republicanos e democratas, mesmo nos níveis mais altos, ambos devem se ajustar à realidade da sociedade estadunidense. Pessoalmente, considero Trump o pior possível e, se eu fosse estadunidense, votaria em Harris. Mas está claro que o problema não são as pessoas, mas o sistema e a cultura em que se baseia e que, portanto, nenhum dos dois candidatos à Casa Branca terá condições de mudar a face dessa sociedade, mas será, de maneiras diferentes, seu espelho. Recentemente, no Corriere della Sera, Aldo Cazzullo destacava a complexidade e o caráter problemático da realidade estadunidense, referindo-se a um outro elemento problemático, a falta de assistência de saúde pública, em plena coerência com a lógica neocapitalista. Mas ele concluía: “É um sistema que tem aspectos terríveis, que seleciona e descarta, que considera a saúde não um direito, mas um bem a ser comprado e vendido, como a comida e a casa. Mas é um sistema que funciona”.
Sim, o sistema funciona. Mas, para além dos slogans que o exaltam como o baluarte da civilização, para além das diferentes interpretações que diferentes presidentes podem dar dele, contém em si lógicas de violência que o apelo à liberdade de Kamala Harris (não por acaso polarizado no “direito de aborto”) e as promessas de Trump de expulsar os imigrantes se limitam a traduzir de maneiras diferentes, mas, em última instância, correspondentes.
Entendem-se as palavras amargas do Papa Francisco. O modelo estadunidense é certamente um baluarte que nos defende de formas ainda mais perversas de totalitarismo e opressão, mas não é a civilização da vida. Não é a ele que nós - crentes ou não - podemos olhar como resposta às exigências humanas mais profundas de justiça e de fraternidade. Mesmo nesse nível mais abrangente, bem como na escolha do futuro presidente, devemos nos resignar ao “mal menor”? O próprio pontífice não está fazendo isso. Isso é evidenciado por documentos como Laudato si' e Fratelli tutti, que não agradaram nem um pouco do outro lado do Atlântico e levaram muitos círculos estadunidenses a financiar generosamente as pressões contra o Papa Francisco.
Mesmo com todos os seus limites e contradições, com seus abusos sexuais e compromissos de todo tipo, a Igreja continua sendo portadora de uma visão alternativa, da qual todos os homens e mulheres descontentes com as lógicas do individualismo possessivo são chamados serem apoiadores (mesmo dentro dos próprios Estados Unidos). Não podemos aceitar ter de escolher entre Putin ou Xi Jinping e o neocapitalismo. A “terceira via” proposta pela Igreja Católica em seu ensinamento social pode parecer uma utopia para muitos, mas continua sendo uma perspectiva de esperança para aqueles que pensam que vale a pena trabalhar para a construção de uma alternativa finalmente humana.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Não, esta não é a civilização da vida. Artigo de Giuseppe Savagnone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU