17 Setembro 2023
Mais de mil casos de abusos sexuais na Igreja Católica da Suíça, desde 1950, foram documentados num estudo divulgado esta terça-feira, 12, naquela que é “a primeira tentativa sistemática de captar e analisar” cientificamente esta problemática naquele país da Europa central.
A reportagem é de Manuel Pinto, publicada por 7Margens, 12-09-2023.
O estudo, elaborado por uma equipa de historiadoras da Universidade de Zurique, intitula-se “Relatório relativo ao projeto piloto sobre a história dos abusos sexuais na Igreja Católica romana na Suíça, desde os meados do século XX” (disponível aqui, em francês ou alemão) e resulta de uma encomenda tripartida: da conferência episcopal; do organismo que reúne as congregações religiosas e pessoas consagradas; e da conferência das organizações católicas de âmbito cantonal.
Alguns dados quantitativos apurados neste trabalho podem resumir-se assim: 1002 casos de abuso sexual identificados entre 1950 a 2022, que envolveram 921 vítimas e 512 agressores. Das vítimas, cerca de 130 eram pessoas adultas, na maioria dos casos mulheres e religiosas. Os abusos envolveram 39 por cento de pessoas do sexo feminino e 56 por cento do sexo masculino (nos restantes casos a variável não era identificada). Do total de casos de abusos, apenas 12 por cento ocorreram a partir do ano 2000. Quanto aos abusadores, eram esmagadoramente homens e a grande maioria padres.
De qualquer modo, a natureza predominantemente documental do estudo leva as historiadoras a concluir que estes dados não são mais do que a ponta de um iceberg. A norma no direito canônico que permite a destruição da documentação sobre casos deste tipo que tenham mais de dez anos, aliada ao estado deplorável dos arquivos em algumas dioceses e na maioria das ordens religiosas, faz supor que a realidade seja bem mais escura. Além disso, essa ausência de informação compromete a investigação científica, que agora se quer fazer, mas, sobretudo, tem consequências nefastas para as vítimas que desejem consultar o que lhes diz respeito.
“Tornou-se claro – referem as conclusões do relatório – que os responsáveis da Igreja ignoravam, encobriam ou minimizavam a maior parte dos casos de abusos sexuais”, até aos inícios deste século.
“Quando eram obrigados a agir, na maior parte das vezes faziam-no não por causa das pessoas vitimizadas, mas para proteger os perpetradores, a instituição ou a sua própria posição”, adianta o documento. E desenvolve: “Em numerosas situações os abusos sexuais foram ‘deixados de parte’, os acusados foram transferidos e as pessoas vitimizadas constrangidas a ficarem caladas, tal como as testemunhas”. Tais comportamentos dos hierarcas só fizeram com que “novas situações de abuso se produzissem”.
As conclusões identificam “uma mudança fundamental no tratamento, prevenção e sanção dos abusos sexuais”, por parte dos responsáveis da Igreja Católica, apenas no século XXI, apontando como razões para essa alteração a agudização da sensibilidade social para o assunto, a tomada de consciência dos direitos de proteção e bem-estar das crianças e o impacto da cobertura mediática. Não referem, no entanto, os passos dados pela própria Igreja, primeiro com o Papa Bento XVI e, desde a década passada, de forma mais consistente, pelo Papa Francisco.
Este relatório sobre a Igreja suíça aprofunda alguns aspetos que estão associados à natureza histórica do estudo e às metodologias específicas (documentais, de história oral) que utilizou. Assumindo-se, desde o início, como estudo-piloto, este procurou identificar áreas e problemas que têm sido insuficientemente estudados (exemplos: as consequências dos abusos não apenas nas vítimas, mas nos círculos familiares e de relações sociais das vítimas; o modo como esses abusos, nomeadamente os praticados por figuras marcantes e carismáticas, impactaram nas respetivas comunidades; a tipologia de contextos em que os abusos ocorrem como caminho para estudar as formas de prevenção; etc.).
Um ponto de acentuado interesse neste estudo é o recurso à tipificação e estudo de casos. São apresentados dez, ao longo de alguns dos capítulos, permitindo compreender modos de funcionamento, lógicas de ação de diferentes atores, entre outros aspetos. Neste âmbito, merece destaque o estudo de caso sobre o desenvolvimento da comissão diocesana de peritos de Saint-Gall, que pode ser lida da pág. 94 à 98, e que é exemplar daquilo que um bispo nunca pode fazer, sem graves consequências.
É de salientar, neste estudo, a preocupação das investigadoras de identificar aspetos que permitem falar da “especificidade dos abusos do clero em contexto católico”, uma proposta que se baseia nas entrevistas, no trabalho com as fontes documentais e na revisão da literatura de investigação que fizeram.
Elas começam por se referir a “constelações espirituais, sociais e econômicas de poder da Igreja católica”, que podem favorecer os abusos. “Se é verdade que o poder não conduz automaticamente ao abuso, o abuso não é possível sem poder”, fazem notar (p. 76). Daí a necessidade de “uma mudança fundamental de perspetiva”, que consiste em deixar de ver o abuso como uma “deriva individual” do perpetrador, para adotar “uma abordagem sistemática daquilo que liga os abusos sexuais às relações de poder”.
Um elemento importante da “especificidade católica”, salienta o estudo, reside no fato de os padres e, sobretudo os bispos, concentrarem, nas respetivas esferas de ação, os poderes legislativo, executivo e judicial. A isso haveria que juntar ainda o papel de “pais atentos e indulgentes”, em contraste com o poder judicial e, logo, também punitivo, bem como o poder simbólico associado ao clero (poder espiritual).
As historiadoras insistem na importância do poder espiritual, dado que os abusos espirituais “servem frequentemente de ponto de partida para outras formas de abuso, nomeadamente sexuais”, além de os “legitimarem num contexto sagrado e espiritual, ao mesmo tempo que tornam as vítimas dóceis”.
Ainda na mesma linha, chamam a atenção para a relação entre abusos espirituais e sexuais e o que designam por “tabus difundidos na Igreja católica”, entendendo que estes favorecem aqueles. O lugar do celibato, da abstinência sexual e da abstenção de relações físicas e, em alguns casos, mesmo emocionais como opções de vida são aspetos que o estudo convoca como carecendo de debate, sugerindo que eles são “remetidos para o domínio privado e individual”, devendo “os desafios ser ultrapassados pela fé, pela oração e pela ajuda de Deus”.
O relatório termina com algumas recomendações que a equipa faz ao episcopado e à Igreja suíça. Uma delas é a existência de uma instância de contacto independente, para vítimas e conhecedores de situações de abuso sexual.
Enquanto historiadores, mas também como cidadãos, pedem que os testemunhos das pessoas sejam de forma sistemática passados a escrito, que se ponha termo à destruição de documentos relevantes e que se aposte na melhoria da situação dos arquivos eclesiásticos.
Solicitam também acesso livre aos arquivos por parte dos investigadores; abertura do acesso aos arquivos do Vaticano e continuação e alargamento das investigações sobre os abusos, convocando os contributos das ciências sociais e humanas.
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“Há uma relação estreita entre abusos espirituais e abusos sexuais” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU